Portugal de pijama


São 330 mil menores de idade em risco. Uma em cada 4 crianças está em risco de pobreza extrema em Portugal. E duas mil crianças estão sinalizadas como estando em risco de nutrição.


Vivemos um mundo desconcertante.

Nunca o progresso foi tanto e para tantos. Nunca a tecnologia chegou aos patamares que hoje já conhecemos e aos que, mesmo não nos sendo familiares, já mudam a nossa vida de forma dramática.

Nunca se falou tanto de direitos de todos os géneros para minorias de todas as formas e feitios.

Todavia, continuamos a ter um mundo em que as nossas crianças não têm ainda o seu presente protegido, muito menos o seu futuro acautelado.

As nossas crianças não têm direitos por inteiro. E, por isso, agravam a situação de vulnerabilidade intrínseca da sua condição de dependência de terceiros.

Cruzei-me há dias com um relatório da UNICEF onde se relatava que uma em cada quatro crianças com idade inferior a cinco anos não existe sequer oficialmente por falta de registo. Isto significa o quê? Que os direitos universais dessa criança perante a lei não estão salvaguardados. Logo, estão mais vulneráveis a abusos. Como o trabalho infantil, que afeta 160 milhões de crianças em 2020.

Podemos ser levados a pensar que situações destas não acontecem na Europa civilizada. Puro engano. Nos nossos bairros, nas nossas ruas, situações destas são mais frequentes do que imaginamos.

É claro que a situação é muito mais grave noutras latitudes. Leio que no Afeganistão o regime brutal dos talibãs espalha miséria e terror em doses iguais. Vinte e três milhões de pessoas, num universo de 38 milhões, não sabem de onde lhes virá a próxima refeição. Cinquenta por cento das famílias afegãs estão a morrer à fome. Há pais que vendem as suas filhas de sete ou oito anos para conseguir dinheiro para alimentar os restantes membros da família.

Repito: em pleno século XXI, num mundo sempre pronto a indignar-se com as futilidades das redes sociais, há pais que vendem os filhos para comer. Isto é medieval. Infra-humano.

Que isto se passe na tragédia em forma de país a que chegou o Afeganistão não nos deve fazer recuar um milímetro na nossa indignação. É nosso dever moral dar voz a quem não a tem. É um dever moral, uma pré-condição de civilização, falarmos bem alto por elas. Exigir a sua defesa, onde quer que elas estejam.

Porque, sejamos honestos, quando olhamos para o retrato das crianças e jovens em Portugal, não podemos ficar descansados. Aqui, no nosso país, uma em cada 6 crianças vive em situação de pobreza. São 330 mil menores de idade em risco. Uma em cada 4 crianças está em risco de pobreza extrema em Portugal. E duas mil crianças estão sinalizadas como estando em risco de nutrição.

A ausência de condições materiais não garante às nossas crianças uma proteção decente e agrava a sua vulnerabilidade.

Para além da pandemia sanitária, as pandemias económica e social agravaram circunstâncias de abuso e violência que são intoleráveis.

Desde Abril de 2020, quando começou a pandemia de covid-19, foram apoiadas 1.160 crianças vítimas de violência doméstica, representando cerca de 50% do total de pessoas apoiadas pela Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica. Há 35 mil crianças a serem acompanhadas por sofrerem de maus tratos. Mais de metade têm, no máximo, três anos.

Estes números têm de nos deixar inquietos. Não seremos mais tolerantes com os intolerantes.

Não teremos nunca medo de afrontar aqueles que querem que o medo seja a realidade da vida das nossas crianças e jovens.

2021 já é tarde para travar pôr fim a este flagelo nas nossas sociedades.

Talvez muitos dos leitores do i não tenham reparado que na passada segunda-feira a maioria das crianças foi de pijama para a escola. Se perguntarem aos membros mais novos da família porquê, eles terão uma explicação muito melhor do que a minha. Em todo o caso, antecipo já que o Dia Nacional do Pijama coincide com o Dia da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças e que é fascinante que sejam as nossas crianças e as nossas escolas a estarem na linha da frente de uma luta que tem de ser de todos os cidadãos.

Num tempo em que, mais do que nunca, a humanidade está disponível para abraçar causas comuns com um propósito maior (como o combate alterações climáticas) sejamos capazes de dar voz às nossas crianças e falar bem alto por elas. Para que todas as crianças possam viver em segurança, com direitos e com sonho.

Para que todos tenham tempo para brincar e ser o centro dos afetos.

Para que ninguém seja forçado a crescer antes de tempo.

Presidente da Câmara Municipal de Cascais

Escreve à quarta-feira com vista para o atlântico