O Elogio da Dureza. Adeus às armas

O Elogio da Dureza. Adeus às armas


No seu poderoso romance autobiográfico, Rui de Azevedo Teixeira não mente, não faz batota, não diz que foi para a guerra contra a sua vontade. É isso que dá a O Elogio da Dureza um particular e agudo significado.


Rui de Azevedo Teixeira, nascido em 1951, em Argivai, Póvoa de Varzim, abandonou os estudos universitários, que mal começara, e foi, aos vinte e dois anos, para Angola, como comando voluntário. A palavra “comando” era, por essa altura – agonia do Estado Novo – uma palavra pestiferada e, como tal, Rui de Azevedo Teixeira foi abundantemente vituperado pelos resistentes lusíadas residentes em Argel.

Leitor apaixonado de Camões e com infaustos fantasmas familiares, que não conseguira exorcizar, Rui Teixeira amava o conceito de império e de luta e partiu para a guerra, como quem busca uma solução para os demónios que o devoravam e lhe davam uma sede de aventura, que talvez beirasse um namoro com o suicídio, mas também com a liquidação de um adversário respeitado. Fê-lo também à boleia de um Hemingway, que leu com mão diurna e nocturna e outros que, tendo visto a guerra, por dentro, nos deixaram, depois, poderosos argumentos contra ela. Rui Teixeira, no seu poderoso romance autobiográfico – O Elogio da Dureza – não mente, não faz batota, não diz que foi para a guerra contra sua vontade e que até odiava o colonialismo. É isto que dá um particular e agudo significado a este pungente relato de uma aprendizagem. Não é um livro que sirva o simplismo dos a preto e branco. É, antes, um livro que rima com a condição humana, que é complexa, contraditória e perturbantemente rica. Não dá para juízos primários de leitores primários. Lembremo-nos de que o mesmo Montherlant, que adolescente, cantou liricamente, numa prosa soberba, a guerra, como território privilegiado da fraternidade e da luta que educa, deu-nos depois, implacável notícia do que ela realmente é: “Nós amamos, nos animais, podermos matá-los, legalmente. Na guerra, também amamos poder matar legalmente. Bem entendido, os homens nunca o confessam.”

A diferença – de monta – é que Rui Teixeira – com uma coragem ímpar, confessa que partiu para a guerra, para convictamente matar e defender um império em que acreditava. Como diria Montherlant, não nos enterneçamos, mas também não ergamos já um dedo pedagógico e acusador. Montherlant trocou as voltas à interdição familiar para se ir juntar às trincheiras da morte, na carnificina de 1914 – 1918, antes que a idade a isso o obrigasse. Depois, contraditório, como são os homens, enviou o seu canto de louvor à guerra ao pacifista Romain Rolland, cuja coragem admirava, por defender, com risco de vida, que a paz prevalecesse contra a carnificina. Este, que tivera de se exilar para a Suíça, para que a sua impopular luta contra a guerra o não fizesse assassinar em França, saudou galhardamente a grandeza literária do jovem autor, apesar de, ideologicamente, se lhe opor. Há gente desta, capaz de não confundir pelouros e de encontrar um lugar onde se saúdem, como adversários que se admiram e estimam. Aliás, Montherlant, como vimos, viria, com o tempo, a ver a guerra com outros olhos, bem como as touradas, que começara por venerar e praticar.

Rui Teixeira, apaixonado por grandes poetas, pelo império e por uma guerra que o defendesse e lhe permitisse, ao mesmo tempo, exorcizar demónios antigos, que o empurravam para a beira do abismo, partiu, no princípio de 1973, para Angola, apresentando, à superfície, o rosto do cavaleiro sans reproche.

Numa prosa descascada, enérgica e sem mentira, Rui Teixeira dá-nos destemidamente notícia das suas pulsões, sabendo muito bem o preço que por isso se paga. Talvez por isso este livro se destaca de muitos outros que a guerra colonial produziu: não há nele a mais pequena gota de política beata e facilmente premiável. O seu “franc parler” seria bem recebido por Stendhal. E é precisamente por este livro vir de quem vem, que esta lição de aprendizagem de vida nos parece tão poderosa e convincente.

Rui Teixeira, por cortesia do alferes Paulo, protagonista de O Elogio da Dureza, não nos presenteia com um sermão edificante sobre a descoberta dos malefícios do colonialismo e da guerra. Na boa esteira da narrativa moderna, cujos caminhos Hemingway desbravou como poucos, Rui Teixeira não gosta de pregar, prefere mostrar o que foi a guerra e o colonialismo. Em quadros curtos, sem ênfase, dá-nos a violência e o rosto sanguinário do combate, o encarquilhar obscenamente rápido do ser humano esvaziado de sangue, e, num episódio curto, situado em Luanda, num fim de semana de férias, Paulo depara, sempre sem ênfase, mas com uma inesperada e desorientadora iluminação, com o rosto verdadeiro do colonialismo. Para me não afundar em paráfrases ineptas, transcrevo literalmente a passagem do livro, que deveria ser antologiada para os livros das escolas e, no fim de contas, levada ao conhecimento de tantos leitores quantos possíveis: “Paulo descia [o passeio} e o homem preto subia. Ambos pelo mesmo passeio estreito. O preto tinha cerca de cinquenta anos, cabelo grisalho, fato coçado. Um ar sério, digno, de pequeno funcionário. Três ou quatro metros antes de se cruzarem, o homem olhou para Paulo, baixou os olhos, encurvou as costas e, automaticamente, desceu do passeio para Paulo poder passar à vontade. Baralhou-se a cabeça ao cadete. Caiu-lhe muito mal que um homem preto de meia idade se tivesse curvado, diminuindo-se, perante um jovem branco, perante si. Pela idade podia ser seu pai. Nenhum dos textos que tinha lido sobre o colonialismo teve em Paulo o mesmo impacto que esta cena muda numa rua de Luanda, em princípios de 1973. Tinha visto, sentido e percebido uma das faces do poliedro do Mal.” O apocalíptico cavaleiro da guerra e da morte e o defensor sanguíneo do império, entregava os trunfos todos, perante a humilhação inconcebível de um preto que poderia ser seu pai.

O resto do romance é a lenta mas profunda apreensão de que Paulo estava a travar uma guerra sem sentido e a desperdiçar os melhores anos da sua vida.

Ao fim de dois anos, Rui Teixeira regressou a Portugal, licenciou-se, doutorou-se sobre literatura da guerra colonial, especializou-se nessa área, conheceu o amor, de que estivera afastado, por feridas interiores que o tinham feito mergulhar em mitos de pés de barro, e julgo que aprendeu que pode haver verdadeira fraternidade, para além da fraternidade das armas, se é que esta não é também um mito demasiado celebrado. De todas as aprendizagens que fez, a talvez mais fecunda foi a do amor que encontrou, numa mulher rara, que foi uma docente emérita, que tive a felicidade de conhecer, porque, como leitora de português, em duas cidades europeias, por várias vezes me convidou para ir falar com os seus alunos. Foi, para mim, uma experiência inesquecível. Na contracapa deste romance de Rui Teixeira, aparece, como presença esfumada, mas intensa, o rosto admirável desta grande companheira do romancista. Mas, em lado nenhum se pode ver o seu nome, a não ser na dedicatória, onde uma delicada referência a uma Isabel, não chega a revelar a sua identidade. Eu escrevo-o, para que conste: Isabel Ravara. Obviamente, a Iza do romance.