O uso do Facebook e Instagram para venda de seres humanos escravizados – sobretudo mulheres oriundas de África e do Sudeste Asiático – como empregadas domésticas no Médio Oriente tornou-se tão comum que há dois anos a Apple considerou retirar estas plataformas da sua loja de aplicações, avançou a Associated Press. E continuavam online anúncios deste género de empresas de recrutamento, cujas recrutas muitas vezes acabam privadas dos seus passaportes, exploradas incessantemente e sujeitas aos mais terríveis abusos.
A revelação surgiu no bolo de informação entregue pela delatora do Facebook, Frances Haugen, que mostrou o lado sombrio de uma rede social com com quase 2,9 mil milhões de utilizadores ativos, que teve lucros de 9,2 mil milhões de dólares no último trimestre. “O Facebook de facto tem dois rostos”, salientou à agência noticiosa americana Mary Ann Abunda, sediada no Kuwait, que trabalha para a Sandigan, uma organização não-governamental dedicada a alertar filipinas quanto ao perigo desta plataforma.
“Sim, como anuncia, está a conectar pessoas. Mas também se tornou um porto seguro para pessoas sinistras e para o crime organizado, que espera que estejas no teu momento mais vulnerável para te saltar em cima”.
“Anfitriões” abusivos Há muito que há queixas contra chamado sistema de kafala, que significa algo como “garantir”, ou “tomar conta de”, em árabe. A ideia é que residentes de países do Médio Oriente, ricos em petróleo, apadrinhem migrantes, permitindo importar mão de obra barata vinda de África e do Sudeste Asiático. Na prática, estes migrantes ficam proibidos de mudar de emprego sem autorização ou sair do país, sem qualquer proteção legal, facilitando abusos – muitos dos trabalhadores explorados para preparar a Expo Dubai 2020, que está a decorrer, ou a Campeonato Mundial FIFA de 2022, no Qatar, vivem nestas condições.
Quem esquece o início da pandemia, no Líbano, quando empregadas domésticas eram despejadas às dezenas nas ruas, com os seus parcos pertences, ou à porta de embaixadas, como se de lixo se tratasse? No entanto, pior ainda é quando querem e não conseguem fugir.
“Empregadas domésticas contaram-me que os seus patrões as obrigaram a trabalhar 21 horas por dia, sem descanso ou folgas, davam-lhes pouca comida, pagavam mal, atrasavam ou ficavam com os salários, restringiam as suas comunicações com a família, confiscavam-lhes os passaportes, abusavam-nas física ou sexualmente”, escreveu Rothna Begum, investigadora da Human Rights Watch, na Al Jazeera. Notando que os abusos aumentavam “quando as empregadas domésticas trabalhavam para famílias grandes, eventos familiares o no mês santo do Ramadão. O excesso de trabalho levou muitas à exaustão, doença, depressão, e algumas a suicidarem-se”.
Que muitas acabavam nesta situação devido ao Facebook e Instagram era bem conhecido desta empresa, pelo menos desde que a BBC noticiou que “foram encontrados mercados de escravos no Instagram e outras aplicações”. Foi nessa altura que a Apple ponderou tirara estas plataformas da sua loja.
Alguns anúncios até estavam filtrados por raça, dizendo coisas como “trabalhadora africana, limpa e sorridente”, ou “nepalesa que se atreve a pedir dias de folga”, tendo utilizadores dito ao canal britânico que usavam as mulheres como investimento, vendendo mais barato do que as compraram.
Uma análise da altura verificou que uns 60% dos posts de venda de empregadas domésticas vinha da Arábia Saudita, e cerca de 25% do Egito, avançou a AP, tendo a própria empresa admitido em documentos internos que a medidas que estava a tomar contra a prática não estavam a funcionar.
Por trás dos números, estão um sem fim de histórias de horror. “Era como um animal que estava a ser vendido, de um dono para outro”, contou uma das vítimas à agência, a partir do Kuwait. “Se o Facebook e o Instagram não tomarem medidas mais fortes contra esta anomalia, haverá mais vítimas como eu. E eu tive sorte, porque não acabei morta ou como escrava sexual”.