1. Expectativas e um estádio de vida. A ideia de crise, decadência, apocalipse não existe na Ásia. Muito provavelmente, naquele continente as pessoas vivem muito pior do que na Europa. Mas não perderam nada, o mundo nunca foi tão promissor.
Se a Ocidente se equaciona, reiteradamente, ao longo da última década, se as novas gerações não virão a viver pior do que aquelas que as antecederam; se, em inúmeros lugares da Europa, tantos milhares tiveram de emigrar em função da crise financeira, e económico-social, gerada no pós-2007; se as perspectivas demográficas sugerem certa falta de vitalidade; se a precariedade, como trem de vida, significou um abalo face a uma estabilidade e uma ideia de “progresso” (contínuo) que se chegou a respirar; se o cansaço e a perda de uma religação primordial permitem a invasão de um vazio ou exaustão, na Ásia, os tempos são outros: “aqui, o mundo nunca foi tão promissor.
O futuro é radioso, a vida é uma aventura. Penso em pessoas que vivem com salários de 400 euros por mês, sem regalias sociais, trabalhando doze horas por dia, sem fins-de-semana, em regimes políticos opressivos. Todas essas condições que fariam a nossa absoluta infelicidade significam a emancipação de multidões, a emergência de uma nova mentalidade, um renascimento no planeta.
Penso nos operários explorados que fabricam os nossos iPhones e as nossas calças de ganga, trabalhadores de call centres ou operários que vivem fechados nas instalações das fábricas, dormindo em beliches ou em bairros miseráveis dos arredores das grandes metrópoles. Muitos destes operários estão separados das famílias, muitos são crianças. Mas tentem questioná-los sobre a crise. Crise? Que crise?, perguntarão, admirados. Claro que não podemos entusiasmar-nos com isto. É uma situação injusta, inadmissível, uma calamidade.
A imagem mais pungente da própria crise que vivemos (…). [Mas] Só nós, no Ocidente, nos sentimos assim [em decadência]. É talvez por isso que viajar para a Ásia provoque esta incrível sensação de liberdade, mesmo que, na maior parte dos países, vigorem regimes políticos opressivos. Não vim à procura de nenhuma espécie de iluminação, não sou susceptível a valores alternativos nem estou disponível para reviravoltas ideológicas. Mas, às vezes, basta mudar a perspectiva e muda-se o mundo” (pp.142-143).
2. As “classes médias asiáticas” – e a cultura. Na aurora da sua viagem, Paulo Moura define classe média – conceito que, adiante, dirá “complexo e discutível”, p.77 -, ao encontro da qual vai, em terras asiáticas, nos seguintes termos: “conjunto da população que possui um poder de compra e um padrão de vida que lhe permite não apenas garantir a sobrevivência, mas também dedicar-se ao lazer e à cultura, é a força de uma civilização. São essas pessoas que sustentam a cultura popular e definem os estilos de vida, os padrões de consumo, o gosto e as opções políticas. E as aspirações de uma sociedade” (p.13). Em breve, acrescenta, a classe média asiática será mais numerosa do que a do Ocidente.
Todavia, Richard Oh, escritor e cineasta, em Jacarta, licenciado em Literatura Inglesa na Universidade de Wisconsin, faz questão de retorquir: “classe média é um conceito ocidental. O equivalente, aqui, são os que trabalham para empresas ocidentais, têm uma relação com o Ocidente, falam inglês. Temos essa classe média. Agora essa, de que fala, dos que têm um emprego, assalariados, que alimentam o recente boom económico, isso é uma coisa diferente. É gente muito mais pobre do que imagina. Muito mais pobre do que o seu equivalente no Ocidente” (p.77).
Para este dono de uma livraria na capital indonésia, não é, apenas, o conceito de “classe média” que (como que) inexiste na latitude em que se encontra: “na Ásia, não há o conceito de utopia. As pessoas não sonham com utopias. Sonham com a sua própria liberdade” (p.77). Mais: a dita “classe média asiática”, a existir, não irá dedicar-se à cultura: “a classe média não vai ler livros. Mesmo que as pessoas tenham acesso à escola, isso não as levará a interessar-se por livros ou cultura.
A situação aqui é muito diferente do Ocidente. Lá, existem Universidades, instituições e infra-estruturas culturais, há muitos anos. Aqui, não há nada disso. Nunca houve, na Ásia, planos a longo prazo conduzidos pelos Governos. Aqui há uma cultura de produtividade, as pessoas querem apenas ter dinheiro, bens materiais. (…) Isso de a classe média ter uma vida intelectual é coisa do Ocidente.
Aqui, o Estado nunca criou estruturas para a cultura, nem vai criar. Não há bibliotecas públicas. Por isso, o crescimento económico não tem nenhuma relação com o aumento da literacia” (p.78). A descrição do arquitecto português Sérgio Pereira da Silva, a viver em Saigão há sete anos, corrobora esta perspectiva: “[em Saigão] não há vida cultural, não há concertos, não há teatro, não há um ciclo de cinema, não há exposições. Há um museu de Belas Artes a que ninguém vai” (p.89). Ao que não há, em Saigão, acrescente-se, ainda, “Segurança Social” ou, por exemplo, “PDM’s”. E “ninguém paga impostos” (p.91).
Diversamente, e em qualquer caso, a vida social é, ali, intensa: os vietnamitas vão “a restaurantes, cafés e bares (…) Há uma grande solidariedade familiar. Quase todos os negócios são familiares. E ninguém se sente sozinho ou abandonado. Há sempre uma tigela de arroz” (p.89). No périplo pelo qual Paulo Moura nos conduz, apenas em Seul se dá o encontro com muitas livrarias (e com gente dentro, interessada em livros; em Saigão, há uma certa veneração destes…, mas como decoração do espaço).
3. Uma retirada para as platitudes do campo? Não, a euforia da cidade. A apologia do silêncio, o contacto com a natureza, a fuga para os subúrbios e o campo. Eis a nova tendência? A Ocidente, sim; na China, o que motiva os corações e as mentes é, ao invés, o bulício das cidades: “a poluição, a desumanização dos relacionamentos, a criminalidade, tudo parece ser mau nas cidades modernas.
A tendência no mundo desenvolvido, pensava-se, seria fugir das cidades. A vida no campo, os meios pequenos, as comunidades de dimensão familiar, onde se pode andar de bicicleta e estar em contacto com a Natureza, é esse o ideal de vida dos bem-pensantes do Ocidente.
Nos Estados Unidos, os ricos mudam-se para os subúrbios, onde há melhor qualidade de vida. Na Europa, retira-se o trânsito automóvel dos centros e zonas históricas, promove-se o jogging e o uso da bicicleta. As cidades (…) são um pesadelo histórico, uma vergonha civilizacional herdada dos tempos da revolução industrial…Nada disto faz sentido na China.
Cada cidade tem o seu museu, para mostrar orgulhosamente o património que se construiu, a magnificência do meio ambiente concebido e criado pelo ser humano. E os planos para construir mais, no futuro. (…) Mais de 60 por cento da população (850 milhões de pessoas) já vive nas cidades. Mais do que isso: a China quer transformar-se numa sociedade urbana (…) O Governo quer que isso aconteça. As pessoas querem que isso aconteça. O que é preciso é preparar as cidades para a chegada dos novos milhões.
Com as suas famílias, os seus telemóveis e os seus carros. As cidades chinesas são as mais poluídas do mundo, mas prevê-se a entrada de mais uns milhões de automóveis nos próximos anos. Há que abrir avenidas e criar parques de estacionamento para os receber. Na China, as cidades são a grande euforia colectiva, o grande triunfo. São o futuro. Não está na moda viver no campo, morar perto do emprego, andar de bicicleta ou reencontrar a paz e a autenticidade das pequenas comunidades.
Não é romântico falar de grilos e passarinhos, ninguém quer cultivar uma horta ou respirar ar puro. O que está na ordem do dia é a cidade, a confusão, o barulho, a fumarada. Na China de hoje, a cidade não é um mal necessário: é um ideal. Só uma coisa não está bem: são ainda demasiado pequenas. Deveriam crescer mais e vão crescer mais” (pp.212-214). Nos EUA e na Europa as pessoas têm carro há 100 anos; os chineses, apenas há 20. Estão felizes por terem automóvel e querem trazê-lo para a cidade.
4. Modelos políticos autoritários a Oriente. Se em Saigão, um dos últimos estados onde nos currículos escolares há aulas obrigatórias de marxismo-leninismo (p.92), existem câmaras de vigilância falsas por todo o lado para dar a ilusão de um controlo absoluto de que o Estado (vietnamita) é, aliás, incapaz, e o poder aprecia um turismo que não questiona (como aquele de que esmagadoramente dispõe), Sérgio Pereira da Silva remete a população a uma “confortável desresponsabilização”, sendo que esta se acomoda (“o caminho para a felicidade é deixar de lutar”, atira, em conversa com o jornalista, um fotógrafo e artista visual), e parece dar-se relativamente bem, com um “Estado forte, paternalista, que toma conta das pessoas”, um Estado que “está acima das vidas comuns, como um deus, uma entidade protectora, que não deixará ninguém cair em desgraça” (p.89), uma irónica “vida habitual” (sempre com o pressuposto de nunca se interrogar a nomenclatura e suas políticas), em Manila, onde o poder (autoritário) assume, actualmente, sinal (político) contrário (ao de Saigão), a população apoia, na sua clara maioria, o iliberalismo de Duterte (depois de no último terço do século XX muitos intelectuais terem aderido à ditadura então vigente em troca de benefícios).
O catedrático de Sociologia que acompanha o escritor Paulo Moura em Manila sugere, não sem um olhar corrosivo e desencantado, que, ao invés de sustentáculo da civilização ou da democracia, a classe média “é a base social de todos os fascismos” (p.110). Na digressão pelas “Cidades do Sol”, vemos que o espectro autoritário assoma como susceptível de mobilizar/seduzir milhões de pessoas – ou como a democracia liberal continua a encontrar sérias resistências em não poucos lugares.
Tudo visto, não admira que na (cada vez mais musculada) democracia Indiana, o rapper de Bangalore – não se podem dizer palavrões na rádio, naqueles recantos – proponha, aos seus fãs, e agora ao interlocutor português que o escuta, como solução para os males de que o seu país padece, uma reforma pessoal (de cada qual, o que, por agregação, melhoraria os milhões de vidas menos auspiciosas que contempla) – sem pensar em mudança de “estruturas” ou “sistemas” -, o que o treinado olhar jornalístico logo lerá como sintoma de conservadorismo.
5. Higiene, uma questão. O freelancer que realizou este conjunto de viagens, durante o primeiro trimestre de 2019, encontra-se em Bombaim e está com uma fome que dói. Avista uma carrinha que parece vender uns bolos apetitosos. O pesadelo começa quando se aproxima, da carrinha e dos bolos, e faz o pedido: “do interior de um saco plástico, o cozinheiro começou a tirar pedaços de massa com que moldava bolinhas com as palmas das mãos muito sujas. A massa, que era amarela quando saía do saco, já ia castanha quando caía no óleo nauseabundo. Uma vez frito, o «sonho» era escorrido numa folha de jornal.
O homem fazia-lhe, então, um buraco com a comprida e imunda unha do polegar e introduzia os molhos. Fiquei à beira do vómito. Paguei, sorri e, segurando no pacote gorduroso com as pontas dos dedos, corri dali para fora, em direcção ao caixote do lixo mais próximo” (p.25). Acontece que Bombaim tem 20 milhões de habitantes, metade dos quais vive na rua, na extrema miséria. Os peões andavam pelo meio da rua, porque os passeios eram dormitórios. Não há um centímetro quadrado vazio.
Assim, Paulo Moura, dá voltas e mais voltas, olha para a frente, para trás, para os lados, quer aliviar-se, de vez, do saco e do bolo, mas, para lá de não se avistar caixote do lixo algum, não pode deitar fora comida quando tem a seu lado multidões na mais abjecta pobreza (“ao caminhar, tropeçávamos em famílias. Em velhos, em bebés. Uns dormiam, outros jaziam numa espécie de coma, esqueléticos e sujos.
Eram milhões e, como leprosos, gemiam, ou já não gemiam. Alguns fumavam ópio ou heroína”, p.22), anda e desanda e acaba por não ter outra solução…senão comer o bolo. No ar, odor a especiarias, perfumes, incenso e fezes: “sete milhões de pessoas a defecar onde calhava” (p.22). Ou, no dizer brutal de Naipul, “pergunto a mim mesmo (…) se os hábitos de defecar dos indianos não são a chave de todas as suas atitudes” (p.21).
Não foi a única viagem narrada por Paulo Moura, nesta sua digressão asiática, capaz de nos dar voltas ao estômago, enquanto seguíamos a sua descrição; na China, o repórter mete-se a uma extensa viagem num autocarro velho e mal-amanhado, onde é colocado, ao centro, um recipiente para aqueles que possam enjoar; pior, ali, se concentram os dejectos dos que escarram – “um hábito nacional” (p.194), particularmente virulento em meio rural e machista – e urinam.
As pessoas, no autocarro, vão descalças e trepam naquele pântano. Em Bangalore, Sillicon Valley da Ásia, cidade electrónica onde o software é a obsessão, sem um centro, uma praça ou avenida principal, ratazanas pelos passeios, lixo por todo o lado, trafego rodoviário caótico (só os ricos, se ricos se podem chamar, possuem carros com capacidade de terem janelas fechadas). As pessoas não se dão conta da poluição, porque não conhecem lugar sem aquela (assim tomada como cenário natural e sem específica “visibilidade”).
Em Linquan, na província de Anhei, na China, nas casas não existe WC nem há lugar a esgotos e a higiene é feita na banca (p.175). Ainda que afectando de modo desigual as várias cidades pelas quais passa – uma Jacarta asseadíssima, uma Seul perfeita, por exemplo -, um dos traços marcantes de alguns locais pelos quais Paulo Moura nos leva – com direito a referência literária de referência, acompanhada de um impressivo poder sugestivo sobre o leitor, como se vem de mostrar – é, inegavelmente, o factor higiene.
6. Momentos insólitos, notas exóticas, realidades outras. O escritor de ficção científica Clark Prasad, em Bangalore, fala-nos sobre “bombas de som”: “mencionou ainda certas teorias, segundos as quais as pirâmides do Egipto e os megálitos de Stonehenge foram construídos com recurso ao poder dos sons (…) Bombas de som têm sido usadas por algumas polícias sobre multidões.
Está demonstrado que os insectos produzem sons, em frequências inaudíveis para o ser humano, que provocam doenças. Isso pode ser usado como arma. Ou como forma de controlar a mente. A China já está a fazê-lo e aperfeiçoará essa tecnologia no futuro” (p.31). A 60km de Seul fica a cidade de Songdo, também designada, entre outros, por “Cidade do Futuro”: “a cidade está ligada por uma rede de computadores com sensores nas ruas, cuja função é medir o caudal e controlar o trânsito, e nos soalhos das casas, para avisar a emergência médica em caso de quedas. Os sistemas de lixo, energia e saneamento são automáticos e inteligentes.
Há ecrãs de videoconferência em todas as casas, para entretenimento, comunicação, educação e saúde (…) Não há pobres, não há velhos, o custo de vida é elevadíssimo, as lojas estão quase todas fechadas, há estaleiros por todo o lado, porque o investimento tarda e não há ninguém nas ruas. Comentário de um habitante: parece Chernobyl” (pp.164-165). Janette Toral, especialista no mundo digital, em Manila, prevê que a prazo haverá “cidadãos da internet, com os seus direitos e deveres (…) e instituições para criar e fazer cumprir essas regras, que terão de ser supranacionais, porque o mundo virtual não tem fronteiras (…). Terá de haver um Governo da Internet. Um Estado virtual, algures, com formas próprias de legitimação” (p.136).
Na China, promovem-se 600 mil acções de protesto por ano, 180 mil das quais acções de massas. Existem, em território chinês, 10 milhões de petições por ano, 60% das quais têm que ver com expropriações, dado que 4 milhões de cidadãos chineses são, anualmente, expropriados das suas terras a baixos preços (nomeadamente, por funcionários públicos locais que, depois, vendem propriedades, a grandes empresas, com lucros fabulosos).
Os jovens que vimos em grandes protestos em Hong Kong, relativamente à China, “têm sensibilidade de direita” (p.248). Em Hong Kong, onde vive “a classe média mais cosmopolita do mundo” (p.240), as crianças são educadas na mentalidade do trabalho e da competição e as pessoas vivem para pagar a renda (ou seja, não vivem). Para esse cavalo de Troia do Ocidente na Ásia, ou da Ásia no Ocidente (?) migram muitas jovens, filipinas ou mesmo indonésias, que se tornam empregadas domésticas (internas), 16 horas por dia, apenas com o Domingo livre, juntando-se, neste dia, estas migrantes, numa praça de Hong Kong, com os (diferentes) vestidos que possuem para os diversos momentos da tarde, passados entre aulas de inglês, dança, música.
Elas que são vítimas, por parte dos seus empregadores, de abusos físicos e sexuais não raramente. Conseguindo, contudo, enviar para casa 80% dos 400 euros mensais que recebem como salário (onde já não as esperarão os maridos que, entretanto, as abandonam; mas não já o inverso, quando é o marido a emigrar, vide pp.238-239). As letras das canções de um dos principais rappers indonésio, entrevistado nesta obra, centram-se na necessidade de respeitar os mais velhos, tradição que se está a perder nos grandes centros urbanos, pelo que a rebeldia aqui é chamar ao regresso aos “bons tempos” (as canções, na sua generalidade, de resto, apelam ao optimismo das pessoas, ao jeito de receita de auto-ajuda, o que sucede, igualmente, em Bangalore, cidade na qual um dos escutados neste livro refere como grandes constrangimentos ao bom andamento do mundo na actualidade a família em perda, a força do politicamente correcto, a subtracção da dimensão espiritual que vislumbra a Ocidente).
Na Índia, e “nenhum país é tão surpreendente como a Índia” (p.20), empresas ou indivíduos podem contratar um futurista por dia (p.34), “não temos o conceito de salário mínimo” e 48% da população vive abaixo do limiar da pobreza. Em Jacarta, cidade limpa na qual se vende, frequentemente, pelas ruas, frango frito ou tijelas de arroz enquanto os velhos jogam xadrez, com 30 milhões de habitantes, 80% dos quais com menos de 35 anos, com comboio é moderno e pontual, quando chove milhões de motos param para os condutores mudarem de indumentária (p.54) e pelas 4h da manhã os muezzins de toda a cidade começam a chamar para a oração.
Na Indonésia, onde a maioria da população é muçulmana, apesar das suas 17 mil ilhas e dos seus 600 idiomas, as elites, porém, conhecem-se pelos nomes (apelidos). Nas grandes cidades, fala-se uma mistura de língua local com o inglês. As redes sociais, nestas bandas, “não são para as pessoas ficarem mais sozinhas, mas para melhorar o convívio com os outros. No Ocidente, só amplificam o vazio” (p.79).
As Filipinas – apesar de todas as proclamações de Duterte e de milícias à solta a pretexto do combate à toxicodependência, “não há grandes traficantes presos” (p.110) – têm a mais alta taxa de utilizadores do Facebook e Youtube por milhão de habitantes, num país que alberga shoppings para pobres e shoppings para ricos (p.117; em Manila, temos a maior concentração de centros comerciais gigantes do mundo). País no qual “pobres” e “muito pobres” constituem 80% da população (mais de 40% da população vive com menos de 2 dólares/dia), consegue-se ficar num apartamento por menos de 20 euros/noite (p.115). Por estes lados, utopia seria fazer três refeições ao dia. Mais de metade do PIB filipino provém do sector dos serviços (plataformas digitais ou call center).
Os filipinos, tanto quanto se aceite a generalização da formulação efectuada, dominam o inglês, são dóceis, não questionam ordens, possuem boa formação escolar. Paulo Moura descobriu naquela zona da Terra uma publicidade televisiva de natureza única. Em Saigão, onde há sempre chá gelado e mariscos grelhados para degustar, a escola é gratuita e os alunos vão fardados; segundo o testemunho do arquitecto português Sérgio Silva, “é preciso dar dinheiro à professora para colocar o nosso filho na primeira fila”; a Saúde é gratuita, mas muito má; as ruas têm nomes revolucionários; festeja-se o ano lunar, o festival da Primavera e promovem-se oferendas aos altares de antepassados nas casas de família (p.92).
Um professor de Matemática ganha 400 euros/mês (os professores são respeitados pela população, mas ganham mal) e podemos encontrar polícia e drones num baile de finalistas (a maioria de estudantes, no baile em que Moura marcou presença, não percebia uma palavra de inglês). Seul é “provavelmente, a cidade mais perfeita do mundo”, com um “sistema de transportes maravilhoso”, com cidadãos, aceitando-se, reitere-se, o impressionismo do registo, que têm “humildade no trato” e são “afáveis e prestáveis” (p.168). Menos polidos do que outros povos, apresentam-se “mais directos e ingénuos” (p.163)
Os mais jovens, na Coreia do Sul, país no qual a Samsung representa 20% do PIB, concentram-se em salões de jogos de computador, “único momento em que estou realmente vivo” (no dizer de um imberbe estudante). Com excepção destes momentos ocasionais – umas férias, algum feriado – “é preciso estudar de manhã à noite”, porque há uma enorme competitividade e não se pode deixar a família ficar mal (p.166).
Em Linquan, na China, há quartos para alugar a 1,5 €. Ali, o transeunte depara-se com milhões de pessoas que nunca viram um não chinês (o repórter português será objecto de todos os olhares, comentários e risos em um restaurante) e é possível encontrar uma professora de Inglês que nada percebe daquela língua (professores a ganharem menos de 100€/mês na China rural). As casas são todas iguais e rudimentares, as aldeias feias.
Na China, onde a revolução capitalista começou nos campos e não nas cidades (p.182), o rendimento na cidade e no campo apresenta a disparidade de 5/1. O Facebook e o Twitter são interditos naquele gigante asiático e as pesquisas no Google são controladas (p.184); se colocar as palavras “liberdade” ou “democracia” na tela, a ligação cai; a Weibo – o microblogging – é o principal veículo de protesto no país (p.185). Há bilhetes de identidade diferenciados consoante os cidadãos vivam na cidade ou em zonas rurais (e o mesmo quanto à acessibilidade aos serviços; cidadãos de primeira e de segunda, respectivamente, aos olhos da lei).
Na China, podemos encontrar à entrada de uma fábrica um conjunto de símbolos para indicar a disposição com que o trabalhador se encontra, smile para prevenir depressões; num outro quadro, prémio de produtividade (p.208). Na China, durante a viagem do freelancer português, circulavam, já, os comboios mais rápidos do mundo, com velocidades próximas dos 500 km/h (p.221) e fora construída a maior barragem do planeta. No país em que se dá um crescimento económico a um ritmo jamais visto na história, vendedores vêem às janelas dos comboios trazer pacotes de refeições, a que basta juntar água quente – e em todas as carruagens, há, mesmo, torneira de água quente.
A solidão dá-se, na China, nas aldeias e não nas cidades (ao contrário do que tendemos a pensar e sentir a Ocidente, acerca da anomia na grande cidade; na China, ademais, regressar à aldeia, depois de ir para a cidade, é uma derrota que se evita a todo o custo; e, segundo a tradição chinesa, só se pode deixar a casa dos pais para casar). Nos escassíssimos dias de feriado, que são as férias possíveis para os chineses, estes viajam furiosamente milhares de quilómetros, seja para visitar família, seja para conhecer novas localidades (“ninguém na China conhece a cultura tradicional chinesa”, p.244): de comboio ou de autocarro, na China está sempre tudo esgotado.
A mobilidade social, na China, é possível, mas não é fácil. Uma grande massa humana vive nas instalações das fábricas, nas quais, muitas vezes, não se pode, sequer, ir à casa de banho (p.203), com horários de 14 horas – “muitas mulheres gostariam de se prostituir para fugir a isto” (p.202) -, e onde, afinal, o problema do sentido da vida não se esgota com a laboração contínua: “o problema é não se saber o que fazer à vida”, dado que há, exclusivamente, trabalho (nada mais). Na Foxcon, “uma das formas de protesto é o suicídio” (p.200).
Não obedecer a um patrão, ser empresário, trabalhar a partir de casa, sem horários rígidos, ser freelancer, criar startups eis desejos e tendências muito presentes na Ásia (como no Ocidente). Marantau: conceito indonésio que indica o ideal de sair (da sua terra) para enriquecer, mas voltar. No pensamento asiático, afiança Sung Kai-Cheung, romancista de Hong Kong, “não existem os princípios da não-contradição ou da causalidade determinística.
Tudo é imprevisível, uma coisa pode, ao mesmo tempo, ser outra, e o indivíduo humano não é o centro do mundo, o que é mais consentâneo com a Física Quântica, a programação e a Inteligência Artificial” (p.246). Na Ásia, a ficção literária futurista inclui, recorrentemente, robôs, mas não (observados) como um horror distópico – ninguém tem medo de robôs -, antes de modo optimista.
7.Pistas para viajantes, exploradores portugueses na origem da teoria do “bom selvagem”, epílogo. Levem pouca coisa, malas e malinhas, só o indispensável para viagem, adverte Paulo Moura. Doutra sorte, todos os passeios se tornam muito mais penosos e, de resto, sem demasiados recursos, ficamos mais dependentes dos outros, o que é bom para promovermos mais interacções com os nativos (e assim conhecermos muito melhor as realidades autóctones). Se é um leitor compulsivo (e, em realidade, as viagens para as “Cidades do Sol” ainda são longas e muito convidativas à leitura), há agora alternativas digitais para manter os bons hábitos (livros em formato tradicional, poupe-os).
Claro, o factor económico também conta: quanto mais dinheiro alguém possui, menos coisas precisa de levar para a viagem, dado que pode sempre comprar no (novo) local em que se encontra. No primeiro dia na nova localidade, se emular o jornalista, o leitor vai ser todo encanto e vagabundagem, sem roteiro turístico e à descoberta, por entre ruas escuras e misteriosas. Quando se der com realidades sórdidas, para onde viajar, tome note da perspectiva do repórter de guerra: para compreender o horror, procuro o mal que existe dentro de mim (p.126).
E pondere a ideia de que foram os relatos dos navegadores portugueses sobre povos primitivos a inspirar várias utopias e doutrinas políticas (e concepções antropológicas), da “teoria do bom selvagem” (Rousseau) (p.263), aos socialismos utópicos e ditos científicos (p.264). Numa palavra, “a utopia nasceu na Europa quando a Europa sonhava com a Ásia. Uma Ásia que nunca existiu”.
E prepare-se para, enquanto perambula por Manila, por exemplo, ser surpreendido por interrogações, de um sociólogo que fez amigo, que há muito o torturavam (também): “onde estão os filósofos contemporâneos? Onde estão os Sócrates do nosso tempo?” (p.122; não era uma ausência desta índole, uma “falha” no “pensamento”, julgada ocidental, a motivar, ao fim e ao cabo, a viagem de Paulo Moura que aqui se terá visto irmanado no lamento implícito na questão colocada pelo companheiro asiático de jornada?).
E com este quase alter-ego, a acabar, sem ilusões, por condensar um possível epílogo da indagação com que o cidadão português, ocidental e do mundo partiu: “os países do Ocidente estão em lenta decadência, mas não encontrarão na Ásia nada que os possa ajudar (…) O que podem aprender com a Ásia? Nada. Para se salvar, uma civilização não pode contar com nenhuma outra” (p.114).