Instagram. Envenenar o poço da juventude

Instagram. Envenenar o poço da juventude


Documentos internos do Facebook revelam que, afinal, o gigante tecnológico sabia o mal que o Instagram anda a fazer à saúde mental dos jovens


Há um recente adágio nas redes sociais que diz: Quanto mais frases motivacionais apanho no mural de uma pessoa mais me preocupo com o seu bem estar ou sanidade. Todos sabemos que o contrato social ali aceita ligeiras distorções, todos reconhecemos que as regras do jogo obrigam a que se exponha, não a vida como ela é, mas como seria se pudéssemos editá-la com algumas ferramentas dessas que permitam recortar os aspectos desagradáveis e vincar os outros. Tudo ali está sujeito a uma refracção que pretende enlear a imaginação de quem olha. Se Nelson Rodrigues deixou claro que o ser humano, tal como o imaginamos, na verdade nem existe, cabe atiçar essa desonestidade emprestando-lhe um certo fulgor. É uma espécie de intrujice em que todos consentimos. Dá-se um tremendo desconto à “realidade” que vai sendo emitida por cada um no mais geral de todos os canais. Assim, seja qual for a estação, nas redes sociais nunca falta aos dias nem o mel e o ouro da luz, o anil e o turquesa sempre que há largas extensões de água por perto, nem o vermelho e o rosa dos oleandros ou a variedade da paleta que outras flores permitem acender e exagerar, como à noite não falta aquele preto, tão preto a ponto de parecer azul. Há nessas cores que, por vezes, também divisamos por exposição directa e sem filtros na vida, “aquele fulgor de imortalidade e de eros” que nos faz sentir tudo mais penetrantemente, diz-nos Claudio Magris. E é bem fácil perceber que a razão que triunfa nas redes sociais é da ordem da epifânia, das grandes revelações, cada momento é um despertar para a realidade magica à nossa volta, e tudo procura iludir o outro lado, esse cinzentismo que marca a maior parte dos momentos das nossas vidas. Não é que todas aquelas cores sejam mentira, mas esse constante postal ilustrado consegue ser bem mais venenoso do que qualquer um desses folhetos de agências turísticas com os seus falsos paraísos, uma vez que formulam promessas postiças de vida verdadeira, romance cor-de-rosa embalados por versos de mau gosto, recortados segundo a conveniência de quem não deixa de acreditar no grande amor como forma de redenção. Mas a verdade é que, em grandes doses, essa realidade projectada pelo ânimo particular de cada um de nós não se mostra apenas suspeita, como adquire o ranço de algo que parece forjado entre o embalo alucinogénio e um anseio de uma insustentável intensidade que, invariavelmente, coloca a imagem numa contradição dolorosa com a vida que representa. Aos poucos, todos vamos sendo confrontados já não com aquilo que sabemos sobre as distorções do contrato que vamos firmando nas redes sociais, mas com os efeitos que isso acaba por ter na nossa percepção do mundo, mesmo aquele que lhes escapa, e o impacto que isso tem nas nossas vidas. Desde logo, cada vez são mais aqueles que reconhecem a necessidade de abordar com a maior cautela estas redes, percebendo como a realidade que ali se vai urdindo não é só uma ficção, mas uma ficção vingativa. Sendo a vida aquilo que é, havendo tantos que a sentem como uma desilusão, não falta quem se sirva do seu ressentimento e construa, com as ferramentas ao dispor, uma falcatrua com o intuito de provocar a inveja.

Na semana passada, uma investigação do Wall Street Journal revelou documentos internos do Facebook que deixam claro que o gigante que detém também o Instagram está a par das consequências degradantes que esta rede social tem na vida dos seus utilizadores. Entre as várias conclusões que os estudos e pesquisas conduzidas pelo gigante tecnológico uma das que fez os cabeçalhos em vários títulos da imprensa mundial prende-se com o impacto negativo na auto-estima e imagem corporal das adolescentes. “Trinta e dois por cento das jovens dizem que, quando se sentem mal com o seu corpo, o Instagram ajuda a fazê-las sentir-se ainda pior”, lê-se numa apresentação feita internamente em março de 2020. Mas a reportagem do WSJ deixa claro que remontam pelo menos a 2019 um conjunto de trabalhos internos em que a empresa se deparou com uma diversidade de indicadores que demonstram os efeitos perversos da utilização daquela rede social. Segundo os resultados, cerca de 13% dos adolescentes no Reino Unido e seis por cento dos adolescentes nos EUA associavam pensamentos suicidas à utilização do Instagram. “Os jovens culpam o Instagram pelas taxas de ansiedade e depressão”, lê-se num dos slides de uma apresentação interna. “Pioramos os problemas de imagem corporal numa em cada três raparigas adolescentes”, lê-se noutro. 

Instada a comentar a reportagem do WSJ, a empresa dirigida por Mark Zuckerberg remeteu para um comunicado do Instagram, o qual, não contestando a veracidade dos documentos internos que foram entregues ao jornal por um informador anónimo, critica a investigação por se concentrar num “conjunto limitado de conclusões”, dando a partir delas um salto que encerra “numa luz negativa” a experiência dos utilizadores daquela rede social. O Instagram frisa ainda que o facto de estar a conduzir a sua própria investigação sobre os efeitos da utilização da sua rede deixa claro o “nosso compromisso para compreendermos as questões complexas e difíceis que os jovens enfrentam”. Sublinhando que os estudos internos fazem parte de um esforço constante para “melhorar a experiência” dos utilizadores, o Instagram faz-se valer de um inquérito de 2018 do Pew Research Center que concluiu que 81% dos adolescentes nos EUA afirmam que as redes sociais os ajudam a sentir-se mais conectados com os amigos. “Os nossos resultados foram semelhantes”, sublinha a equipa da rede social. “Muitos [inquiridos] disseram que o Instagram ajuda ou não tem efeito, mas alguns, particularmente quem já está em baixo, disse que o Instagram piora as coisas.”

Os documentos internos a que o WSJ teve acesso compreendem entrevistas dirigidas a grupos focais, inquéritos realizados através da internet e levantamentos feitos diariamente em 2019 e 2020, e se a reportagem teve algum impacto não foi tanto por ter demonstrado algo que não se soubesse já, mas por vir expor as contradições entre aquilo que os executivos do Facebook sabem e a forma como a empresa repetidamente tem minimizado o impacto negativo da utilização das redes sociais que controla. Ainda em Março deste ano, Zuckerberg afirmava sem qualquer pejo que os efeitos positivos da utilização de redes sociais superam os negativos no que toca ao impacto na saúde mental. Já em Maio, Adam Mosseri, o responsável do Instagram, garantia que os testes que a empresa tinha realizado mostravam que os efeitos negativos da rede social na saúde mental dos jovens era “mínimo”. Na altura, esta rede social estreava a opção de se ocultar o número de “gostos” nas fotografias, isto depois de várias pesquisas terem concluído que havia um efeito de ansiedade provocado nos adolescentes que se deixavam emboscar numa corrida desenfreada para conseguirem aumentar esse número e, consequentemente, a visibilidade das suas publicações, estabelecendo uma causalidade entre estas manifestações de aprovação por parte da comunidade e a sua própria auto-estima. Ora, qualquer utilizador do Instagram sabe como uma parte muito significativa do conteúdo desta rede social é feito de selfies, de publicações que funcionam como esse álbum de uma vida outra, de uma alternativa editada de modo a intensificar as cores, a resgatar a vida a partir de alguns instantâneos ao cinzentismo que tantas vezes define o quotidiano. De resto, nesses estudos que os executivos do Facebook caracterizaram como um “mergulho em profundidade na questão da saúde mental”, concluiu-se que alguns dos problemas identificados, como o aspecto da “comparação social”, são específicos do Instagram e não se replicam noutras plataformas. Em certa medida, esta rede social que o Facebook adquiriu em 2012, distingue-se precisamente por privilegiar a partilha de imagens, e o que se lê nas imagens vai muito além daquilo que se vê, ultrapassando o consolo inocente que ali se busca, e infligindo golpes ao nível das fragilidades e complexos de cada um, sobretudo daqueles que têm uma imagem mais insegura de si mesmos. Esses são os que se vêem mais expostos face a quantos por ali se pavoneiam, como são os que se sentem sozinhos aqueles que mais sofrem com as imagens de todos os que documentam incessantemente essa forma de solidão vivida por meio de um pacto gregário, apenas para exibição online. Por isso vamos vendo cada vez mais pessoas em ocasiões sociais completamente imersas nas suas sessões fotográficas, que vão desde esses pactos entre uns e umas que se aturam porque até fazem um bom cartaz ao estilo banda de garagem ou anúncio da united colours of benetton passando pelos grandes planos dos ovos benedict e dos espargos do brunch com a vista do terraço de algum hotel e que serve mais para encher o olho do que deliciar o palato ou sequer encher o bandulho, sem esquecer também aquelas imagens dos pezinhos junto ao mar, à piscina ou ao tanque. E os estudos, sejam estes do Facebook, sejam outros externos, como esse que foi divulgado em Junho passado pela NYU, Standford e pela Microsoft, com o título “Digital Addiction”, têm concluído com uma margem cada vez menor para a ambiguidade que a utilização das redes sociais tem gerado uma série de problemas não só ao nível da auto-estima como do auto-controle. Assim, este último estudo revela que 31% dos casos que envolvem problemas de auto-controle estão já ligados ao uso das redes sociais, indicando que a maioria dos inquiridos sente que um em cada três minutos que gastamos nestas plataformas foi-nos roubado como se tivéssemos resvalado para algum labirinto que capturou a nossa atenção e que, em retrospectiva, foi simplesmente tempo perdido. Seja como for, a questão cada vez mais parece prender-se com a forma como a entrada para este labirinto esta sempre ali à disposição, e ainda nos chama com os seus sinais auditivos e luzes, atraindo e enredando-nos, sabendo alimentar-se de impulsos que temos dificuldade em controlar, de tal modo que nos vemos cada vez mais os prisioneiros desses infernos artificiais e amesquinhantes. E aqui, talvez valha a pena lembrar que o que nos seduz é na verdade o desejo de escapar ao quotidiano, de alcançar esse outro lado da vida. “Move-nos sem que o saibamos a imortalidade, mas movemo-nos não menos fundamentalmente a insatisfação, por isso é indispensável saber honrar os problemas”, escreve Maria Filomena Molder num livro com o título “O pensamento morfológico de Goethe” (ed. Imprensa Nacional). “O problema exerce o seu constrangimento próprio, possui a sua própria irradiação, é, portanto, absolutamente necessário saber contornar o que é difícil, o que nos olha de longe, contornar, desenhando, pondo em relevo a sua irredutibilidade, exaltando-a, batendo contra ela a cabeça, recusando dissipá-la através de alguma explicação engenhosa que supostamente pudesse anular a sua obscuridade. Fazendo isso, estaríamos a enganar a nossa insatisfação e empreenderíamos a caricatura da nossa ânsia de imortalidade.”