Têxtil e vestuário. “Somos do melhor que há no mundo” mas é preciso evitar “globalização selvagem”

Têxtil e vestuário. “Somos do melhor que há no mundo” mas é preciso evitar “globalização selvagem”


Na Europa, 85% da roupa tem proveniência asiática e, ao i, responsáveis dos setores têxtil e vestuário falam na necessidade urgente de novas regras no mercado europeu para que estes setores – tão importantes para o país – continuem a crescer mas sem “concorrência desleal”. Está a ser preparada uma carta para enviar à Comissão…


Os setores têxtil e vestuário são dos mais importantes para a economia portuguesa e só nos primeiros sete meses deste ano, o têxtil viu as exportações crescerem 17,7% em relação ao período homólogo de 2020 e 0,2% face a 2019. No entanto, vê-se cada vez mais a braços com grandes concorrentes asiáticas – principalmente mas não só. E é exatamente esta questão do mercado que César Araújo, presidente da Associação Nacional das Industrias de Vestuário e Confeção (Anivec) quer trazer para cima da mesa. “O nosso problema não é a capacidade das nossas empresas. É a questão do mercado. Se 85% de todos os produtos consumidos na Europa têm proveniência asiática, o que se pode questionar é, até que ponto, vamos ter mercado ou não para as empresas europeias operarem dentro do mercado europeu”, disse ao i.

Como exemplo, este responsável do setor usa a Shein – empresa que vende exclusivamente online – “que coloca produtos como um casaco a 20 euros ou umas calças a 12 euros com transporte, com pagamento de direitos aduaneiros, com pagamentos de IVA…”. E, por isso, não tem dúvidas de que “é preciso fiscalizar como é que essas empresas conseguem fazer isso”. Aliás, para César Araújo, esta é uma “lacuna da Europa, onde é preciso atacar já”. E sugere “monitorizar o oportunismo que está a ser desencadeado por empresas que aproveitam lacunas da lei europeia”, questionado a reciprocidade desses mercados para com a Europa. “O que interessa a Europa comprar quando esses países não nos compram? Não bate só no vestuário e na moda. Vai bater a todos os setores, é uma questão de tempo”.

O presidente da Anivec garante que o nosso país pode dar cartas neste indústria até porque “somos o melhor que há no mundo”, mas admite que temos de “estar atentos” sob o risco de “não conseguirmos evitar os desafios que se colocam pela frente que é uma globalização selvagem”.

Apesar de garantir que o setor do têxtil e do vestuário não tem problemas com a concorrência, César Araújo explica melhor quais são os problemas vividos pelos setores neste momento. “Os nossos problemas têm duas vertentes: a primeira é a reciprocidade dos mercados”. Isto porque, defende, “a Europa não se pode abrir sem exigir que os outros também comprem produtos europeus”. Já o segundo problema está relacionado com “a exigência que é pedida às empresas europeias quando não se pede às empresas terceiras. Não falamos só do mercado asiático. Falamos dos países terceiros que se relacionam com a Europa. Isto é, hoje em dia, a questão ambiental, a sustentabilidade social, a pegada carbónica… a Europa exige às empresas europeias e não exigem às empresas que exportam para a Europa”. E, por isso, garante: “Estamos a sofrer uma concorrência desleal”.

Face a todos estes problemas identificados, a Anivec está a fazer um trabalho para entregar em Bruxelas sobre “essas empresas que não pagam absolutamente nada e que têm assente o seu negócio nas fragilidades europeias”. A carta será apresentada, entre outros, aos comissários europeus, incluindo à presidente da Comissão Europeia, aos eurodeputados portugueses que estão em Bruxelas e também ao Governo português. “A Europa tem que regular de uma forma honesta e equilibrada e não pode compactuar com más práticas”, defende César Araújo.

Para o responsável, é importante que a Europa rastreie estas situações e explica, com exemplos, o que pode acontecer depois. “Imaginemos que hoje a nossa indústria utiliza energias verdes. O custo da energia verde é muito superior ao da energia produzida através do carvão. Se as empresas que produzem utilizam carvão, vão ter uma energia mais barata. Por isso ela terá que pagar um imposto por não utilização de boas práticas. A Europa não pode ser a Europa verde e o resto do mundo cinzento”. 

É então necessário, na sua opinião, que os países se organizem e utilizem boas práticas a nível mundial. Mas antes de isso acontecer, a Europa tem de começar no seu mercado e também nos seus clientes. “Os clientes não podem exigir da Europa para ficarem bem com o seu consumidor e depois 90% da sua mercadoria que vem de países terceiros não cumpre nenhumas regras”.

Para César Araújo, o mercado português “é muito pequeno”. “Somos 10 milhões de habitantes. Há cidades europeias com mais habitantes que Portugal. Nunca devemos pensar micro e outro dos problemas que temos é que pensamos micro. Para Portugal e para o Governo, uma empresa com mais de 250 trabalhadores é uma grande empresa… não é nada. É um grande disparate”. E para o responsável não há margem para dúvidas: é preciso e é importante olhar para a Europa como o nosso mercado doméstico porque “enquanto não pensarmos assim não vamos beneficiar do potencial que é a Europa”. 

Boas práticas têm de ser cumpridas Quem corrobora a opinião de César Araújo é Mário Jorge Machado, presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP) que explica ao i que “a concorrência asiática afeta o mercado têxtil sobretudo se não for cumpridora das práticas que todos temos de cumprir”, dando destaque à proteção do ambiente e das pessoas que trabalham em qualquer indústria. É que, “usando práticas menos adequadas e menos corretas”, estes mercados “conseguem vantagens competitivas que depois eliminam a concorrência que produz de acordo com as boas regras”. 

E alerta que a Europa conta com um conjunto “muito apertado” de regras em termos dos produtos que se podem usar nos têxteis uma vez que alguns podem ser nocivos para a saúde. “Hoje sabemos que vêm produtos da zona asiática, alguns deles trazem esse tipo de componentes que são cancerígenos, provocam alergias e neste momento ainda vão ter uma agravante adicional: estamos a evoluir para uma economia circular e este tipo de produtos, depois vamos parti-los em pedaços para reintroduzi-los na economia circular”, diz Mário Jorge Machado explicando que o que poderá acontecer é que vai existir o potencial de “estarmos a envenenar os produtos que foram produzidos por boas práticas”.

Mas o que poderia ajudar nestas situações? Para o presidente da ATP não há dúvidas: primeiro, a Europa deveria fazer como a China faz aos produtos que não são produzidos no país. “Têm de ser testados por laboratórios europeus. A China não aceita um teste de um laboratório europeu a um dado produto. Tem que ser certificado num laboratório chinês. Na Europa devíamos fazer algo idêntico para termos a confiança de que os produtos, os testes que estão ser feitos, estão a ser feitos de forma isenta”, diz. Mas há outro ponto a mudar: “Os produtos, para entrarem na Europa, tinham que ter garantias de que, para além de ter as garantias explícitas de que não foram fabricados de acordo com más práticas usando produtos químicos que não são permitidos usar na Europa”, explica. 

E, tal como o presidente da Anivec, também o presidente da ATP fala na importância dos consumidores nestes processos. “Parte também dos consumidores exigirem transparência sobre as cadeias produtivas usadas no fabrico dos produtos”, acrescentando que os fabricantes “deviam ser obrigados” a colocar na etiqueta a cadeia produtiva que foi utilizada para fabricar aquele produto para o consumidor poder ter informação se estava a comprar um produto que foi produzido por boas práticas ou não. “Depois o consumidor já tinha opção de dizer que não queria comprar um produto que foi produzido de acordo com práticas sociais e ambientais corretas”.

Este é, então, “um dos grandes objetivos que neste momento a UE está a desenvolver a estratégia para o setor têxtil e de vestuário e um dos grandes pontos que temos em cima da mesa é que o consumidor tem direito a ser informado”.
Questionado se esta é ou não uma concorrência desleal, o responsável apenas atira: “Se usasse mão de obra escrava, claro que conseguiria ser muito mais competitivo do que se não usar. E, portanto, estou a eliminar quem produz de acordo com as boas práticas, recorrendo a outras que são totalmente reprováveis”.

Um PRR ‘assim assim’ Questionados sobre se o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) português pensa no setor têxtil e do vestuário, os dois responsáveis não dizem que não, mas garantem que é necessário ir mais longe. 

“O PRR tem alguns elementos para o setor têxtil”, começa por referir o presidente da ATP. E acrescenta: “Atendendo à dimensão do setor têxtil tem em Portugal e na economia portuguesa, deveríamos estar a investir mais na parte da reindustrialização do setor”, explica, referindo-se a pontos como a reindustrialização através de investimentos em inovação da parte das IOT’s, através da digitalização, através da invenção em novos métodos, materiais e processos de reciclagem. Por isso, defende: “Está lá mas aquém daquilo que são as necessidades de uma indústria que tem a dimensão de uma indústria de têxtil e vestuário”.

Uma opinião que é partilhada por César Araújo ao defender que o PRR “terá de ser adaptado”. E explica porquê: “O têxtil e o vestuário são setores especiais e por isso têm de ter medidas especiais porque não desenvolvemos baterias, não somos produtores de automóveis”, lembrado que são atividades que representam “quase 7 ou 8%” do emprego em Portugal, “com muitas das nossas empresas no interior do país”. E, por isso, defende que é importante pensar no futuro: “Portugal tem que pensar já em criar a fábrica do futuro. E é isso que estamos a trabalhar para desenvolver a fábrica do futuro. O PRRpode ser um instrumento para a dinamizar com boas práticas, boas aplicações, utilização de energias renováveis… Portugal pode ser pioneiro nisso”, finaliza o presidente da Anivec.