Spartak. Das margens do Sado para o gelo de Moscovo

Spartak. Das margens do Sado para o gelo de Moscovo


O frio metia medo nesse mês de outubro de 1971 quando o Vitória de Setúbal se tornou na primeira equipa portuguesa a jogar na Rússia (então URSS) contra precisamente o próximo adversário do Benfica – o Spartak Moscovo. Ficou tudo preso no gelo de um empate (0-0).


Moscovo? Em outubro? Não se falava, na imprensa portuguesa, de outra coisa. Primeiro porque era a primeira vez que uma equipa portuguesa se deslocava à Rússia, então_URSS – agora que o Benfica vai ter pela frente o Spartak não passa de uma banalidade –, depois porque havia alguns que adivinhavam para o Vitória de Setúbal, precisamente perante o mesmíssimo Spartak Moscovo, as misérias dos exércitos de Napoleão e de Hitler, destroçados pelos graus negativos e por aquela neve que se vai, a pouco e pouco, transformando numa lama da qual os calcanhares não descolam.

Dia 21 de outubro de 1971. Escrevia mestre Mário Zambujal: “Os seis/sete graus negativos de Moscovo não congelaram o sonho dos setubalenses. A despeito de ter treinado e de não ter gostado do Estádio Lenine (hoje chama-se Luzhniki e recebeu a última final do Campeonato do Mundo). E como o frio é o tema de hoje, e de todos os dias, não se esperam mais de cinco mil pessoas nos cento e três mil lugares que ele tem à disposição”.

O Setúbal não congelou em Moscovo, mas conseguiu congelar o resultado – zero-a-zero. Ainda assim acima da temperatura moscovita. Porque era a primeira vez que o Estádio Lenine recebia uma delegação portuguesa, os organizadores decidiram tocar o hino nacional, algo que calhou bem à malta do Sado, ali meio perdida num país que, segundo se dizia, escondia mistérios insondáveis.

Nesse tempo, o Vitória tinha o estilo inconfundível que lhe foi impresso por Fernando Vaz, toque para cá, toque para lá, adversário metido numa teia de aranha da qual não parecia capaz de se libertar. O terreno estava duro como pedra, mas nem por isso Octávio, Matine, José Maria e Guerreiro deixaram de mandar no meio campo. Na frente, o poder de Torres e o futebol de serpentinas de Jacinto João, com os seus pés de belbutina, provocavam medo, muito medo, a Kisolovo, Abromov e Lobchev. Enfim, tudo a favor menos o frio. Mas desse já falámos que bastasse.

 

Diretos

O futebol dos russos não dava espaço a movimentos de rococós. Fisicamente poderosos, sem ponta de imaginação, tratavam de recuperar a bola e, com o mínimo de passes possível, partir em velocidade na direção da baliza de Torres. O outro Torres, claro,_Joaquim_Torres, guarda-redes, não José Torres, avançado e Magriço, ambos hoje passando tranquilamente pelos jardins do país do nunca mais.

É verdade que, segundo o cronista da época, Mário Zambujal, que o Vitória ainda andou por ali uns minutos aos papéis. Sobretudo no início do segundo tempo, momento em que os russos resolveram que estava na hora de conseguir pelos menos um golo que os ajudasse na tarefa árdua do Bonfim, na segunda mão. Estiveram perto, mas os resultados são, na mesma proporção, feitos de falhanços e de acertos.

Dez mil pessoas, apenas, estiveram nesse final de tarde no_Estádio Lenine para ver, pela primeira vez, uma equipa de Portugal jogar no seu país. Podem ter saído frustrados com o resultado, mas esse não era, de forma alguma, um problema dos sadinos.

Nascido nos calores tropicais de Luanda, Jacinto João parecia o mais inerte de todos, perdendo bolas em exagero, o que encalacrava a vida de Carriço, o defesa que tomava conta das suas costas, e incapaz de se lançar em raides de velocidade que, muitas vezes, pareciam as linhas de um eletrocardiograma.

Com o tempo a passar, o Vitória firmou-se. O resultado nulo obtido num universo diferente daquele em que estava habituado a viver, era bastante animador para a reviravolta no Bonfim. E tanto assim foi que, no dia 4 de novembro, aí de estádio completo – 40 mil espetadores – Octávio (29m), José Torres (53 e 56m) e Jacinto João (77m) construíram uma goleada sem rebuço. Ao desaproveitarem as vantagens de jogarem em Moscovo na primeira mão, os jogadores do Spartak caíram na ratoeira do futebol artístico e operário, o mesmo que levou o Vitória a grandes resultados nas provas da UEFA durante mais de uma década a fio.

Hoje, uma ida a Moscovo não passa de uma simples ida a Moscovo, capital moderna de uma Europa moderna. Ao tempo, foi um acontecimento. Até pela questão incontornavelmente política metida ao barulho. Que passou ao lado da eliminatória…