Mamadou Ba. “O Estado é o garante do monopólio da violência através da Polícia”

Mamadou Ba. “O Estado é o garante do monopólio da violência através da Polícia”


Assume que o Chega nunca devia ter existido e que Portugal é um país racista, até pelo seu passado colonial.


Saka, Sancho e Rashfor, e antes deles Mbappé, falharam a marcação do penálti decisivo, dentro do campo conheceram, com indisfarçável sofrimento, a derrota, e fora do campo foram confrontados com uma vaga de insultos racistas nas redes sociais, de tal forma que o capitão da seleção inglesa, Harry Kane, foi ao Twitter dizer que a seleção não queria aqueles adeptos. Para Mamadou Ba, a Europa ainda não interiorizou que “a cor da minha pele é o meu país”. Mas foi sobretudo de Portugal e de uma espécie de ‘’Némesis’ para Mamadou, André Ventura, que falamos. Um país onde o luso-senegalês ora é português, ora é senegalês, sendo que ele é, e ao mesmo tempo, a mesma coisa com dois filhos “portuguesíssimos”. 

Mamadou Ba nasceu e cresceu no Senegal. Em Dacar, na Universidade Cheikh Anta Diop, licenciou-se em Língua e Cultura Portuguesa. Em 1997, mudou-se para Portugal, onde é um dos mais visíveis, e polémicos, ativista antirracismo. Foi dirigente do Bloco de Esquerda. Saiu do partido e do Parlamento, mas mantém-se ativamente na plataforma SOS Racismo e em todas as expressões de luta contra o racismo.
 
Correm rumores de que está a viver fora do país porque se sente ameaçado em Portugal, são rumores, ou é mais do que isso? 

São rumores. 

Mas neste momento não está em Portugal? 

Neste momento não estou em Portugal por razões pessoais. As pessoas sabem que estive – estou – sob ameaça permanente. Há muitos anos que sinto a minha vida ameaçada, isso faz parte daquilo que faço. Mas é normal que as pessoas façam especulações, sobretudo, quando desapareço um bocado do espaço público. 

Hoje sente-se mais ameaçado do que se sentia há um ou dois anos?

Sinto-me mais ameaçado porque o ambiente político mudou, nós temos uma direita mais institucionalizada e mais violenta, é natural que me sinta mais ameaçado. Além do mais, continuo a defender uma tese, que é polémica, de que há uma evidente infiltração da extrema-direita nas forças de segurança, e isso não sou só eu que o digo, são os relatórios internacionais que apontam para esse facto. Parece-me que a porosidade política entre o Movimento Zero e determinados grupos de extrema-direita, e o próprio Chega, não deixam margem para dúvida dessa infiltração, o que torna a minha situação perigosa, uma vez que quem tem de garantir a segurança dos cidadãos são as forças de segurança, que se estiverem infiltradas pelas forças da extrema-direita, que me querem ver morto a todo o custo, é evidente que tenho a minha vida em risco. Mas não quero dramatizar, não quero fazer nenhuma entrevista biográfica.

Quanto ao Movimento Zero temos várias pessoas a escrever sobre o assunto, o Mamadou não está sozinho nos seus reparos, mas, ainda assim, acha que as pessoas estão distraídas relativamente a esta questão? 

Não é que as pessoas estejam distraídas, há um problema de fundo relativamente ao Movimento Zero, aliás, duas questões: a primeira tem a ver com a falência do movimento sindical tradicional; a segunda é o sentimento de insegurança que é veiculado permanentemente por esse movimento, que cria a sensação de que só o Movimento Zero é que pode garantir a segurança das populações. As pessoas não veem o que está por trás dessa movimentação, veem o que mais lhe toca, que é um sentimento de insegurança, muito manipulado e instrumentalizado por esse movimento. Basta olharmos para as páginas do Facebook dos ‘grupelhos’ que congregam o Movimento Zero – o Carro de Patrulha, o Charliepapa e outros – para percebemos como isto é instrumentalizado. Ou basta olharmos para os outdoors que colocam no centro da cidade para perceber que há uma estratégia de medo desses movimentos – ainda por cima próximos de alguns setores sindicais mais conservadores – a ser instigada na população, o que aumenta ainda mais o grau de alheamento das pessoas, e, até, diria eu, das tutelas. Porque há já, nesta altura, matéria suficiente para se intervir. 

Considera que em tempos de insegurança as pessoas aceitam mais facilmente um discurso securitário sem questionarem as motivações desse discurso? 

Num regime democrático a Polícia devia ser o garante de segurança de toda a gente, quando não acontece, afeta a solidez do regime. O Estado é o garante do monopólio da violência através da Polícia. Se a Polícia, como instrumento do garante do monopólio do Estado, é infiltrada por forças noturnas ou sinistras põe em perigo o regime democrático. 

Sem querer fazer análise política, mas o facto de termos atualmente um ministro da Administração Interna que está fragilizado, isto é, não estando em causa a autoridade do Estado…

… está, está. O senhor ministro, e com todo o respeito, está fragilizado há muito tempo, e creio que os episódios no seu consulado não abonam a favor da sua autoridade. O caso da esquadra de Alfragide, o caso do aeroporto, enfim, a própria movimentação da extrema-direita dentro das forças de segurança, tudo isto não garante solidez da tutela. Cria algum ego dentro das forças mais reacionárias dentro da Polícia, que acham que podem esticar a corda, uma vez que há uma autoridade fragilizada da tutela e podem tentar aproveitar-se disso. É bom notar, e é uma coisa que não foi muito destacada pela comunicação social, que é curioso que o maior sindicato das polícias, um dos mais tradicionais do sindicalismo policial, esteja neste momento a ser dirigido por alguém que é declaradamente pró-Chega, quando o Chega é um partido que nos diz que quer acabar com esta República. 

Parece-me que essa ideia já caiu do discurso do Chega. E falando em discurso, muito são os que defendem que há racismo em Portugal, mas que Portugal não é um país racista, no entanto, estas questões agudizaram-se nos últimos tempos, e não só em Portugal, consegue perceber porquê? 

Devemos discutir essa questão com alguma honestidade política, sem grandes acrimónias, porque a questão racial, a questão do racismo, não é só das vítimas do racismo, é um problema do regime democrático. Não há democracia saudável com racismo. Para aferirmos da gravidade do racismo temos de evitar determinados exercícios. Por exemplo, este exercício, que me recuso a fazer, se Portugal é mais ou menos racista do que outros países, não nos ajuda a ter uma discussão que conduza à resolução do problema. É óbvio que um país com a nossa história tem racismo estrutural, como têm outros países que têm uma história colonial igual à nossa. Não vale a pena, acho eu, fixarmos nessa ideia de que cada vez que alguém aponte a dimensão estrutural do racismo esteja a apontar o dedo à sociedade como um todo. Nós somos todos responsáveis pela sobrevivência do racismo, pelo que fazemos e pelo que não fazemos. Acho que o racismo sempre existiu em Portugal. O que não havia antes, e essa é a diferença, era uma autoestrada institucional para o racismo, que se chama Chega. Durante anos criámos a ilusão de que Portugal era uma ilha em relação ao resto da Europa, porque não tínhamos nenhum deputado da extrema-direita eleito para a Assembleia da República, porque havia representação política consistente das forças de extrema-direita no poder local, então, alimentámos o mito de que Portugal seria uma ilha, e não é. Basta ver a ascensão de André Ventura para perceber que não é um acaso, há alguma base social para ele poder ter este crescimento, não é só pelo desgaste da credibilidade dos políticos junto dos cidadãos – porque há um descrédito grande, há um divórcio entre os cidadãos e o espectro político –, mas não é só isso que o explica. Há uma base social que sustenta o programa que o Chega corporiza. E também é bom lembrar que em Portugal, entre 2017 e 2020, houve vários encontros internacionais da extrema-direita, da extrema-direita mais dura, mais assanhada, tivemos em Portugal pessoas muito próximas do Steve Bannon, e não é por acaso que escolheram Portugal. Não é normal que nós, em Democracia, nos tenhamos lembrado de fazer um programa de televisão a perguntar se as pessoas tinham saudades do Salazar. 

Falou da autoestrada chamada Chega, mas essa não é um via de sentido único, o Mamadou também endureceu o seu discurso. Falemos de si e da maneira como está a contribuir para o debate público. Vejamos este seu post no Twitter: “Goucha, o gay que tentou reabilitar Mário Machado, um criminoso nazi, homófobo assumido, sai agora definitivamente do armário racista e apoia a candidatura racista do PSD na Amadora. Isto vai para lá do sinistro homonacionalismo”. Esta linguagem não o envergonha? 

Não, porquê? Não há qualquer condescendência com a indignidade. A homofobia e o racismo são indignidades, e não me peça para ter calma e tento na língua quando se trata de indignidade. Não vou ter. Porque quem compactuar com a indignidade é que é o responsável pelo seu alastramento. Mas deixe-me dizer-lhe uma coisa, e já agora, nunca me passaria pela cabeça pôr em causa a orientação sexual do Goucha, nunca. Nunca.

Mas é a linguagem, o tom…

… mais grave do que o tom, é uma sociedade sentir-se mais agredida pelo tom de uma reação à agressão do que se sentir indignada com a agressão. Não há meios termos para apreciar uma agressão. 

Neste momento sentimos uma espécie de medo por parte dos moderados, que deixaram de ter espaço…

… quando me falam de moderados lembro-me de Martin Luther King ou de Nelson Mandela, são duas pessoas que, muitas vezes, os “supostos” moderados me atiram à cara, dizendo: “se tu falasses como esses dois”. Quero lembrar que Nelson Mandela esteve 27 anos preso porque foi considerado terrorista e Martin Luther King foi morto dias depois de ter feito o discurso mais pacífico do seu trajeto histórico e político. Esta conversa de que é a agudez ou a violência das minhas palavras que aumentam o racismo é apenas para não se assumir responsabilidades.

Não estou a dizer que as suas palavras aumentem o racismo, mas pergunto se não lhe parece que a radicalização do seu discurso leva ao confronto, que a dada altura deixa de ser vocal e se torna verdadeiramente ameaçador? Dito de outra forma, acha que o tom do seu discurso está a fazer bem à Democracia?

Claro que sim, a Democracia não convive com nenhum consenso mole em relação aos seus valores principais. Os valores principais da Democracia começam pela dignidade humana, não há Democracia sem dignidade humana, e qualquer afronta à dignidade humana não merece condescendência. Da minha parte não a terá. 

O tom que usa é o tom que quer usar, mas não se preocupa com o facto de radicalizar…

… radicalizada já está a situação. Sinceramente, parece-me injusto este tipo de apreciações porque, e ao contrário do racismo, o antirracismo, e por mais virulento que seja, nunca matou ninguém. O racismo já matou e mata. As pessoas atirarem-me à cara que a violência das minhas palavras são uma ameaça, um perigo à paz social, é de uma insensibilidade ao sofrimento alheio, porque o racismo é um sofrimento permanente. 

O Mamadou tem um discurso estruturado, não diz nada ao acaso, mas, e ainda assim, tem este tipo de discurso, porquê? Usava um discurso que não era ouvido e, de repente, apetece-lhe mudar? 

O meu discurso não mudou, o que mudou, o que aumentou, é a sensibilidade das pessoas racistas, que saíram do armário e que se sentem ameaçadas pelo meu discurso. Também porque há uma espécie de consenso mole em relação ao nosso passado colonial, que é o albergue primacial do racismo contemporâneo. As pessoas sentem-se desconfortáveis com a forma como abordamos a questão. Não é possível falar da questão do racismo em Portugal sem olhar para o passado colonial. Não é possível! 

O Mamadou nasceu em 1974, tem o mesmo tempo da Democracia em Portugal…

… e já sofri o suficiente para perceber que o racismo é algo com que não se consegue conviver. Nenhuma Democracia convive com o racismo. 

Como gostava que estes temas fossem tratados nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. 

Que fosse abordado com coragem, honestidade, seriedade e compromisso político. Quando queremos resolver um problema, qualquer que seja, empreendemos num esforço coletivo nesse sentido, a partir da ação política, mas também da ação educativa, é preciso que haja um investimento político, mas também económico no combate às desigualdades com fator social. E nós temos que enfrentar o nosso passado com responsabilidade, não é julgar, as culpas estão estabelecidas pela própria História, mas é preciso a assunção de responsabilidades para que nunca mais se repita as vilanias da História. O deficit de desigualdade com que se confrontam as pessoas racializadas resultam desse passado, e é preciso um compromisso coletivo para o combater. Temos de olhar para o nosso mapa político, económico e social e identificar as razões pelas quais há uma falta de representatividade das pessoas racializadas. 

Diria que tem tudo contra o cadastro étnico-social do Chega? 

Claro. Porque uma coisa são recolhas dos dados étnico-sociais para aferirmos das desigualdades e ter políticas públicas para as combater, outra coisa é identificar determinada comunidade, estigmatizá-la e fazer como se fez no tempo do regime nazi, dizer que esta comunidade por beneficiar deste ou daquele apoio fiscal merece o opróbrio da sociedade. A proposta do Chega é uma proposta nazi. Aliás, se há outra coisa que devemos perceber é que o André Ventura está a testar o sistema. Quando ele se lembrou de dizer que ia confinar a comunidade cigana, sabia que era uma proposta inconstitucional. Quando ele pediu e quis entregar uma proposta de lei para acabar com a Comissão para a Igualdade contra Discriminação Racial…

… acha que André Ventura o faz porque acredita ou porque tem a ver com uma forma de fazer política que lhe é favorável? 

Uma das estratégias de André Ventura é enfraquecer o regime ao ponto de o poder subverter. Todas estas políticas são políticas de subversão da ordem democrática. E ele tem noção disso. Quanto mais adesão tiveram essas propostas, mais próximo ele fica da sua capacidade de subversão da ordem democrática. 

E o Mamadou tem sido um excelente instrumento da estratégia política do André Ventura, justamente por ser tão reativo. 

Acho inacreditável que me esteja a dizer isso. 

Se formos ao seu Twitter, diria que a maior parte dos seus posts são para falar de André Ventura, e não digo isto como juízo, mas como análise. E por mais nobres que sejam as suas razões, não lhe parece que podem, também elas, ter um efeito perverso? 

Não. Isto é a mesma coisa que dizer que é o discurso antirracista que aumenta o racismo. Há uma base social do racismo em Portugal. É preciso enfrentar isso e não encontrar desculpas. Nem eu, nem ninguém podem servir de desculpa para não se enfrentar o racismo estrutural que existe no país. Em todo o espaço europeu em que a estratégia foi varrer para debaixo do tapete as questões relacionadas com extrema-direita deu mau resultado. Não falar do problema não o faz desaparecer. É preciso enfrentar o boi tal e qual como ele está. André Ventura é uma ameaça à Democracia. 

E o Mamadou acha que é a pessoa certa para enfrentar o André Ventura, sendo que é tudo aquilo que o André Ventura enfatiza.

Não quero ser a pessoa certa ou incerta, não é uma questão moral. Tanto eu como o André Ventura só temos uma coisa a fazer: respeitar a ordem constitucional que é antirracista.

Voltamos ao tema Goucha, por que sentiu a necessidade de ser tão, digamos, virulento? 

Quando o Manuel Luís Goucha convidou o Mário Machado, a maior parte das pessoas não percebeu as nossas críticas. E quando nós criticamos a forma como ele abriu alas à Suzana Garcia, também houve quem não tenha percebido. O que eu quis explicar com o meu post é que o trajeto de Manuel Luís Goucha não é inocente. O facto de ele se juntar à candidatura de Suzana Garcia não é inocente. Ele comunga da filiação ideológica e doutrinária da Suzana Garcia, que é uma racista. Digam o que quiserem ou que ela chore as lágrimas que quiser na televisão. 

Acha que Suzana Garcia, no fundo, e dado a sua experiência na África do Sul, estruturou o seu pensamento a partir de uma ideia de supremacia branca? 

Absolutamente. Aliás, o exemplo que ela foi buscar para chorar é típico de racistas empedernidos, o que o Du Bois já estudou no século XX, que há um privilégio simbólico entre pessoas brancas e as não-brancas. 

Ficaria surpreendido se a Suzana Garcia tivesse um bom resultado na Amadora? 

Não, não ficaria surpreendido. Não fico. 

E como é que o explica? 

A luta não é entre mim e a Suzana Garcia, é entre a Democracia e o Fascismo, é entre a Democracia e Racismo, se a Suzana Garcia tiver um bom resultado isso confirma apenas aquilo que temos vindo a dizer nos últimos anos, que Portugal tem uma base social que está disposta a acolher um programa racista. É simples. Não sei se as pessoas têm consciência, mas a Amadora é o concelho do país onde mais pessoas negras foram mortas às mãos da polícia. Há uma instrumentalização do atual executivo na questão de segurança na Amadora, que é mais vantajosa para a Suzana Garcia do que para qualquer outra força política que pretenda consolidar o regime democrático. 

Vamos fazer uma pequena reflexão sobre o seu ativismo, acha que o tem feito da forma certa? Nos últimos tempos não é o que diz que é debatido, é o próprio Mamadou.

Quando as pessoas não discutem as minhas ideias e discutem a minha pessoa, isso revela alguma coisa. 

Quem falhou? 

A sociedade é que falhou. Eu disse sempre o mesmo, nunca mudei de tom, de estratégia, de forma de estar. Nunca. O racismo está aqui e é contra ele que estou mobilizado. Quem mudou foram as pessoas que não tinham o megafone do racismo institucional na pessoa do André Ventura, não verbalizam o que sentiam. André Ventura abriu a caixa do Pandora e o politicamente correto é apenas um biombo para as pessoas darem largas aos seus comentários racistas. Não me arrependo de nada do que fiz até agora. A doença racial da sociedade só será combatida com sinceridade e frontalidade. 

Acha que o Chega devia ser proibido?

O Chega nunca devia ter existido, porque professa valores e ideais que não são constitucionais. 

Falemos dos recentes casos de jogadores de futebol, elementos de seleções nacionais, afrodescendentes, que falham penalties. Também se sente derrotado?

Não, derrotado é quem não luta, e eu não estou derrotado porque estou em luta e continuarei a lutar. A história do Mbappé (e outros) faz-me lembrar uma palestra em que participei, em Portugal, com a feliz formulação “a cor da minha pele é o meu país”. Já reparou que sempre que há uma polémica em torno da minha pessoa, deixo de ser o cidadão português e passo a ser o cidadão senegalês? Até pessoas que têm responsabilidades de Estado têm a tentação de me lembrar que não sou português. Há uma ideia muito arreigada nas sociedades europeias que está assente na supremacia branca, na linha da cor, não conseguem aceitar a ideia de que as sociedades europeias são sociedades diversas, são sociedades multiculturais, e vão continuar assim, não à volta a dar, e isto gera pânico. Em França há uma corrente identitária da extrema-direita que está a gerar uma espécie de psicose antimuçulmana, uma espécie de revanche histórica. A ideia de um grande remplacement, uma substituição, na Europa é uma fantasia. Tem de haver uma abordagem muito mais séria e muito mais diversa do olhar histórico sobre o passado. 

Temos um passado colonial e não conseguimos construir uma história comum…

… até agora nenhum império conseguiu porque o que prevalece é a narrativa dos vencedores. 

E como é que fazemos a narrativa dos vencidos, se é que podemos falar em vencidos e vencedores. Quem são uns e quem são os outros? 

Houve vencidos, sim, não podemos comparar 500 anos de História com 50 anos de História. Temos que resolver o nosso trauma colonial, há alguns indícios nesse sentido por parte do Presidente, que falou por alto, admitiu que não havia História perfeita, a que eu acrescento que não há heróis perfeitos. É preciso discutir com as pessoas a quem essa história diz respeito, que somos nós, os negros, que somos filhos dessa história. Mas tenho uma apreciação negativa do papel do senhor Presidente relativamente à nossa catarse de história coletiva, esteve mal em Dakar e tentou emendar o tiro em São Tomé, depois tentou fugir à questão. Ninguém está a pedir ao senhor Presidente para fazer uma penitência autoflageladora, mas como representação simbólica do país como comunidade tem de ter a capacidade para olhar para a demandas das outras pessoas que fazem parte dessa comunidade e que querem ver restaurada a sua dignidade, que querem ver isso no discurso público. 

Tem filhos? 

Tenho dois filhos. 

E quer educar os seus filhos em Portugal. 

Claro, os meus filhos são portuguesíssimos. 

Tem medo de viver em Portugal? 

Sim, tenho medo, mas o medo não me paralisa, o medo é um alerta. Sei que o que estou a fazer incomoda algumas pessoas e é preciso persistir nisso até deixar de ter medo, porque no dia em que deixar de ter medo, sei que o racismo acabou e que os meus filhos podem viver em paz e melhor do que eu vivi. O Portugal viável é aquele que vai conseguir derrotar o racismo.

E se para derrotar o racismo fosse preciso que o Mamadou ficasse calado, ficava calado? 

(risos) Essa luta não é do Mamadou, é uma luta coletiva, darei a minha contribuição enquanto puder, no dia em que sentir que não sou útil à luta serei o primeiro a sair. No dia em que sentir que sou um empecilho, deixarei de lutar.