António Guerreiro. Descortinar a turbulência

António Guerreiro. Descortinar a turbulência


“Zonas de Baixa Pressão” reúne uma série de crónicas ou micro-ensaios de um dos mais empenhados leitores da contemporaneidade e dos aspetos culturais que lhe formam o contorno.


Trata-se da reunião de textos escolhidos, crónicas publicadas no suplemento Ípsilon do jornal Público. Escolhidos temática e não cronologicamente. Em cada capítulo, se quiserem, textos rizoma ou metonimicamente emparelhados  não obedecendo a uma sequência temporal. Provenientes da circunstância histórica e/ou das obsessões do autor. Ou da intersecção de ambas.

Um dia, Jacques Derrida terá dito numa entrevista mais ou menos isto: “se me confrontam com juízos ou afirmações absolutas, demasiado veementes, mesmo sem querer, procuro sempre desacelerar”. Como se sabe, o filósofo está mais ligado à híper-interpretação. Assim é, “salvo seja”, António Guerreiro (AG), qual Ulrich  (HSQ) em carne e osso, mas mais dado à acção, um homem com qualidades, e também menos sensível à totalidade que ao infinito, Como notaria Adorno “o todo é o inverdadeiro”(Mínima Moralia); “do mesmo modo que um ensaio, no desenvolvimento das suas partes, explora as muitas facetas de um objecto sem nunca o abarcar totalmente – porque uma coisa cingida na sua totalidade perde subitamente os seus contornos e transforma-se num conceito – assim também Ulrich pensava que desse modo poderia o observar e tratar de forma mais correcta o mundo”(…). Deste modo o ensaísta aventura-se pelo labirinto insaciável do pensamento em fuga. 

O autor das crónicas, considera-as, e bem, micro-ensaios, talvez na senda visionária da micro sociologia de Simmel e do seu indivíduo na grande metrópole mobilizado pelo dinheiro e o tempo esquartejado.

O fazedor dessas crónicas reunidas não um é um “dandy” (como repudiaria a palavra!), antes o baudelairiano flâneur,  paradoxalmente discreto e ascético ferido pela arte del desengaño, e pela quase derrocada dos pilares, e representações de um velho mundo e da sua inexpugnável (não)modernidade ou falta de solidez, apesar daquele não cessar avidamente de desmutiplicar conexões e estender o campo. O livro por natureza é disto testemunha, é o seu modus faciendi, pensar a partir de um ponto de fuga, tantas vezes insuspeito, contingente. Começar, traçar conexões, e continuar a pensar do meio, entre, aí onde as coisas começam a ganhar velocidade, a cintilar a seus olhos. E esse entre é o arquétipo do ensaio e o hiato para o pensamento crítico. Obviamente esse hiato é sempre mais do que parece ser. Isto é: ora é a Vida, sublinhando-se o real fragmentado que rodeia o sujeito, ora A vida valorizando-se o artigo, a teoria crítica que se convoca. Entre ambas, o engenho que as abrange, uma teoria crítica posta em prática. Uma maneira singular e uma forma de aproximação autoral. Em carta a Leo Popper, Luckacs expressa como isso se “distingue do domínio das ciências e a colocam do lado da arte sem todavia apagar as suas fronteiras, dando-lhe sim a força para aceder a um ordenamento inteligível da vida, mantendo-a contudo afastada da definitiva perfeição gelada própria da filosofia”. São dois tipos de realidade psíquica. AG em diversos momentos reiterou não se tratarem estes breves textos de crónicas, de exercícios pessoalíssimos de opinião, chavão que aliás prolifera e o incomoda. E convictamente continua firme porque por de mais curioso pelo que não cessa de querer despontar no mundo (de) novo.  

Assumindo o autor uma pertença urbana clara, não deixa de ser sensível, qual melancolia do sismógrafo, ao fluir contínuo do tempo sem tempo de outrora, até a atenção ao deflagrar previsto e sempre singular da Primavera na terra, o gesto soberano e inteiro do animal, momentos em que sem atrito ser e estar coincidem como no um da boda, lembrando o poema de Sophia. Vale a pena ouvir as entrevistas do autor a Luís Caetano em em A Ronda da Noite (edições de 21 e 22 de junho de 2021, na Antena 2) em que isto é sublinhado não se escondendo a matriz urbana e sedenta que abafa o autor. 

Em tempos de crise, num tempo de inabsorvível turbulência, a crítica à ideologia agudiza-se, a teoria crítica refirmou-se. 

Nas primeiras décadas do século XX, em atribulada agonia, assistia-se à derrocada do Império. Em torno de Viena, e não só, a a sociedade e cena cultural, em diversos domínios artísticos, científicos, políticos era fervilhante, um frémito. Na fímbria dessa agonia que faz pensar, também o seu revés decorativo (Egon Shiele, Paul Klee e Gustav Klimt, a fantasia e o kitsch ). É nesse caldo efervescente, nessa zona sísmica e sem amanhã que nascem e se cruzam diversos autores constitutivos da visão do mundo de AG. Entre eles, Karl Kraus e Musil, como já foi referido. Este reúne na Cacânia (nome inventado) um comité de personalidades importantes do mundo político e económico com a missão de elaborar um programa de grande alcance para comemorar os 70 anos de reinado do Imperador. Não iria como se sabe a tempo e os mais nefastos dos totalitarismos vingariam. 

O grande livro (HSQ) ficará para sempre incompleto. O que é próprio também da liberdade de espírito, e que, ao contrário de Heidegger, não busca qualquer origem nem o dizer originário, antes sim a hiper-interpretação. Os textos reunidos aqui começaram por chamar-se “estação meteorológica” na linha de Karl Kraus (zona de baixas pressões sujeita a forte turbulência, imprevisibilidade, incerteza dirigindo-se para leste), depois “Acção paralela”. Sublinhe-se que o autor não usa a palavra eu, nem dados da história pessoal, daí a resistência a escrever no quadro de Opinião. A pertença do texto ao autor faz-se imediatamente pelo reconhecimento de um estilo. O que não é de menos.

Outra constelação de autores com quem António Guerreiro pensa e que partilha são aqueles  habitualmente integrados na Escola de Frankfurt, da crítica à ideologia e ao capitalismo. Para além de Walter Benjamin (um caso à parte, sempre presente), Kracauer, Adorno, Horkheimer (ambos do exílio americano), Simmel como já foi referido, Max Weber e outros sociólogos bem mais recentes como Baudrillard, Enzensberger, Sloterdijk, Agamben, Foucault sempre, e os dispositivos de poder sobre o corpo, a biopolítica e a sexualidade. Guerreiro dedica-se continuamente à crítica cultural, aos instrumentos das sociedades do espectáculo e aos média (“a imprensa devastará o que a sífilis deixou” escreveu Kraus). Sendo que Guerreiro é particularmente sensível aos mecanismos de representação e à leitura(s) da(s) imagem(ns), à iconografia..

Talvez seja mais simples transcrever os títulos dos capítulos: 1  – Representações e tonalidades da época; 2 – Matéria política; Os media, o jornalismo e as suas sombras; 4 – Sexo, género e outras maldições; 5  – Colapsologia em curso: a  cidade, o campo, o turismo; 6 – Linguagem, idiotismos e política da ortografia; 7 – acerca da escola, dos professores e dos estudantes; 8 – Ecologia social, cultural e literária. Os campos são vários, o que é transversal a todos eles, dos mais universais, ao particular é o modo e o objecto. Cruzando o caso específico com a teoria. Facto que já lhe proporciona aplausos, essa partilha em segunda linha dos apetrechos do pensar, assim como anticorpos. É que nada é simples nem imediato, nem evidente, a não ser a alienação fundada na evidência. Uma figura de pensamento irreparável subsume o estilo do autor: a ironia. De tal modo que por vezes se teme uma leitura literal.

A partir de dado momento, AG acoplou ao texto “mãe” uma rubrica chamada Livro de Recitações. Comentários por vezes hilariantes, finíssimos, regra geral elegantes, que não podemos deixar de imaginar o gozo que dão ao autor e ao leitor. A partir de frases, acontecimentos, comentários em imprensa que o autor parece ter-se especializado em individuar ou realçar o lado de lugar comum engalanado por uma aura enganadora:

“…!?’’’——(…)????““////\\\\)” Luís Marques Mendes no Jornal da Noite, SIC, todos os domingos.

Da prosódia:

“Há uma injustiça de que é vítima todas as semanas o comentador Luís Marques Mendes que eu gostaria de reparar. As suas palavras proferidas no laboratório televisivo das 20h de domingo são largamente citadas nos jornais do dia seguinte, mas o mais importante nunca é o que ele disse por palavras, mas a vivacidade espiritual da prosódia: as articulações não sintácticas, o staccato do seu débito verbal, o expressionismo das acentuações, os altos e baixos, as mudanças de tom, as habilidades miméticas que ora nos fazem pensar numa mosca lasciva, ora introduzem o tom grave do orador nos grandes momentos da vida, a gestualidade enfática. O expressionismo de Marques Mendes é uma poesia que está toda na prosódia e que só poderia ser citada por meio de sinais de acentuação, se houvesse, como há para a música, um código para a transcrição prosódica. O comentário político torna-se, assim, um exercício de elevado teor artístico, entre o livro sobre nada de Flaubert e a ‘nada-logia’ de Balzac, isto é, a sublime rienologie que este escritor viu no jornalismo do seu tempo”.