A carta dos direitos digitais e a discussão que mais (me) interessa


Tenho visto, ouvido e lido os toques a finados pela liberdade e os brados contra a censura, e tenho estado atento às variáveis da questão.


Tenho assistido, com atenção – e, confesso, com a relativização que a idade traz, junto com a capacidade de ver melhor o subtexto (a idade tem coisas boas, tem) –, à discussão, não raro excessivamente inflamada, sobre a carta dos direitos digitais. Tenho visto, ouvido e lido os toques a finados pela liberdade e os brados contra a censura, e tenho estado atento às variáveis da questão. Mas acho que a questão tem estado centrada num tema que não é o mais importante, a meu ver, e acho também que algumas discussões e opiniões sobre esse tema escondem ou têm subjacente visões preocupantes sobre a matéria mais importante, embora não sejam novidade. Por partes.

A questão tem estado muito centrada em saber se a entidade que está em projeto para ser “a reguladora” dos excessos digitais é ou não adequada para o efeito. Questão que considero importante, e percebo as críticas e as preocupações – mesmo quando um bocadinho hiperbólicas. Pode não ser a melhor entidade, há questões a colocar, sim senhor, o tema é relevante. Mas não é o principal, penso eu, e sobre este não se tem visto tanta atenção, e até tenho sentido ou pressentido alguma displicência ou, então, intenção sobre ele por detrás das flechas atiradas à escolha da ERC.

O tema principal prende-se com a ausência ou não de limites no campo digital, questão aliás que é irmã da questão dos limites à liberdade de expressão em geral. Ora, tenho para mim duas coisas: por um lado, vejo ou intuo nalguns combates contra a ERC e o papão da censura uma ideia de que não pode haver limites à liberdade digital, e que ninguém pode dizer o que está bem ou mal, o que é admissível e o que não é, o que ofende, ou desinforma, ou atinge a integridade, ou não, et cetera. Ou seja, mais ou menos da mesma forma que se defende ou parece defender uma liberdade de expressão em geral ilimitada – sob pena de censura, Deus nos valha e guarde –, também se pende, muitas vezes, para a ideia de que no mundo digital vale tudo, e tanto faz o que se leva à frente, se pisa e se tritura, porque ninguém pode colocar travão à liberdade de se exprimir, à liberdade de opinar, à liberdade de fazer humor, ou, digo eu, à liberdade de cuspir no espaço virtual o que bem apeteça. Pois, lamento, mas discordo, e assim vem a segunda coisa que tenho para mim. É que, seja qual for a entidade que se eleja, e sejam quais forem os cuidados de que se rodeie a função, há limites à liberdade digital, e – como tudo na vida – alguém tem que os dizer e impor. Eu sei que há quem não goste, e até há quem faça profissão da ausência de limites – aliás, é curioso ver a inflamação opinativa de alguns profissionais da opinião a favor da liberdade sem qualquer travão, mas parece-me que estaremos mal se e quando tudo for possível, transformando o legítimo e saudável desejo de liberdade num campo de libertinagem, onde os outros não são fins em si mesmos, mas sim meios ou objetos.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira


A carta dos direitos digitais e a discussão que mais (me) interessa


Tenho visto, ouvido e lido os toques a finados pela liberdade e os brados contra a censura, e tenho estado atento às variáveis da questão.


Tenho assistido, com atenção – e, confesso, com a relativização que a idade traz, junto com a capacidade de ver melhor o subtexto (a idade tem coisas boas, tem) –, à discussão, não raro excessivamente inflamada, sobre a carta dos direitos digitais. Tenho visto, ouvido e lido os toques a finados pela liberdade e os brados contra a censura, e tenho estado atento às variáveis da questão. Mas acho que a questão tem estado centrada num tema que não é o mais importante, a meu ver, e acho também que algumas discussões e opiniões sobre esse tema escondem ou têm subjacente visões preocupantes sobre a matéria mais importante, embora não sejam novidade. Por partes.

A questão tem estado muito centrada em saber se a entidade que está em projeto para ser “a reguladora” dos excessos digitais é ou não adequada para o efeito. Questão que considero importante, e percebo as críticas e as preocupações – mesmo quando um bocadinho hiperbólicas. Pode não ser a melhor entidade, há questões a colocar, sim senhor, o tema é relevante. Mas não é o principal, penso eu, e sobre este não se tem visto tanta atenção, e até tenho sentido ou pressentido alguma displicência ou, então, intenção sobre ele por detrás das flechas atiradas à escolha da ERC.

O tema principal prende-se com a ausência ou não de limites no campo digital, questão aliás que é irmã da questão dos limites à liberdade de expressão em geral. Ora, tenho para mim duas coisas: por um lado, vejo ou intuo nalguns combates contra a ERC e o papão da censura uma ideia de que não pode haver limites à liberdade digital, e que ninguém pode dizer o que está bem ou mal, o que é admissível e o que não é, o que ofende, ou desinforma, ou atinge a integridade, ou não, et cetera. Ou seja, mais ou menos da mesma forma que se defende ou parece defender uma liberdade de expressão em geral ilimitada – sob pena de censura, Deus nos valha e guarde –, também se pende, muitas vezes, para a ideia de que no mundo digital vale tudo, e tanto faz o que se leva à frente, se pisa e se tritura, porque ninguém pode colocar travão à liberdade de se exprimir, à liberdade de opinar, à liberdade de fazer humor, ou, digo eu, à liberdade de cuspir no espaço virtual o que bem apeteça. Pois, lamento, mas discordo, e assim vem a segunda coisa que tenho para mim. É que, seja qual for a entidade que se eleja, e sejam quais forem os cuidados de que se rodeie a função, há limites à liberdade digital, e – como tudo na vida – alguém tem que os dizer e impor. Eu sei que há quem não goste, e até há quem faça profissão da ausência de limites – aliás, é curioso ver a inflamação opinativa de alguns profissionais da opinião a favor da liberdade sem qualquer travão, mas parece-me que estaremos mal se e quando tudo for possível, transformando o legítimo e saudável desejo de liberdade num campo de libertinagem, onde os outros não são fins em si mesmos, mas sim meios ou objetos.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira