Maria (nome fictício) conta apenas com um tupperware com sopa, quatro iogurtes e uma cuvete de gelo. O seu frigorífico sobrevive com quase nada. No silêncio guardado à porta fechada, Maria não sabe como vai matar a fome aos seus dois filhos menores no dia seguinte. E sentada no sofá, chora a Marta a história da sua desesperança.
Marta tem o carro novo com que sempre sonhou. Mas não tem dinheiro para o combustível, para o seguro ou para a revisão. No silêncio guardado à porta fechada, Marta sabe exatamente como vai matar a fome ao filho menor no dia seguinte. Afinal, um carro é só um carro (uma daquelas certezas que, no entanto, não confortam). E à mesa do café, chora a Rui a história da sua desesperança.
Rui e a mulher não têm dinheiro para pagar a conta da eletricidade. Nem sequer para comprar comida para forrar os estômagos. Rui não sabe como vai matar a fome aos seus dois filhos menores no dia seguinte. Desiste por um segundo. E com um frasco de comprimidos na mão pensa que talvez o melhor para todos seja mesmo não esperar que o dia seguinte volte a nascer. Enquanto chora com os seus pensamento sentado à beirada cama a sua história de desesperança.
Maria, Marta e Rui contam-nos histórias reais. São as deles, mas podiam ser as de outra pessoa qualquer. Em comum, têm uma ligação de décadas à Groundforce. E, hoje, são apenas três dos 2400 trabalhadores da empresa de handling do grupo TAP que, desde março de 2020, se tornaram protagonistas forçados de um argumento feito de salários e poupanças que se vão evaporando (até nada restar). Feito de profissionais que viram as suas conquistas reduzidas a memórias distantes; do desalento e impotência que carregam; e de uma esperança no futuro que nem chega a ter tamanho para se dizer ténue.
Enquanto discussões em fato e gravata se arrastam, cada um destes corpos, destas almas, destas casas, esconde (pois nem todas se contam) uma história diferente que de diferente tem muito pouco: estas mulheres e estes homens continuam com fome. Pior, os seus filhos também.
A porta abriu-se Quando Alfredo Casimiro, presidente da Groundforce, anunciou em final de fevereiro – depois de um ano em layoff (desde março de 2020) – que não tinha dinheiro para pagar ordenados, o copo transbordou. A partir desse momento, a luta dos trabalhadores da empresa passou a fazer-se ouvir à porta dos principais aeroportos portugueses: Lisboa, Porto e Faro. Foi precisamente numa dessas ações, no início de março, que uma ideia começou a brotar. Um pouco por acaso – como, aliás, surge a maioria das boas ideias.
“Tudo começou na manifestação no Porto. Queríamos todos estar presentes, mostrar a nossa força, mas havia quatro colegas que não tinham dinheiro para pagar o autocarro que partia de Lisboa. Os nosso colegas do Porto souberam dessa situação e, então, fizeram uma coleta para ajudar nas despesas. Acabaram por pagar o autocarro a toda a gente. Foi a partir daí que as coisas mudaram. Percebemos que teria de ser a ‘família Groundforce’ a resolver os seus problemas e não podíamos contar com mais ninguém. Não havia tempo a perder”, conta Marta Ribeiro, 41 anos, há 16 na Groundforce.
Na viagem de regresso para baixo, Marta Ribeiro, Luísa Borba, Ricardo Martins e Hélder Barbosa, quatro colegas e amigos, remoeram “aquela solidariedade da malta do norte”. À chegada à capital, os quatro já tinham certezas que chegara a hora de passar das palavras aos atos: e tornaram-se ali mesmo fundadores da associação Handling With Care. Desde essa altura, a torrente de pedidos de ajuda não mais parou – muitos deles ainda envergonhados –, feitos por quem já não consegue vislumbrar o que existe para lá do horizonte.
A associação cresceu. E agora funciona num espaço cedido pela União das Freguesia de Sacavém e Prior Velho, mesmo ali ao lado do aeroporto Humberto Delgado. Em pouco mais de dois meses e meio, a Handling With Care já garantiu cabazes de alimentos para cerca de 200 famílias; e ainda pagou mais de uma centena de faturas de água, luz e gás (neste caso um auxílio total na ordem dos oito mil euros).
“Começamos e agora não vamos voltar atrás. Mesmo quando tudo isto passar, o projeto é para continuar. A ideia é mantermo-nos atentos e, sempre que necessário, ajudar os nossos colegas que estão a passar por maiores dificuldades”, assegura Marta Ribeiro. A porta abriu-se. E é daquelas que não se podem tornar a fechar nunca mais.
Trabalho diário Encontramos Marta Ribeiro e José Veríssimo, 47 anos, há seis na Groundforce, na sede improvisada da associação, em Sacavém, atarefados com um cabaz pronto para entregar a mais um colega. Arroz, massa, cereais, leite… O recheio cresce acompanhado por sorrisos tristes nos lábios e vai atenuando a dor de quem espera por soluções há demasiado tempo. “Recordo-me como fiquei muito preocupada quando os salários foram reduzidos e começaram a faltar. Foram noites sem dormir, estava preocupada, por mim e pelo meu filho. Mas quando regressava a casa eram os rostos dos meus colegas que trazia comigo… a partir daí percebi que tinha de fazer alguma coisa”, diz Marta Ribeiro. E fez. Ou melhor, fizeram.
À catadupa de notícias sobre a Groundforce, Marta e José desligam a TV e não tocam nos jornais. Desde fevereiro que é assim. Até porque os encontros e desencontros nos gabinetes de ministros e gestores não lhes matam a fome. E com o tempo, a solução para a crise na empresa tornou-se aos olhos dos trabalhadores o equivalente místico ao milagre.
Com o aumento das dificuldades, também os voluntários do projeto começaram a aumentar – são agora uma dezena as pessoas que diariamente procuram fazer face às carências mais imediatas dos colegas. José Veríssimo explica-nos porque arregaça as mangas por esta missão: “A Groundforce não é como as outras empresas. As pessoas adoram-na. Adoram o que fazem e adoram os colegas. É como se fossemos uma verdadeira família. É por isso que conhecemos o drama por que estão a passar muitos dos nossos colegas. E é por isso que faz todo o sentido termos criado este projeto. O objetivo é resolvermos os problemas nesta fase de crise. Os nossos e os dos nossos colegas. Somos uma verdadeira família, para muitos, mais importantes até que as próprias relações de sangue”.
Desde que a associação foi constituída, têm sido muitas pessoas e entidades que têm contribuído para a causa. Umas mais surpreendentes que outras. Trabalhadores da Groundforce e da TAP, naturalmente, Mas também da concorrente Portway (e do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Aviação Civil que representa a maioria destes trabalhadores), que não deixaram de se unir para darem o que podem aos parceiros de setor. Pilotos e tripulantes de cabina da TAP e da AirFrance e elementos da divisão do aeroporto de Lisboa da PSP também já fizeram doações de relevo.
A União de Freguesias de Sacavém e Prior Velho, é claro, merece uma referência especial, pois foi a entidade acolheu a associação. “Depois de sermos expulsos pela Groundforce”, diz Marta. Expulsos?, perguntamos “Sim”, confirma José. E explicam com o sangue a ferver de indignação: no início de março, sem liquidez, e perante a iniciativa dos trabalhadores, a empresa a que dedicaram uma parte importante das suas vidas – tal como os colegas que por lá trabalham – ofereceu à Handling With Care uma sala no seu edifício 70. Mas no final desse mês, quando parte dos salários foram pagos (na sequência dos acordos com a TAP), a Groundforce foi lesta a “convidar” a associação a abandonar o local. “Entende que se encontra cumprida a missão do grupo que se de disponibilizou para atender às necessidades dos trabalhadores”, lia-se na mensagem que chegou a 30 de março e deixou atónitos os responsáveis. A associação tinha 24 horas para abandonar as instalações, mas, de raiva, os voluntário precisaram apenas de pouco mais de uma hora para encherem os carros e se colocarem a caminho sem destino.
“Groundforce e TAP – os acionistas da empresa com 50,1% e 49,9%, respetivamente – não têm feito nada. E os sindicatos também não”. Marta e José acusam e lamentam. “Não resolvem o problema dos trabalhadores. Temos conhecimento que houve pessoas que tiveram de agarrar-se a outras coisas, trabalhar nas obras, como motoristas ou fazer outros biscates. As pessoas neste momento estão apenas a tentar sobreviver”, conta José Veríssimo. “Mas há pior”, acrescenta Marta Ribeiro. Pior, como?, voltamos a querer saber. “Temos alertas de pessoas que têm pensado em desistir. De tudo, até da própria vida. Nem Groundforce, nem TAP, nem Governo disponibilizaram até agora psicólogos ou assistentes sociais para ajudar pessoas que perderam quase tudo o que tinham”, completa.
Desespero e esperança Rui Sequeira, ou melhor, Sequeira, apenas assim, como todos o conhecem há mais de três décadas no aeroporto de Lisboa, vem ao nosso encontro na zona Encarnação. O cabaz que estava ser preparado vai servir para compor as prateleiras da sua casa. “Desculpe, estou um bocado nervoso”, desabafa na nossa presença. Sequeira, reconhecidamente um profissional dedicado, competente, respeitado, bom chefe de família, pisa terrenos movediços a que não está habituado. Dá a cara em nome dos colegas que sofrem em silêncio, abandonados pelo Estado e pela empresa onde trabalham. “Sim, admito, eu também tive vergonha em pedir ajuda. Só consegui fazê-lo através da caixa de comentários de uma publicação da Handling With Care no Facebook. E nem sequer foi diretamente. Felizmente, a Marta Ribeiro percebeu o meu apelo. E numa manifestação de trabalhadores em Lisboa veio ter comigo para conversar”, explica. “Então, contei-lhe a minha situação. E pedi finalmente ajuda à associação”, afirma.
A Handling With Care deu a Sequeira, 53 anos, a esperança que ele já tinha perdido. “É verdade que cheguei a desistir. Uma noite, dei por mim com um frasco de comprimidos na mão a pensar que talvez fosse melhor tomá-los todos de uma só vez, e acabar com este sofrimento”, confessa numa voz entrecortada pela dor e emoção. A mulher e os dois filhos de 11 e 15 anos agarram-no à vida. “São eles a minha maior preocupação. É difícil explicar-lhes, é difícil lidar com tudo isto…”, diz com a lágrimas a escorrerem-lhe no rosto.
Sequeira admite agora que “o pior já passou”. E deve-o à Handling With Care que, com os seus pequenos (grandes) gestos tem chegado a tempo de afastar as nuvens mais negras que carregam sobre as cabeças dos trabalhadores da Groundforce. “A mim deram-me um cabaz ‘a sério’. Carnes, cereais, arroz, iogurtes, manteiga queijo, fiambre… E ainda me pagaram a conta da luz. Foi fantástico. Deram-me tranquilidade no momento mais difícil da minha vida”, conta.
À história de Sequeira, muitas outras se juntam. Umas mais visíveis; outras nem tanto. Este capítulo termina por aqui, sem se saber o que nos dirão as páginas que se seguem. Para já, é o final feliz que conseguimos arranjar.