Mais uma rodada, Doutor


Perante uma Síria militarizada, secretista, censurada, esquizofrénica, o que foram os últimos sete anos de mandato do Presidente?


Os sírios refugiados e expatriados juntam-se às portas das embaixadas da República Árabe Síria para votarem nas eleições presidenciais. Dependendo do país, serão dezenas, centenas, milhares, ou mesmo números de outra grandeza, muito mais elevada, no Líbano, onde as multidões são incontáveis, cantam, dançam e se envolvem em rixas com os libaneses, que os provocam e lhes destroem os carros à pedrada, porquanto ostentam bandeiras de Bashar.

Passaram mais de dez anos desde que, sob gritos de guerra, uma parte da população síria declarou guerra a outra parte. Um dos primeiros gritos que se ouviu, e que passou camuflado pelo impacto de um graffiti ameaçador, rezava uma oração poderosa: “Somos todos jihadistas. Cristãos, no Líbano; Alauítas, nos caixões”. No Líbano, sírios cristãos e muçulmanos entoam hoje cânticos de apoio ao mais famoso dos alauítas, Assad, que quer dizer “Leão”.

Os mesmos cânticos soam em Madrid. Não são centenas, nem milhares, mas é pelo menos de uma dúzia o número de pessoas que se deixam filmar revelando o entusiasmo que lhes percorre o sangue, a alma, ou nenhum dos dois: “Com o nosso sangue e a nossa alma, sacrificamo-nos por ti, Bashar”. Quem os filmou? Quem enviou os seus vídeos para a imprensa síria? Se fizermos questão de perguntar o que o mundo deseja perguntar-lhes: “Quem os coagiu a cantar?”

Aos sírios da Alemanha, quem lhes plantou os sorrisos e lhes encenou a peça? O governo alemão decidiu proibir as eleições sírias na embaixada em Berlim, com dois dias de pré-aviso, violando o direito de participação de uma comunidade inteira. Durante um dia, os sírios não puderam entrar nessa porção do seu território. Centenas de pessoas de bilhete comprado para a capital não perderam a viagem, fizeram uma festa e simularam uma eleição. Foram os únicos?

Talvez se tenham simulado eleições pelo mundo inteiro, no dia de hoje. No seu tempo, os movimentos de Hafez Al-Assad eram esquizofrénicos, aterrado que vivia, dormindo pouco e a más horas, graças à ameaça incessante da Irmandade Muçulmana. Quanta dessa esquizofrenia lhe sobreviveu e foi deixada em herança, cedo demais, ao garante da paz síria? Quanta dela herdada também por todos os sírios, se às centenas de milhares participam numa eleição por temor…

O temor reverencial que têm ao Presidente, em parte materializado, personificado nas famílias dos expatriados que ficaram para trás, bastará para imputar a Bashar Al-Assad a autoria material de cada um dos votos, alguns desenhados nos boletins a caneta e outros a sangue? “Cortei o meu dedo para votar com o meu sangue, que representa o sangue dos mártires, no protector da alma e da nação sírias”, dizia uma velha mulher ao votar no Líbano, há sete anos.

Perante uma Síria militarizada, secretista, censurada, esquizofrénica, o que foram os últimos sete anos de mandato do Presidente? No que pensamos quando visualizamos a bandeira árabe com duas estrelas verdes ao centro, representantes das duas potências de uma união antiga? Com certeza, não é no som da picareta, do berbequim, das máquinas de obras que se avolumam na reconstrução dos mercados de Damasco e de Aleppo…

Porém, foi em Damasco e em Aleppo que se investiram milhares de milhões de dólares na recuperação das infraestruturas e dos serviços, de novo degolados pelo Caesar Act de Donald Trump, que não é senão uma matança à fome do povo sírio justificada com o “ódio ao Presidente”. Para além de ajudar com uma quantia exorbitante, a Rússia ofereceu a Damasco a Conferência para o Regresso dos Refugiados, o verdadeiro mote para a campanha presidencial.

Quantos deles regressarão? Sobre quantos não pesa a imputação da deserção a uma guerra que não desejaram, que lhes ameaçou o lar, o trabalho, a vida, e que quase fez xeque-mate à civilização no Levante, exterminando aldeias, vilas e cidades que foram o berço de todas as coisas? Quantos indultos formais tem Bashar Al-Assad de emitir para se credibilizar junto da comunidade internacional, de cada país (com excepção da Dinamarca), e dos cidadãos sírios?

Perguntem-lhes. Perscrutem o que lhes vai na alma quando não se misturam na multidão, ouçam o que têm a dizer sobre o país que perderam. Escutem as queixas que deixaram de poder revelar vai para dez anos, exactamente quando, à boleia de uma turba descontente, um grupo de rebeldes armados levantou as armas contra o governo arabista e o condenou, com palavras divinas, a dezenas de anos de solidão, a solidão tremenda do envidraçado Palácio de Damasco.

Neste dia 20 de Maio, iniciou-se uma eleição que pode ser tão mais histórica quanto mais transparente for a vontade de um regime inteiro de gerir, de forma pacífica, um mapa atribulado, composto por matizes religiosos que se deviam anular, mas que convivem desde a Libertação, e por grupos sociais que na última década se digladiaram de pistola e adaga em punho, enquanto do céu caíam bombas modernas, estampadas com emblemas de democracias humanitárias.

Perdoem-me a ousadia: só a nós nos importa se as eleições sírias são ou não desenhadas na forja presidencial, nós que banimos os embaixadores usando eufemismos em latim e que desejávamos poder exportar uma democracia ocidental para as margens do Rio Eufrates. No entanto, o que importa é o bem-estar de um povo desarmado, pluricultural e multirreligioso, que possa recuperar de vez para si uma nação chamada Síria. 

Em 2000, enterrou o pai. Em 2021, enterra uma guerra. Talvez estas sejam as eleições mais importantes para o pacto duvidoso que firmou com a sua terra: “Mais uma rodada, Doutor”.

Mais uma rodada, Doutor


Perante uma Síria militarizada, secretista, censurada, esquizofrénica, o que foram os últimos sete anos de mandato do Presidente?


Os sírios refugiados e expatriados juntam-se às portas das embaixadas da República Árabe Síria para votarem nas eleições presidenciais. Dependendo do país, serão dezenas, centenas, milhares, ou mesmo números de outra grandeza, muito mais elevada, no Líbano, onde as multidões são incontáveis, cantam, dançam e se envolvem em rixas com os libaneses, que os provocam e lhes destroem os carros à pedrada, porquanto ostentam bandeiras de Bashar.

Passaram mais de dez anos desde que, sob gritos de guerra, uma parte da população síria declarou guerra a outra parte. Um dos primeiros gritos que se ouviu, e que passou camuflado pelo impacto de um graffiti ameaçador, rezava uma oração poderosa: “Somos todos jihadistas. Cristãos, no Líbano; Alauítas, nos caixões”. No Líbano, sírios cristãos e muçulmanos entoam hoje cânticos de apoio ao mais famoso dos alauítas, Assad, que quer dizer “Leão”.

Os mesmos cânticos soam em Madrid. Não são centenas, nem milhares, mas é pelo menos de uma dúzia o número de pessoas que se deixam filmar revelando o entusiasmo que lhes percorre o sangue, a alma, ou nenhum dos dois: “Com o nosso sangue e a nossa alma, sacrificamo-nos por ti, Bashar”. Quem os filmou? Quem enviou os seus vídeos para a imprensa síria? Se fizermos questão de perguntar o que o mundo deseja perguntar-lhes: “Quem os coagiu a cantar?”

Aos sírios da Alemanha, quem lhes plantou os sorrisos e lhes encenou a peça? O governo alemão decidiu proibir as eleições sírias na embaixada em Berlim, com dois dias de pré-aviso, violando o direito de participação de uma comunidade inteira. Durante um dia, os sírios não puderam entrar nessa porção do seu território. Centenas de pessoas de bilhete comprado para a capital não perderam a viagem, fizeram uma festa e simularam uma eleição. Foram os únicos?

Talvez se tenham simulado eleições pelo mundo inteiro, no dia de hoje. No seu tempo, os movimentos de Hafez Al-Assad eram esquizofrénicos, aterrado que vivia, dormindo pouco e a más horas, graças à ameaça incessante da Irmandade Muçulmana. Quanta dessa esquizofrenia lhe sobreviveu e foi deixada em herança, cedo demais, ao garante da paz síria? Quanta dela herdada também por todos os sírios, se às centenas de milhares participam numa eleição por temor…

O temor reverencial que têm ao Presidente, em parte materializado, personificado nas famílias dos expatriados que ficaram para trás, bastará para imputar a Bashar Al-Assad a autoria material de cada um dos votos, alguns desenhados nos boletins a caneta e outros a sangue? “Cortei o meu dedo para votar com o meu sangue, que representa o sangue dos mártires, no protector da alma e da nação sírias”, dizia uma velha mulher ao votar no Líbano, há sete anos.

Perante uma Síria militarizada, secretista, censurada, esquizofrénica, o que foram os últimos sete anos de mandato do Presidente? No que pensamos quando visualizamos a bandeira árabe com duas estrelas verdes ao centro, representantes das duas potências de uma união antiga? Com certeza, não é no som da picareta, do berbequim, das máquinas de obras que se avolumam na reconstrução dos mercados de Damasco e de Aleppo…

Porém, foi em Damasco e em Aleppo que se investiram milhares de milhões de dólares na recuperação das infraestruturas e dos serviços, de novo degolados pelo Caesar Act de Donald Trump, que não é senão uma matança à fome do povo sírio justificada com o “ódio ao Presidente”. Para além de ajudar com uma quantia exorbitante, a Rússia ofereceu a Damasco a Conferência para o Regresso dos Refugiados, o verdadeiro mote para a campanha presidencial.

Quantos deles regressarão? Sobre quantos não pesa a imputação da deserção a uma guerra que não desejaram, que lhes ameaçou o lar, o trabalho, a vida, e que quase fez xeque-mate à civilização no Levante, exterminando aldeias, vilas e cidades que foram o berço de todas as coisas? Quantos indultos formais tem Bashar Al-Assad de emitir para se credibilizar junto da comunidade internacional, de cada país (com excepção da Dinamarca), e dos cidadãos sírios?

Perguntem-lhes. Perscrutem o que lhes vai na alma quando não se misturam na multidão, ouçam o que têm a dizer sobre o país que perderam. Escutem as queixas que deixaram de poder revelar vai para dez anos, exactamente quando, à boleia de uma turba descontente, um grupo de rebeldes armados levantou as armas contra o governo arabista e o condenou, com palavras divinas, a dezenas de anos de solidão, a solidão tremenda do envidraçado Palácio de Damasco.

Neste dia 20 de Maio, iniciou-se uma eleição que pode ser tão mais histórica quanto mais transparente for a vontade de um regime inteiro de gerir, de forma pacífica, um mapa atribulado, composto por matizes religiosos que se deviam anular, mas que convivem desde a Libertação, e por grupos sociais que na última década se digladiaram de pistola e adaga em punho, enquanto do céu caíam bombas modernas, estampadas com emblemas de democracias humanitárias.

Perdoem-me a ousadia: só a nós nos importa se as eleições sírias são ou não desenhadas na forja presidencial, nós que banimos os embaixadores usando eufemismos em latim e que desejávamos poder exportar uma democracia ocidental para as margens do Rio Eufrates. No entanto, o que importa é o bem-estar de um povo desarmado, pluricultural e multirreligioso, que possa recuperar de vez para si uma nação chamada Síria. 

Em 2000, enterrou o pai. Em 2021, enterra uma guerra. Talvez estas sejam as eleições mais importantes para o pacto duvidoso que firmou com a sua terra: “Mais uma rodada, Doutor”.