Quando decidiu que queria ser juiz?
Acho que sou um juiz improvável. Filho de pais pobres, fiquei órfão muito cedo e, por isso, em condições normais, provavelmente nem teria feito uma licenciatura. Posso dizer que sou fruto do Estado social que o 25 de Abril nos deu. Entrei na faculdade em 1982, tive bolsa de estudo do Estado, residência universitária e, portanto, fiz a universidade nesse contexto de ajuda pública. Depois, logo a partir do terceiro ano, decidi – caso tivesse êxito nas provas de ingresso – ser juiz.
A advocacia nunca o atraiu?
Não, nunca me passou pela cabeça ser advogado. Não era a minha preferência. Aliás, fiz o serviço militar obrigatório nos Açores, como assessor jurídico do comandante aéreo dos Açores, em 1989 – numa altura em que já tinha feito o Centro de Estudos Judiciários (CEJ) –, e colocou-se a hipótese de fazer muitas oficiosas como advogado onde estava colocado, na Praia da Vitória, porque lá não havia advogados, mas disse simplesmente ao juiz que não queria, pois já tinha tomado essa decisão.
E como começou o seu percurso no sindicalismo?
Começou cedo. O meu primeiro tribunal, onde fiz estágio, foi em 1993; depois, estive em Ponte de Sor em 1994. Em 1996, juntei-me a outros colegas porque achava que os órgãos que representavam e geriam os juízes – e falo sobretudo do Conselho Superior da Magistratura (CSM) e da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) – precisavam de uma mudança geracional, de um rejuvenescimento. Nessa altura, houve muitos juízes que concordavam com a minha visão. E foi quando comecei a envolver-me no associativismo. A partir desse momento nunca mais perdi este vício… Mas daqui a três anos vou entrar numa cura de reabilitação.
Vai afastar-se da ASJP no final do atual mandato?
Quando terminar o meu mandato vou afastar-me, de certeza, do associativismo. Na primavera de 2024, terei 60 anos e vou colocar um ponto final na minha atividade associativa. Passarei a ser um mero associado da ASJP. Acho que já dei muitos anos a esta causa e, agora, é necessária uma mudança geracional e o rejuvenescimento de que falei há pouco. Quem está nestas coisas tem de saber que tudo tem o seu tempo. Os anos passam e depois tem de vir alguém fazer diferente e, espero, melhor.
Pelas suas palavras concluo tratar-se de um cargo muito exigente. Consegue ter tempos livres? Vejo aqui uma bateria elétrica na sala…
Não é minha (risos). Temos uma banda de juízes e, por acaso, às vezes ensaiamos aqui nas instalações. Eu toco harmónica e também canto. Somos seis colegas, mas há um ano que os ensaios estão suspensos devido à pandemia. Tenho esse hobby e também gosto de fazer desporto: faço ciclismo de estrada, menos do que gostava, mas ainda faço uns quilómetros. A verdade é que a minha vida pessoal e uma parte importante da minha familiar encontra-se suspensa há quatro anos devido à intensidade do trabalho.
Falando da Justiça. Tem estado em cima da mesa alterações no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), conhecido como “ticão”, que tem como juízes Carlos Alexandre e Ivo Rosa. Fala-se de possível extinção, fusão ou aumento do quadro de juízes. Qual é a posição da ASJP?
A nossa posição não é de agora. No verão do ano passado, apresentámos essa proposta publicamente e, na altura, até dissemos que seria bom que o poder político encontrasse uma solução para o “ticão” antes da decisão do processo da Operação Marquês para não ficar a ideia que, fosse qual fosse o desfecho, ela só surgiria a reboque deste caso. Mas não houve, certamente, condições políticas para isso. Em 2020, a ASJP disse que a melhor solução era, havendo processos suficientes, manter o TCIC tal como está e aumentar o quadro em quatro ou cinco juízes. Se isso não fosse possível, por falta de processos suficientes, apontámos como solução a fusão do TCIC com o Tribunal de Instrução de Lisboa, que passaria a ter uma secção nacional com seis ou sete juízes, o que fosse considerado necessário. Ou seja, os juízes do atual “ticão” passariam para essa secção. E isso não era a extinção do TCIC. Poderia, eventualmente, existir uma mudança de nome, mas o mais importante seria manter a estrutura, a especialização e a experiência que o TCIC adquiriu, e a ligação que tem às entidades de investigação e ao DCIAP [Departamento Central de Investigação e Ação Penal da Procuradoria-Geral da República]. Mas, neste momento, não sei qual é a intenção do poder político. Uma extinção pura e simples do tribunal – perdendo essa experiência e especialização – seria, a meu ver, totalmente errada. E até julgo que isso transmitiria aos cidadãos que o Estado ficou incomodado por uma decisão e quis fechar o tribunal. Além disso, essa decisão pode também resultar num desinvestimento no combate à corrupção e à criminalidade económica. Portanto, o que esperamos? Se não for possível aumentar o quadro, muito bem, vamos tentar encontrar uma solução que assegure manter aquele tribunal através de uma fusão, que garanta manter as competências, numa estrutura maior, que permita a circulação dos processos por mais juízes.
Têm sido feitas várias reformas nas leis a reboque de alguns processos mediáticos, mas o que tem faltado para que essas alterações resolvam os problemas da Justiça em Portugal?
Os problemas de ineficiência da Justiça portuguesa não resultam todos da lei. No combate à corrupção, por exemplo, temos um conjunto de normas jurídicas aprovadas que permitem punir as pessoas que cometam crimes dessa natureza, de acordo com um quadro penal de severidade suficiente. O problema é que os meios que os órgãos de investigação têm, nomeadamente, as polícias e o Ministério Público (MP), são muitas vezes insuficientes. Depois, há investigações que, pela sua importância, assumem uma dimensão tal que se torna muito difícil gerir esses processos. E mesmo que estes dois aspetos sejam resolvidos, temos muitas investigações que têm conexões no estrangeiro, em que é preciso fazer diligências no exterior, tornando muito difícil que o processo ande mais rápido. Não excluo a necessidade de serem feitas algumas reformas legislativas, e algumas até já estão em discussão no Parlamento, mas mesmo que aperfeiçoemos a lei há de haver sempre a necessidade de reforçar os meios. Não podemos ter uma investigação criminal rápida e eficiente se a Polícia Judiciária não tiver sistemas informáticos para desencriptar um telemóvel ou se não tiver automóveis suficientes para realizar buscas. Não faz sentido. E nós temos esses problemas, essas deficiências técnicas e humanas.
Entre todas as propostas legislativas para atacar a corrupção, quer da parte dos políticos, quer da ASJP, não se tem falado da delação premiada. Não será um mecanismo importante para a Justiça atalhar caminho?
Não sei ainda quais são os mecanismos concretos que vão existir no pacote anticorrupção – pois só se conhecem as linhas gerais –, mas tenho a certeza que em função do que tem dito em público a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, vão ser propostas alterações nesse ponto. Ou seja, o suspeito ou arguido que oferece colaboração e que reporta factos que respeitem a si ou a outros, caso essa colaboração seja espontânea e sincera, se não conduzir a resultados imorais, pode beneficiar de uma dispensa ou de uma atenuação especial da pena. Essa solução já é uma justiça premiada, embora não com a figura que existe no Brasil – não lhe poderemos chamar delação premiada. O que os juízes consideram essencial, seja qual for a solução política, é que no final tenha sempre de ser um juiz a tomar uma decisão. Porquê? Porque é isso que a Constituição prevê. A Constituição portuguesa diz que quem administra a Justiça são os tribunais, não é o MP, não são as polícias, portanto nunca podem ser estas entidades a terem o poder de negociarem dispensas de pena, vinculando o juiz. Essa é uma solução que, a meu ver, não cumpre os requisitos constitucionais.
Outro dos problemas apontados à Justiça – e já falou aqui da complexidade de alguns processos além fronteiras – são os megaprocessos. Como é possível contornar esta questão?
Há megaprocessos que vão ser sempre megaprocessos. A ideia que vão deixar de existir é errada, porque haverá sempre criminalidade que vai levar a uma investigação de grandes dimensões. Mas estou seguro que certos megaprocessos não precisavam de ter adquirido a dimensão que tiveram. E para o perceber basta fazer uma avaliação retrospetiva, pegar nos processos que findaram e ver se, de facto, os elementos de conexão usados no inquérito faziam ou não sentido – e chegamos ao fim de alguns desses megaprocessos e percebemos que não. É aí que percebemos as falhas e onde se devia ter feito uma separação. Para resolver esse problema também é preciso que a lei possa ser aperfeiçoada para definir melhor onde é que os elementos perdem importância. Mas há um aspeto central, que passa pelas estratégias de investigação do MP, pois, independentemente da lei, há de haver sempre um momento em que o MP tem de tomar uma decisão: tenho este caso, tenho prova e agora tenho dois caminhos. Ou levo este caso já para julgamento e continuo a investigar o resto ou vou continuar e junto, junto, junto, até que, às tantas, está o país todo no mesmo processo. E depois acabamos por não ter nem processo, nem prova, nem celeridade, nem julgamento, nem condenação, nem absolvição. Essa estratégia do MP é muito importante, e acho que os megaprocessos mais recentes hão de dar esse sinal ao MP que, às vezes, mais vale apostar na eficiência, mesmo que se abdique, aqui e ali de alguma conexão processual.
Em véspera da leitura do despacho de Ivo Rosa, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e do CSM, António Joaquim Piçarra, considerou “insustentável” que a instrução da Operação Marquês tivesse durado “dois ou três anos” e disse que esta fase mais parecia um “pré-julgamento”. Achou o timing apropriado?
Sinceramente, achei. Das duas, uma: ou o presidente não falava ou falava. E acho importante que o presidente do STJ e do CSM tenha intervenção sobre as matérias relevantes da Justiça. E não pode falar depois do processo, aí sim, seria totalmente inapropriado estar a emitir opiniões sobre um tema “quente” depois da decisão.
A minha questão era precisamente sobre a proximidade da decisão nesta fase…
Talvez pudesse ter falado antes, mas tenho a certeza que o presidente não conhecia a decisão, disso tenho a certeza, portanto, tomou uma posição sobre matérias que são relevantes – como a instrução criminal, o figurino orgânico do TCIC, a morosidade dos processos ou os megaprocessos. Podia tê-lo dito um ou dois meses antes? Podia, é verdade, e se não tivesse dito na véspera da leitura da instrução, provavelmente, não teria sido criticado. Mas prefiro que tenha falado, que se tenha exposto, que tenha dado uma opinião importante sobre uma matéria essencial, ao invés de ficar escondido atrás dos discursos formais e não dar a conhecer qual é, na realidade, a posição sobre estes assuntos da pessoa que está no topo da representação dos juízes.
Mas é notório que a relação atual dos juízes com o CSM não é das melhores. E têm sido várias as posições contrárias às da ASJP em vários temas. E há juízes que acham que o CSM tem sido persecutório. Concorda?
Nas relações entre CSM e juízes temos de considerar dois planos de análise. O primeiro é o da relação dos juízes individualmente quando estão a ser sujeitos a processos disciplinares e, nesses casos, há, naturalmente, uma tensão inevitável. Mas, sinceramente, no plano das decisões não identifico que o Conselho possa ter atuado de forma excessiva ou persecutória, no sentido de não terem sido tomadas decisões por boas razões legais, mas apenas para afetar determinada pessoa – isso nunca vi. Houve no passado, é verdade, momentos em que o CSM, não tanto pelas decisões que tomou, mas mais pela forma como as comunicou em público, deu a ideia de existir esse problema. E foi algo que denunciámos. Outro plano de análise é a relação entre a ASJP, que representa os dois mil juízes, e o Conselho, e, neste caso, já houve no passado atritos importantes, ainda com a anterior composição do CSM (sobretudo com o vice-presidente Mário Belo Morgado), porque achávamos que havia uma atitude intrusiva na independência dos juízes. Esse tempo julgo estar ultrapassado, mas agora há novos focos de tensão entre a associação e o Conselho. Um muito importante tem a ver com o facto de acharmos que o Conselho não fez o reconhecimento que houve um falhanço dos mecanismos de controlo da integridade dos juízes no âmbito do caso Lex. Apesar de ter havido uma decisão expulsiva de dois juízes [Rui Rangel e Fátima Galante] – que não ficou à espera da decisão do processo-crime –, a ASJP considera que era preciso o CSM ter dito publicamente aos cidadãos que ficou aquém do que devia e que, por isso, era preciso melhorar. A ASJP apresentou ao CSM um conjunto de propostas para reforçar os mecanismos de fiscalização dos juízes, mas o Conselho recusou-se a discuti-las connosco… e isto é um foco de atrito. E atenção: o CSM de que estou a falar não são só os juízes que o integram, mas todos os elementos representantes dos outros órgãos políticos: os sete representantes da Assembleia da República e os dois representantes do Presidente da República também não tiveram interesse em falar com os juízes. Nas rondas que estamos a fazer nos grupos parlamentares, e se o Presidente da República nos receber, como lhe pedimos, vamos certamente dizer que é preciso que o Parlamento e o Presidente da República responsabilizem os seus representantes e peçam contas do que estão a fazer no CSM. Por exemplo, não é só o Rui Rio queixar-se que a Justiça não funciona porque o Conselho não tem elementos que representem os políticos e, depois, um dos seus homens importantes no PSD para a aérea da Justiça, vogal do CSM, recebe um desafio destes dos juízes e não lhe liga nenhuma. Se calhar o problema não é a falta de representantes no Conselho, mas os representantes que lá estão não fazerem o que devem.
Sente que o poder político não tem contribuído como poderia para que situações como o caso Lex não voltem a acontecer?
A ASJP quer que isso seja muito mais difícil e, por isso, propusemos um pacote de medidas que visava apertar as malhas de controlo de maneira a prevenir situações de risco e detetar novos casos muito mais cedo. Mas esta discussão tem de ser feita, não só porque os juízes querem que ela seja feita, mas porque os cidadãos merecem que ela seja feita. E a verdade é que o poder político está no CSM. Dos 18 membros, nove são designados pelo poder político. Porque é que os nove que lá estão não acharam relevante discutir isto? Preferem vir cá para fora dizer que o Conselho é corporativo mas depois quando têm propostas dos juízes para apertar as malhas da fiscalização não lhes ligam nenhuma… isso não tem sentido, nem consigo compreender a lógica disto.
Disse há tempos que a Justiça devia começar no primeiro-ministro, mas António Costa, numa entrevista recente – no programa de Ricardo Araújo Pereira –, afirmou que no caso Tancos a Justiça e os juízes preferiram ir atrás dos polícias e não dos ladrões. Isto não é um mau exemplo?
Sobre o caso Tancos não sei nada e não me quero pronunciar. Mas a verdade é que, por vezes, a ação da Justiça interceta a da política. A expressão “à política o que é da política e à Justiça o que é da Justiça” tem sentido como princípio, mas, algumas vezes, a Justiça pisa os calos da política e a política pisa os calos da Justiça. Nesses momentos, costumam surgir declarações de responsáveis políticos, como podem também surgir declarações de responsáveis da Justiça, menos felizes. Neste caso diria que as declarações do primeiro-ministro resultam de uma dessas situações em que o poder judicial, no exercício da sua ação normal, pisa os calos ao poder político. Eu preferia ter ouvido outras palavras, mas para os juízes não tem importância nenhuma – o que importa é que o processo está no tribunal, há juízes a julgá-lo com independência e competência e, portanto, haverá uma decisão final que terá de ser compreendida e respeitada pelo poder judicial, pelo poder político e pelos cidadãos.
O PAN (e o PSD acompanhou) apresentou proposta na Assembleia da República para obrigar titulares de cargos políticos a declararem se pertencem à Maçonaria. Faria sentido alargar esta medida aos juízes?
O nosso compromisso ético, um documento que aprovámos em 2008, estabelece como princípio – e não obrigação jurídica – que os juízes não devem pertencer à Maçonaria. Portanto, para nós, juízes, essa questão está arrumada. Os dois mil juízes não concordam com isso, mas a esmagadora maioria estabeleceu que há uma incompatibilidade ética por um juiz pertencer à Maçonaria, à Opus Dei ou qualquer organização que exija dos membros compromissos de fidelidade que não são claros, nem sindicáveis, nem conhecidos das pessoas. Propusemos, aliás, aos dois conselhos superiores (da Magistratura e dos Tribunais Administrativos e Fiscais) que no âmbito da fiscalização das obrigações declarativas tornassem obrigatória a declaração do juiz sobre este assunto. O CSM não aceitou essa declaração e o conselho dos Tribunais Administrativos e Fiscais ainda não tomou uma decisão. Portanto, aceitamos como bom o princípio que o juiz deve estar obrigado a declarar a pertença a uma associação dessa natureza. Para quê? Para que uma pessoa que interage com um juiz num processo, ou se um juiz estiver num cargo de poder – seja presidente do STJ, presidente do Tribunal da Relação, vice-presidente do CSM –, caso tenha essas ligações, as mesmas sejam conhecidas do público, para que se saiba se uma decisão pode ou não, em abstrato, estar influenciada por essa ligação.
Há outras ligações polémicas. Como convive com o facto de haver tantos magistrados a pertencerem a órgãos de clubes de futebol ou a tomarem posições públicas sobre clubes?
A partir de 2019 só é possível essa ligação caso o CSM autorize. A ASJP anda há 15 anos a dizer que não é bom ter juízes no futebol. Não é bom para os juízes nem para a Justiça e mesmo que seja bom para o futebol, o futebol, tal como está, não merece – por tudo o que acontece lá dentro. O futebol quer ter juízes para dar um ar de seriedade e isenção, mas depois trata-os mal. E a toda a hora arrasta os seus nomes na lama. Neste momento, a questão está ultrapassada porque o Conselho pode não autorizar e a nossa opinião (e a minha pessoal) é que nunca deveria autorizar, a menos que o futebol mudasse de tal maneira que a integridade passasse a estar acima dos outros valores. Mas como isso não acontece…
Há três candidatos nas eleições [dia 18 de maio] para a presidência do STJ: Maria dos Prazeres Beleza, Henrique Araújo e António Reis. Maria dos Prazeres Beleza nunca fez um julgamento. Se for eleita, o que acha disso?
Não acho que haja algum problema por termos uma presidente do STJ que não é juíza de carreira. Pelo contrário, acho até um sinal de abertura. Por outro lado, há dois juízes de carreira que são candidatos. Julgo que todos têm condições para ocupar o cargo. Mas mais importante para os juízes seria, neste momento, saber o que vai fazer o candidato eleito, que ideias tem sobre a Justiça… Estamos a falar da quarta figura do sistema protocolar do Estado português, presidente do órgão máximo da gestão e disciplina dos juízes (que é o CSM), e o que é preocupante é que ninguém sabe. E não é algo que tenha a ver com as pessoas, mas com o método. Era importante os candidatos encontrarem um espaço para debaterem em público, exporem as suas opiniões, que reformas acham necessárias, porque se candidatam, o que projetam fazer no STJ, no relacionamento com os outros órgãos de soberania. Não é só o juiz que tem o direito de saber isto. Todos os cidadãos têm. Este método de eleição, dentro de quatro paredes, por um colégio eleitoral, sem discussão, sem debate, sem visibilidade, parece-me errado e tem de ter os dias contados. Isto não é democrático, não é transparente e o próprio sistema tem de perceber que tem de abrir as portas à sociedade.
É algo que prejudica a Justiça aos olhos da opinião pública?
Claro, porque a transparência e a confiança são elementos essenciais. Por exemplo, na questão da eleição do presidente do STJ ainda há tempo – e já fiz este desafio e faço-o novamente – para os três candidatos se porem de acordo e fazerem um debate que envolva as pessoas e onde possam expor as ideias que têm. Não o fazendo, podemos ter como presidente do STJ a melhor escolha do mundo, o melhor projeto, mas os cidadãos nunca vão ter a certeza.
Outra questão que tem dado que falar junto da opinião pública: as posições do juiz negacionista Rui Fonseca e Castro. Como observa a postura do seu colega?
Os juízes aplicam a lei, de acordo com os princípios constitucionais e respeitam as decisões e orientações das autoridades de saúde. É isso que a sociedade espera de nós e não atuações individuais peregrinas que façam a apologia da desobediência.
Que opinião tem da forma como foi conduzida a nomeação pelo Governo de José Eduardo Guerra para Procurador Europeu ao Conselho da União Europeia?
Acho que é totalmente legítimo o debate e a crítica sobre o tema e, portanto, não acho mal que os partidos critiquem a ministra da Justiça e o primeiro-ministro – mesmo que ministra e primeiro-ministro digam que os partidos estão a exagerar. Não acredito, francamente, porque isso seria de outro mundo, que alguém fosse falsificar intencionalmente um currículo para uma pessoa ser rapidamente apanhada numa falcatrua na União Europeia. Acredito que, a existir algum erro, foi de natureza diferente, mas como representante dos juízes não quero voltar ao assunto por uma razão simples: já passou para o patamar da discussão político-partidária, e isso é um patamar onde os juízes não gostam de estar.
O que acha das propostas do líder da oposição para reforma da Justiça?
O que acho das propostas de Rui Rio… é que não sei quais são. A única coisa que sei é que Rui Rio já disse mil vezes que é preciso reformar a Justiça de alto a baixo, que está tudo mal, que temos de mexer nas coisas, começando na Constituição e acabando no tribunal mais longínquo, mas ouço o presidente do PSD dizer isso desde 2018 e, sinceramente, ainda não sei que reforma é que ele quer. E acho que já havia tempo para o ter dito. Portanto, das duas, uma: ou Rui Rio não sabe que reforma quer – e isso não acredito – ou então sabe e não diz porque acha que ao dizê-lo pode ter resultados que não lhe agradam. O que quero? Que Rui Rio diga o que quer. Quer mexer na Constituição? Na composição dos conselhos superiores? Quer ter mais políticos nos conselhos superiores para dominar ou para exercer mais controlo sobre os juízes? Quer melhorar os sistemas de gestão e administração através dos juízes presidentes dos tribunais? Quer meter presidentes nos tribunais que não são juízes, mas políticos? É isso que deve explicar ao pormenor. Porque passar o dia a dizer que a Justiça está toda torta nem sequer é discussão. De certeza que não há nenhum cidadão responsável, a começar pelos juízes, que rejeite a oportunidade de fazer reformas, mas aquilo que Rui Rio disse até agora é muito pouco. E, sinceramente, se são reformas dentro do quadro normal do sistema não compreendo porque ainda não disse quais são; agora, se são reformas à moda da Hungria e da Polónia, para depois entrarmos em guerra com a União Europeia porque não cumprimos os fundamentais do Estado de direito, então, nesse caso, não estamos disponíveis – nem eu, nem os juízes, nem os políticos.
A verdade é que a instrução da Operação Marquês criou quase um tsunami de críticas à Justiça. Rui Rio chegou a dizer que antes do 25 de Abril havia uma melhor Justiça…
Mas alguém acredita nisso? Hoje temos uma Justiça democratizada, fiscalizada publicamente, rejuvenescida, que não é elitista, as pessoas que entram na Justiça chegam de todas as condições sociais, homens e mulheres, formadas por uma escola que o Governo gere, fiscalizadas pelo CSM onde o poder político tem um conjunto de elementos em maioria, o CSM que tem um mecanismo de apresentar relatórios anuais ao Parlamento… Porque é que Rui Rio e o PSD não explicam que interesse é que tiveram em relação aos relatórios anuais que o CSM apresenta desde 2000 ao Parlamento? Já alguma vez os leram? Se não concordam com o sistema de inspeções e disciplina então porque é que tendo sete elementos da Assembleia da República no CSM não lhes dizem para mudarem os critérios. Isso de proclamar a reforma da Justiça sem se dizer o que se quer levanta, de facto, o risco de se quererem coisas que não podem ser…
Tem dirigido muitas críticas aos políticos e partidos presentes na Assembleia da República e no CSM. Sente que não têm dado um contributo necessário para o bom funcionamento da Justiça?
Dou-lhe um exemplo: qual é o sentido dos partidos que estão na Assembleia da República dizerem que a Justiça é corporativa e que não tem mecanismos de controlo suficientes para evitar problemas internos de eventual corrupção, se os mesmos partidos e o Parlamento colocam no CSM sete elementos que não se interessam por esta discussão e não acolhem as propostas da ASJP que visam abrir esta discussão. Portanto, o problema não está no corporativismo do órgão, mas no desinteresse dos elementos que o Parlamento lá coloca e o desinteresse que o Parlamento tem em acompanhar esta atividade. Quando o CSM aparece no Parlamento a dizer que deu X “muito bons”, X “bons com distinção”, X “suficientes” e X “medíocres” Rui Rio vem para a televisão dizer que há “muito bons a mais”. Qual o sentido? Então ele não tem no Parlamento forma de fiscalizar isso e perguntar ao CSM que critérios utiliza para dar essas notas? O PSD recebe esses relatórios no Parlamento e tem pessoas muito importantes dentro do partido no CSM… Porque não exercem então esses poderes e vêm depois para as televisões fazer acusações?
Que justificação encontra para essas posturas distintas no CSM e no Parlamento?
A lógica da discussão pública obriga os titulares de cargos políticos a dizerem coisas que não batem certo com a realidade ou que acham que os eleitores vão gostar. Percebemos essa lógica, mas o nosso grau de responsabilidade quando descemos ao terreno e vamos falar nos instrumentos concretos obriga-nos a olhar para o sistema e a percebermos que aquilo que é dito numa entrevista ou num palanque de um comício às vezes tem algum sentido e, muitas vezes, não tem.
Embora as posições nem sempre sejam iguais, parece-me unânime, nesta fase, que é necessário serem feitas alterações no funcionamento da Justiça. Como se pode reverter a desconfiança que grassa na opinião pública em relação ao setor?
A confiança é volátil. Hoje não há confiança porque houve na instrução da Operação Marquês uma decisão que as pessoas não compreenderam e não gostaram, mas essas mesmas pessoas que agora não gostam se calhar foram as mesmas que bateram palmas à mesma Justiça quando ela prendeu o ex-primeiro-ministro José Sócrates e são as mesmas que, provavelmente, criticaram a Justiça quando ela condenou o autarca Isaltino Morais a uma pena pequena e, depois, a seguir vão votar e elegem-no. Se trabalharmos para a confiança do momento não conseguimos fazer nada porque andamos à procura do aplauso popular e isso não é a melhor forma. Há mecanismos de reforço da confiança que precisam ser instituídos: se nestes processos mediáticos conseguirmos uma Justiça que condene ou absolva mais rapidamente isso é um elemento importante para que as pessoas confiem no sistema.
Considera que a Justiça está refém da ideia que só funciona quando os poderosos são condenados?
Claro que está. Mas isso é inevitável, acontece nos países todos. Quando decorre um julgamento em tribunal e, em paralelo, decorre outro nas televisões e nos jornais, com transmissão em direto de interrogatórios, escutas, documentos selecionados para mostrar, isso vai criando na opinião pública a ideia que as pessoas são culpadas. Quando há uma decisão que não vai ao encontro dessa expectativa diz-se logo que a Justiça não funcionou, mas apenas porque as pessoas já estavam convencidas da culpa. A Justiça tem de ter capacidade para atuar sem ser influenciada pelo mediatismo, senão transforma-se numa Justiça-comício. Como é que isto se resolve? Se a Justiça for mais rápida, a opinião pública pode ter outra leitura.
A divulgação de elementos do processo pela comunicação social é, então, um obstáculo à Justiça?
Não. Achei mal a divulgação das escutas e dos interrogatórios da Operação Marquês, mas compreendo a lógica do jornalismo. Mas também acho que no plano da responsabilidade social, se o jornalista perceber que certa matéria cria uma distorção na forma de funcionamento do Estado tem obrigação de parar e pensar se está a fazer bem. E no caso da Operação Marquês julgo ter havido exagero por parte da comunicação social. Mais: agora há uma questão nova. Os jornalistas, hoje, podem ser assistentes nos processos, mas isso não foi feito para que fossem “sacar” informação para depois colocarem na primeira página dos jornais. E se insistirem nesse mecanismo, muito provavelmente, deixam de poder ser assistentes. A ideia é que qualquer cidadão possa exercer a fiscalização pública da cidadania dentro do processo, e não ir buscar elementos em segredo de Justiça para divulgar no exterior.