Hans Küng. Aquilo em que creio

Hans Küng. Aquilo em que creio


Em Aquilo em que creio, um dos mais reconhecidos teólogos católicos do último meio século, recentemente falecido, em linguagem acessível ao grande público, percorre a indagação histórica, a Ocidente, sobre o sentido da vida, recusa a possibilidade de teodiceia e postula uma justiça final, de cariz escatológico, para os injustiçados na Terra.


1.Hans Kung, em Aquilo em que creio (Temas e Debates, 2014), faz notar que a pergunta pelo sentido da vida é uma interrogação iminentemente moderna. Quer dizer, a questão, para os contemporâneos da Bíblia hebraica, do Novo Testamento ou da Idade Média, nem se colocava: Deus e os seus mandamentos, como desde tempos imemoriais, era a evidência da resposta, não necessitada de se requerer explicitamente. A comunidade (crente) apoiava e suportava tal fé; nenhuma razão, pois, para divisar um sentido específico para uma vida individual. 

2.O primeiro autor a colocar o problema é o jurista e teólogo João Calvino, respondendo, no Catecismo de Genebra, de 1542, que a finalidade da vida humana é conhecer a Deus, porque Este nos criou e pôs no mundo para ser glorificado. Só no séc. XVII a interrogação chega aos catecismos católicos que, por sua vez, apenas três centúrias depois, e não sem ambiguidades, remetem para a felicidade terrena, um dos desígnios da existência.
 
3.E é em pleno séc. XX, e depois da II Guerra Mundial, que muitos veem no trabalho o sentido da vida; outros, detectam-no na autorrealização; ou, ainda, na multiplicidade de experiências/vivências. Em cada âmbito (parcelar), algo de verdadeiro, no tocante ao fundamental ao humano, se tocará, mas, ainda assim, são pequenos sentidos, à espera de uma resposta englobante. Como aceitar, sem esperança alguma, a quotidiana dificuldade extrema vivida num bairro pobre de Bombaím, numa favela do Rio, na escravatura do Níger? Como não esperar uma justiça final para os que passaram pelos campos de concentração e extermínio nazis, ou de Mao? Como não pensar na criança que morre precocemente, "não existe então, pergunto-me, justiça alguma? Mais, para que estavam sobre a Terra? E porque estamos sobre a terra, nós, a quem as coisas correm relativamente bem?". Sobre este mesmo ponto, Hans Kung – que em “Aquilo em que creio” afirma o entendimento da inexistência de solução teórica para o problema da teodiceia, entendendo que qualquer resposta a este nível se situa na projecção pessoal dos desejos de quem a oferece, ou em puro constructo teórico. O sofrimento, quando muito, suporta-se na prática, mas não se compreende, insiste -, deter-se-ia, também, em “Uma boa morte” (Relógio d’Água, 2017), sistematizando nos seguintes termos: “Porque é a realidade desta vida de aqui e de agora, são todas as nossas experiências neste mundo, tanto as positivas como as negativas, as experiências vividas felizes que desejamos que durem, mas também todo o não compensado, o não resolvido, tudo o que permanece de maneira provisória, é tudo isso que me dá suficientes motivos para ousar um "sim" a uma vida depois da morte desta. Sem esse "sim", a vida acabaria por me parecer sem objectivo, sem sentido, sem consistência, e o mundo, em última instância, extremamente injusto. Será irracional a confiança em Deus? Não, a mim parece-me o mais racional de tudo aquilo de que pode ser capaz o ser humano: não é real somente o mensurável, o demonstrável em termos físicos, biológicos ou matemáticos; o que podemos ver, tocar, compreender e avaliar não é a última realidade. Respeitando as convicções dos que creem de outro modo, direi que me parece absurdo pensar que precisamente o ser humano seja um ser que morra num nada – tão absurdo como a ideia de que o Big Bang surja do nada. E é assim que me abandono com plena confiança à ideia de que, tal como o universo e o ser humano não podem proceder do nada, também não se dirigem para o nada; de que a passagem para a morte e a própria morte são apenas estações às quais se segue um novo futuro; de que a vida é mais forte do que a morte e de que o ser humano morre nessa primeira e última realidade inconcebível e inabarcável, que não é um nada, mas antes a realidade mais real. Sim, tal é a convicção de judeus, cristãos e muçulmanos, bem como, de outra maneira e com imagens e registos diferentes, de outras religiões: onde o ser humano alcança a última etapa da sua vida, não o espera um nada, mas esse Todo a que os judeus, cristãos e muçulmanos chamam Deus e que é um lugar seguro para os mortos”. 

4.A resposta de Hans Kung – que explicará, ainda em “Uma boa morte”, que “o "céu" do qual fala a fé não é – bem vistas as coisas – aquilo que está por cima do mundo, não é um céu em sentido físico (no sentido que sky tem em inglês). O céu da fé (em inglês, heaven), não é o céu dos astronautas, como justamente testemunharam esses astronautas que, por ocasião da primeira viagem à Lua, recitaram no cosmos a passagem bíblica da criação do universo. Não, a ingénua ideia antropomórfica de um céu por cima das nuvens é pura e simples superstição. Deus não vive como "ser supremo acima" do universo, num sentido local ou espacial, nem num 'além-mundo'. Nós, cristãos, cremos que Deus está presente no universo. O céu da fé também não é um lugar que esteja fora do universo, não é um céu em sentido metafísico. Deus não está, num sentido espiritual ou metafísico, "fora" do universo num além extrauniversal, num "para lá do mundo". Nós, os cristãos, cremos que o mundo está escondido dentro de Deus. Portanto, o céu da fé não é um lugar, mas uma maneira de ser; o Deus infinito não é localizável no espaço, não é limitável no tempo. Se nos referimos ao céu de Deus, que este seja, então, esse "domínio" invisível, essa "morada" de Deus, do "Pai", da qual o céu físico visível poderá ser um símbolo da sua extensão, da sua claridade e da sua luz. Como em termos poéticos o exprime do mesmo modo o hino nacional da Suíça: "Nos espaços luminosos do céu, posso sonhar sereno e livre!". Todavia, considerado numa perspectiva sóbria e piedosa, o céu da fé não é outra coisa senão o âmbito de Deus, oculto, invisível e inconcebível, do qual a Terra não está excluída – um âmbito que, antes, segundo a mensagem de Jesus Cristo, tudo encaminha para o bem e participa da soberania e do reino de Deus” – sobre o sentido da existência, em síntese, procura não cair em dois pólos (extremos, de cariz oposto): o naturalismo que vê no humano apenas biologia, absoluta igualdade (humana) com as demais espécies, ausência de valor e sentido (superiores); e o construtivismo como sistema que vê no sentido uma construção puramente humana, sem que esteja, de algum modo, vinculada à realidade; puro artifício. Não nos enganemos: "esse sentido tem de ser encontrado por cada pessoa – cada homem e cada mulher – por si mesma, no seu próprio círculo de vida, maior ou menor". Em completa fidelidade à Terra. Porque, mesmo de um ponto de vista muito pragmático, aliás, sobretudo nele, o sentido da vida – como resposta intelectualmente coerente e, sobretudo, praxis consequente que cada um dará – torna-se (resposta) fundamental para si próprio, em momentos de crise, momentos pelos quais, todos, humanos, passamos e que – sem esta robustez, esta resposta procurada e, de alguma forma, minimamente encontrada, com verdade e seriedade -, em chegando pode conduzir ao abismo. Por isso também, defende justamente o teólogo suíço, recorrendo a Max Weber, o professor, esse magistério por excelência, devia ter como uma das grandes missões, sem proselitismos de espécie alguma, mas "com integridade intelectual", ajudar os seus ouvintes a atingirem a "clareza"; numa palavra, "obrigar o indivíduo – ou, pelo menos, ajudá-lo – a prestar contas a si mesmo do sentido último dos seus próprios actos", para que possa decidir entre "as possíveis atitudes últimas perante a vida".