“Hemingway”. O documentário que vira do avesso a lenda do grande macho das letras americanas

“Hemingway”. O documentário que vira do avesso a lenda do grande macho das letras americanas


Documentário de seis horas, assinado por Ken Burns e Lynn Novick, revela que, se Hemingway fazia o papel do durão, e gostava de caçadas e pescarias, de se afogar no copo e de andar aos murros, no quarto preferia que as mulheres fizessem de homem, e o tratassem por “Katherine”.


Agora que tanta gente se lembrou de encafuar o passado numa ridícula sala de tribunal, ir chamando um por um os nomes que definiram o gosto e o estilo, a sensibilidade e a destreza emocional nesse curso imponderável a que chamamos “o passado”, como se dele nos pudéssemos apossar, não falta quem se julgue à altura de lhe tomar o pulso e com ele medir forças indo ao ponto, até, de propor revisões, apontar manchas antes imperceptíveis no cadastro de grandes figuras históricas e de artistas. É uma tendência terrivelmente reveladora da falha de carácter da nossa própria época, da sua petulância grotesca, mas há também quem saiba esquivar-se a esse guião mais genérico, e sabotar este regime revisionista, formulando juízos ambíguos e até suspendendo a sentença, para dar margem a relatos e retratos mais complexos, trepidantes e combativos, mais profundos. É o caso dos documentaristas Ken Burns e Lynn Novick, cujo último trabalho, “Hemingway”, com três episódios e um total de seis horas, estreou no dia 5 de abril no canal público PBS, e nas duas noites seguintes lançou uma rede no leito não só da obra como da vida pessoal de Ernest Hemingway, e, sem contestar necessariamente a lenda do homem que gostava de ser tratado como Papa, traça um retrato bastante revelador deste autor que, apesar da influência inescapável que teve sobre várias gerações de escritores, tem vindo a ser encarado como um dos grandes avatares da masculinidade tóxica. Mas se o mais fácil é desconsiderar o génio para aliviar de remorsos a tentação de apagar o passado e fingir, assim, que o futuro só pode fazer melhor, se a fanfarronice machista de Hemingway choca de frente com a bonomia apalermada desses que se deixam arrastar por qualquer tendência do estéril progressivismo que tomou conta das artes, o facto é que as páginas deste escritor, com aquela prosa clara e lúcida que ele mesmo cunhou, misturando tinta e sangue, parecem não ter secado de todo, e a sua brumosa crónica de uma vida cheia de peripécias mantém a atracção, e corre ainda afectando a disposição dos leitores que se confrontam com ele. Assim, a imagem que Burns e Novick pintam, sendo fiel a uma investigação que se prolongou por seis anos, está longe de fixar uma imagem idílica de Hemingway, guiando-se mais por uma das lições que ele mesmo fixou: “Se é tudo muito bonito então não vais acreditar nisso. As coisas não são assim.”

Ele foi um desses ossos da terra, arrancado de entre a sombra imensa que sobre ela deixaram os melhores espíritos do modernismo, e se há muitos aspectos que fazem dele um espinhoso colosso das letras, é bom lembrar que foi o próprio quem, tendo alcançado mais do que a sua ambição poderia ter sonhado, não deixou o fim por conta de outra coisa que não a sua própria consciência, e tratou do assunto com um tiro de caçadeira, aos 61 anos, faz em julho 60 anos. Portanto, sim, havia nele um egoísmo e uma determinação raiando a demência, e é verdade que podia ser obstinado e volátil, e que foi abusivo com amigos e mulheres, exigindo das companheiras que lhe fossem devotas até à submissão, que o sustentassem e o seu talento, e que casou quatro vezes e não largava uma sem ter já a seguinte à sua disposição. Tudo isso surge no documentário, a sua propensão para fazer da própria vida um enredo, e, como tantas vezes parecia perdido, não sabia a quantas andava, foi com mentiras que primeiro se ensaiou na ficção. Em 1919, depois de se ter voluntariado para um lugar na primeira linha com vista para a devastação da Primeira Guerra, tendo-se juntado à Cruz Vermelha, conduzindo uma ambulância em Itália, Hemingway regressou a Oak Park, a sua terra natal, no Illinois, e depois de ter recuperado de um ferimento grave provocado por um morteiro, apenas um mês depois de ter chegado à Europa, exagerou o seu papel naquele teatro, e começou a trabalhar no próprio mito, a aprimorar o relato da sua intervenção heroica que contava em troca de um bom soldo. Assim, foi afinando o conto em que era ele mesmo o protagonista que havia arrancado um soldado das entrenhas infernais antes de colapsar. Não saía de casa sem o uniforme, incluindo uma capa negra de veludo italiano. Mas não se pode dizer que, neste aspecto, Hemingway tenha sido um grande inovador, já que tantos escritores começaram assim, representando as suas ficções para a audiência que os cercava, articulando detalhes desses que emprenham a imaginação de quem o escutasse, sendo forçado depois a prestar caução, mentindo quando a história enchia demasiado o peito e tinha de encontrar um desfecho à altura. Mas esse era o espírito dos tempos. Não valia a pena aborrecer os outros com as próprias façanhas a menos que estas tivessem, de facto, fulgor narrativo. E Hemingway cresceu e fez-se um artista numa era que viu os mitos renascerem. Dois dos mais comuns, eram o mito do grande romance americano e do intrépido homem capaz de arrancar um perfil de gigante ao lançar-se à descoberta do mundo.

O segundo de seis filhos, Hemingway começou por lutar por um lugar à mesa, na sua própria casa. Filho de uma cantora de ópera e professora de canto e de médico bastante respeitado, mas frequentemente abatido por uma devastadora depressão, o documentário começa por complicar as coisas ao turvar a imagem popular que temos de Hemingway, a do mahcão que embalava nas suas conquistas em busca de material e, tão cedo quanto tinha extraído delas páginas suficientes, desdenhava as mulheres e partia noutra direcção. Segundo Burns e Novick, houve logo na primeira infância algo que baralhou o ideal de masculinidade, já que Grace, a mãe de Ernest, gostava de fingir que ele e a irmã eram gémeos, e vestia-os de forma idêntica, fosse como dois rapazes ou duas meninas, e segundo o documentário isto tê-lo-á predisposto a uma atracção pela andorginia, e a revezar-se, não só na intimidade como na sua obra, entre perspectivas femininas e masculinas. Se Erneste herdou do pai o encanto pelo mundo natural, o qual ficou representado nos seus contos e romances como uma espécie de Eden perfeitamente arruinado, a mãe tinha outras ideias sobre o enlace entre Adão e Eva. Marceline, a irmã mais próxima de Ernest em idade, foi como um espelho para ele. Usavam o mesmo corte de cabelo e eram encorajados a brincar tanto com serviços de chá como com pistolas de pressão. E este interesse na inversão dos papéis ficou com ele, era um segredo que o levou a escrever páginas que, hoje, fariam dele um dos autores-talismã das sensibilidades dominantes, mas que, na altura, o envergonhavam. Mas a exploração não se ficou pelas incursões literárias, e também no quarto misturava um estranho perfume, tendo pedido às suas companheiras que usassem o cabelo curto para que se parecessem com rapazes, e gostava que se lhe dirigissem na intimidade por Katherine, ao passo que ele as chamava de Pete.

Assim, já se percebe que o retrato que emerge do autor passadas seis décadas é bem mais sinuoso do que seria de esperar, isto numa altura em que a cultura norte-americana reabriu tantos processos e feridas relacionadas com figuras mais remotas ou ainda vivas como Woody Allen.
E se Hemingway abraçou a masculinidade como uma forma de performance para esconder certos fantasmas que o puxavam para dançar assim que passava da luz para a penumbra, Burns disse numa entrevista ao “The New York Times” que aquilo que o diferencia entre os grandes autores da sua geração é que, se ele emergiu entre a vaga modernista, ao lado de escritores como Joyce e Faulkner, enquanto estes são bastante complicados, Hemingway atreveu-se a ser a personificação da simplicidade, a expor o nervo, a deitar a frase sem provocar grandes calafrios, antes atraindo o leitor e deixar para depois o verdadeiro ajuste de contas. “Aquilo de que se deu conta é que podes usar frases aparentemente vulgares, sem adornos, e que estas acabariam por se mostrar tão prenhes como os parágrafos de Joyce ou a frase de Faulkner que deambula e parece nunca mais terminar. Assim, nele, corria por baixo da superfície. E obrigava-te a ires tu em busca do significado (…) O que ele te está a dizer é que não vai fazer por ti o caminho.”

A dupla de realizadores que assina o documentário colabora há mais de quatro décadas (antes Novick assinava a produção dos filmes de Burns), tendo criado uma avassaladora obra fílmica documental cujo centro é a grandiosa série dos anos 1990 dedicada à guerra civil americana, e que, desde então abarcou aspectos decisivos da história e da cultura como o jazz, o baseball, a Segunda Guerra, a guerra do Vietname, e ainda biografias de lendas como Jackie Robinson, Mark Twain e Frank Lloyd Wright. Agora, e depois de há muito o nome de Hemingway fazer parte das suas listas de candidatos a um documentário, a sua hora chegou, e se em muitso aspectos parecem obrigados a defendê-lo, os realizadores não separam a arte da vida, tal como o escritor não o fazia. E se a sua lenda se impôs de tal modo que ameaça deixar na sombra a obra, o documentário não perde de vista a forma como ele raspou da sua prosa qualquer vestígio de pátina, qualquer verniz e todos os excessos de linguagem pelos quais tantos escritores se deixam enamorar, e isto para criar um vínculo mais profundo com o leitor, passando para ele a responsabilidade de trazer a emoção e, assim, apropriar-se de forma mais profunda das histórias. Foi uma estratégia na qual Hemingway buscou inspiração fora da literatura, admitindo a influência de Paul Cézanne, que pintava incessantemente a mesma paisagem ou objectos em busca de um novo ângulo, de uma fissura que lhe permitisse arrancar outra forma de as ver, a partir da intimidade que elas mesmas ditavam. Assim, como notou Élie Faure, nas naturezas-mortas de Cézanne – “uma garrafa, umas tantas maçãs, uma tigela com flores azuis ou vermelhas pintadas, uma faca” – tudo ganha “o peso da vida arrancada às suas raízes”. E se “a natureza é mais em profundidade do que à superfície” (Cézanne), Hemingway não estava tão interessado em captar esse arrepio inicial de um estilo mais aparatoso, mas o vigor de uma prosa esperta, capaz de fixar em si a própria duração perante os elementos, as alterações que compõem e nos dão a saborear o eterno. E nest esforço, soube aproveitar até aquilo que aprendeu muito cedo com a mãe, admirando Bach pela mestria como sabia servir-se da repetição, e foi ouvindo-o toda a vida que aprendeu a usar esse mecanismo de apreensão deleitosa, engrenando os ritmos, fazendo-os desaguar num efeito encantatório que segurava sempre a tensão da sua prosa.

Recorde-se que, logo depois de ter terminado o liceu, Hemingway começou a escrever os primeiros artigos para o Kansas City Star, e o livro de estilo do jornal foi das coisas que primeiro o fizeram sentar-se à maquina de escrever como a um piano, com igual respeito pelo silêncio como por cada nota capaz de o cortar à faca. “Usa frases curtas. Parágrafos iniciais breves, directos. Usa um inglês vigoroso”, eram alguns dos mandamentos para os jornalistas. E este mesmo rigor implicava não só um estilo mas uma épica interior, uma condução dos seus impulsos, uma coragem que obrigava o artista a desejar não apenas a grandeza mas, igualmente, a integridade. Se Hemingway, como nos diz Tobias Wolff no documentário, mudou toda a mobília no quarto onde hoje lemos e escrevemos, e se estamos obrigados a sentarmo-nos ali, um dos aspectos mais conseguidos do filme é a forma como vai intercalando passagens da obra, com o celebrado actor Jeff Daniels a liderar um elenco de luxo nas vozes (as quatro mulheres do autor são interpretadas por Meryl Streep, Patricia Clarkson, Keri Russell e Mary-Louise Parker), e estes momentos dão um alcance imenso às palavras e à forma como gravou a humanidade nos seus caracteres mais luminosos e sombrios nas páginas. No seu segundo romance, “ O Adeus às Armas”, publicado em 1929, Hemingway diz-nos que “se as pessoas trazem demasiada coragem a este mundo, o mundo sente-se na obrigação de as dar cabo delas de forma a vergá-las, por isso é claro que as mata. O mundo dá cabo de todos e o que acontece é que muitos de nós ficamos fortes precisamente nos pontos de fractura. Mas aqueles que se recusam a quebrar são mortos. Ele mata os melhores, os mais gentis e os mais bravos com igual desdém. E mesmo que não faças parte de nenhum destes, ele não te deixará escapar, apenas não terá tanta pressa.”