Paulo Moura. “Quando o jornalismo se torna ativista, não serve para nada”

Paulo Moura. “Quando o jornalismo se torna ativista, não serve para nada”


Paulo Moura prepara-se para lançar Cidades do Sol, acerca das utopias da classe média asiática, no próximo dia 3 de maio.


Quando chegou a altura de escolher o percurso académico, optou pela História, até porque não desejou ser jornalista desde pequeno. Considerava a escrita jornalística convencional enfadonha. No entanto, a sede de conhecer o mundo levou a melhor e avançou para um curso na área. Em 1989, integrou a equipa fundadora do Público, com o qual viria a colaborar durante 23 anos. Foi correspondente do jornal nos EUA e, além de escrever para a editoria de Internacional, apostou nas de Cultura e de Sociedade também. Já fez a cobertura de conflitos em países como o Afeganistão, a Argélia, o Iraque ou a Síria e publicou reportagens em revistas como a Harper’s Magazine ou em jornais como o New York Times.
Considera que tem a “barriga cheia” de reportagens e, por isso, a par da ocupação enquanto repórter freelance, e depois de ter escrito nove livros de não-ficção e dois de ficção, Paulo Moura prepara-se para lançar Cidades do Sol, acerca das utopias da classe média asiática, no próximo dia 3 de maio.

Como ganhou o gosto pela literatura? E pela escrita?

Foi desde pequeno e por influência da família. Há pessoas que têm percursos diferentes e descobrem os livros mais tarde – tenho muito respeito também por elas –, ou seja, não acho que estejamos pré-determinados para algo por termos um background. Sempre tive muitos livros em casa porque a minha mãe era formada em Línguas e Literaturas Modernas e o meu pai era juiz e advogado e, depois, foi conservador do registo civil. Sempre tive um ambiente do culto dos artistas e da arte. Por isso, quando era adolescente, lia poesia: ia para a praia ler Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, José Gomes Ferreira… Hoje em dia, raramente o faço. Uma das memórias que tenho é a da chegada do homem à Lua. Acabei por adormecer no ombro do meu pai, mas é como se tivesse visto porque estava lá com ele.

Como decidiu ingressar na licenciatura em História? Era um bom começo para entender o mundo?

Não quis ser jornalista desde pequeno. Gostava de escrever e queria escrever, eram as duas coisas que mais apreciava. Em certa fase da minha vida, a música também foi muito importante: toquei em várias bandas e pensei que poderia fazer disso a minha vida. Tive a dupla Magrinhos e Feios com o Pedro Abrunhosa, somos amigos desde os 14 anos. Quando fui para a faculdade, pensei que queria ser escritor. Vivia no Porto e não havia nenhum curso de Jornalismo. Hoje, há dezenas, até a mais. Naquela altura, a segunda maior cidade do país não tinha formação nessa área. E também não havia jornais interessantes. Naquela época, houve um jornal que cativava um pouco os jovens que era O Independente. Houve vários fenómenos como a revista DNA, do Diário de Notícias. Mas não havia uma publicação em que os mais novos quisessem participar. Os jornais eram muito chatos, só falavam dos assuntos convencionais, não existia jornalismo mais criativo. Portanto, fui para História porque achava que precisava de aprender História. No ensino secundário, a minha disciplina favorita era Filosofia. Achava que sabia tudo e pensei que não devia aprender mais. Dei aulas de História durante uns anos porque era isso que os formados em Letras faziam. As coisas mudaram, em Portugal, para melhor.

Também deu aulas de Português.

Sim, o curso de História dava-me essa habilitação. Ensinei no secundário em várias cidades. No primeiro ano, fui colocado no Bombarral. No ano seguinte, abriu o curso de Jornalismo no Porto, na Escola Superior de Jornalismo. Era um bacharelato, de três anos, quando a licenciatura era de quatro. Estava a trabalhar e, ao mesmo tempo, estudava. Nunca pensei em ser o jornalista convencional que está sentado na redação. Para mim, era viajar. Houve uma pessoa que via na televisão, lia no Expresso, chamado Carlos Santos Pereira, que é um tipo que ninguém conhece hoje em dia. Para mim, foi uma influência enorme. Os comentários dele sobre as questões internacionais fascinavam-me. E ele foi o meu primeiro editor no Público.

De 1989 a 1992 esteve no Público, em Lisboa, e, entre os anos de 1993 e 1995, foi correspondente permanente do jornal nos Estados Unidos, Canadá e México.

Estava baseado em Washington, primeiro. Depois, por minha iniciativa, mudei-me para Nova Iorque porque aconteciam mais coisas. Não fazia apenas Política, gostava de aprofundar a Cultura. Passava a vida a viajar por todos os sítios, fui ao México fazer uma reportagem sobre os Zapatistas.

Foi para os EUA no ano em que o Bill Clinton foi eleito.

Estive lá durante o primeiro mandato. Quando o Clinton tomou posse, eu também tomei, porque cheguei ao país no primeiro janeiro de 1993. Com a minha mochila às costas, tinha de encontrar casa e tratar de tudo sozinho. Em trabalho, já tinha estado nos EUA várias vezes. Fiz a cobertura da campanha eleitoral e da Convenção Democrática.

Costuma dizer que o viajante tem de provocar acontecimentos e ter uma postura ativa. E em jornalismo, também temos de ter essa postura, mas estava nos EUA com tudo a acontecer em seu redor. Sentia-se assoberbado?

Há sítios em que acontecem mais coisas do que outros. Há lugares muito intensos e os EUA são um desses países, especialmente, em Nova Iorque. Sai-se à rua e vê-se logo coisas interessantes para escrever. Tenho a teoria, e tem mais que ver com a Escrita de Viagens, de que é mais positivo viajar quando estão a acontecer coisas do que numa época normal. Quando acontecem grandes convulsões políticas, sociais, de efervescência cultural.

Como o 25 de Abril, quando vieram jornalistas estrangeiros fazer a cobertura da Revolução.

Exato. A teoria do papel ativo dos jornalistas não se aplica tanto nos locais em que os acontecimentos vêm ter connosco. Mas, mesmo aí, temos de ter uma atitude ativa no sentido de não estar apenas dependente daquilo que lhe acontece. Temos de falar com as pessoas, ir aos sítios, estarmos presentes e não esperarmos que alguém nos conte aquilo que viu. Não devemos ter um papel passivo.

É possível ter sempre esse papel atualmente?

Não tenho uma solução, senão, já a teria aplicado. O jornalismo implica deslocação e, de facto, isso por vezes não é fácil porque é necessário ter recursos e dinheiro. O próprio tempo que se gasta também custa dinheiro. É desvalorizada a especialização e a qualidade das pessoas. Até porque os próprios leitores não têm sentido crítico suficiente para ver a diferença. É todo um nivelar por baixo nas diversas vertentes. Tudo isto reflete-se na profissão. O jornalista é visto como muito pouco especializado, mas devia ser diferenciado. É como um cirurgião ou um piloto de aviões. Se colocarmos um tipo qualquer a fazer uma operação ou a pilotar um avião, será que vamos arriscar? O jornalismo está ao mesmo nível destas profissões ou mais porque, por vezes, pode ser mais perigoso. Um cirurgião pode matar uma pessoa, o jornalista pode matar mais. Por exemplo, se um jornalista fizer mal o seu trabalho sobre a informação relativa à covid-19, pode quase matar diretamente as pessoas. Atualmente, parece que qualquer pessoa pode ser jornalista.

Isto acontece porque o fluxo de informação é muito grande e pela existência do jornalista-cidadão? Talvez as pessoas não consigam escolher bem as fontes?

Houve uma série de mudanças tecnológicas, sociais e económicas que fazem com que o mundo esteja em permanente e rápida evolução. O paradigma que tínhamos desapareceu. Antigamente, as nossas referências eram muito claras. Sabíamos qual era o papel de cada um e para que servia um jornalista. Quando as pessoas precisavam de se informar, compravam um jornal, sabiam que encontravam informação credível. As coisas confundiram-se: se precisamos de um táxi, chamamos um Uber ou se queremos ir de férias, vamos para um Airbnb. São alterações económicas facilitadas pela tecnologia que causam prejuízos aos setores: quando uns usufruem da mudança, outros ficam mal.

Numa conferência, em Serralves, falou da ideia do “jornalismo Uber”.

Exato, dei essa sugestão. Porque não a pessoa poder contratar um jornalista como se chamasse um Uber? A vantagem seria que, apesar de tudo, a pessoa que ganharia por isso teria de respeitar a ética e a deontologia do jornalismo, algo que as pessoas que emitem notícias e opiniões, sem o respeito pela verdade, não fazem. Se toda a gente pode publicar notícias nas redes sociais e chegar a milhões de pessoas, isso torna os papéis de cada um menos claros. Diria que esta é uma fase de transição em que as pessoas, por um lado, perderam as referências claras mas, ao mesmo tempo, estão a recuperar a noção de que o jornalista é o único que pode dar informação em que podemos confiar. Cada vez mais somos manipulados, as nossas vidas são usadas para benefício de várias entidades e a principal mercadoria transacionada é a informação.

Os jornalistas têm culpa deste panorama?

O jornalismo pode ter vários graus de sensacionalismo. Entre o jornalismo de referência e o sensacionalista, existem formas diferentes de abordagem com as audiências. No primeiro, tentamos ser mais sérios e apenas produzir a informação que é do interesse público. No segundo, produz-se a cada momento, mesmo que seja pela curiosidade mórbida de um acontecimento. Há lugar para tudo, não é o sensacionalismo que degrada a imagem do jornalismo. Há jornalistas sensacionalistas altamente éticos em termos de independência. Não é por se ser sensacionalista que existe menos seriedade. O perigo é quando o jornalista perde a sua independência e trabalha ao serviço de interesses. Porque não tem recursos ou capacidade de investigar e procurar a informação e vai atrás das redes sociais procurar as tendências, faz aquilo que lhe mandam ou troca informação por publicidade. Isto é que mina a profissão.

Acredita no binómio da parcialidade-imparcialidade?

O jornalista tem de ser imparcial. É um ser humano e tem paixões, tendências e simpatias. Não é uma máquina e ainda bem. Mas, quando está a trabalhar, não deve tomar opções ou favorecer as partes com as quais concorda mais ou tem mais empatia pessoal.

Esse seria o jornalismo ativista?

Agora há uma grande corrente que acha que o jornalismo é de causas, mas sou completamente contra isso. Respeito muito os ativistas e, enquanto cidadão, dou todo o meu apoio, mas quando o jornalismo se torna ativista, não serve para nada. O jornalista tem de tentar compreender todos, dar-lhes igual voz, fazer o contraditório e respeitar todas as opiniões. E, sempre que tiver alguma simpatia, os leitores devem saber isso. Devemos ser subjetivos: isso não significa que sejamos imparciais, mas sim dar espaço às nossas emoções porque são muito importantes na informação. Não podemos dizer que um assassino é igual a um cidadão que não cometeu um crime. A imparcialidade tem limites porque o jornalista não é um ser absolutamente permeável a tudo, que compreende todos os pontos de vista possíveis e imaginários. A figura do jornalista só existe num determinado contexto. É um fenómeno relativamente recente. 

Os primeiros folhetins apareceram a par e passo com as trocas comerciais realizadas via marítima.

A maior parte da população mundial vive sem jornalismo. Esta profissão existe nos países democráticos e capitalistas com todos os problemas que o capitalismo possa ter. Nos outros, não há. A própria liberdade de imprensa surgiu em consonância com a liberdade comercial. Não foi nenhum idealista utópico que inventou o jornalismo, este surgiu por motivos pragmáticos e concretos. O próprio jornalismo está ligado ao sistema e o jornalista deve defender os valores da democracia e da liberdade.

E quando os jornalistas obedecem ao sistema?

O jornalista tem de estar ao serviço dos ideais deste sistema. Não necessariamente na realidade deste, mas na sua utopia. É claro que existem atropelos à democracia e o jornalista tem o papel de denunciá-los. E um deles é a existência de ideias fascistas e antidemocráticas. E o jornalista tem de ser duro e nunca dar direito de cidadania a ideais destes porque constituem um crime. Pode entrevistar um assassino, por exemplo, mas não vai dizer que houve uma justificação para o homicídio. Nunca se pode colocar isso ao nível de outra ação. 

No entanto, há utilizadores, nas redes sociais, a apoiarem esses posicionamentos.

Sim. A maior parte até não publica nenhuma fotografia e tem apenas uma imagem patriótica como a figura do Afonso Henriques na imagem de perfil. São trolls que vão aparecendo de mansinho para inserir elementos "fascistóides". Parecem muitos, mas são meia dúzia que se infiltra.

O mundo virtual também pode ser perigoso para o jornalismo?

Não podemos ver as redes sociais como o problema. Temos medo, parece que são uma espécie de “monstros”, mas estão em constante mudança. Acho que é errado termos uma atitude de negação e dizermos que não há liberdade ou que os ódios estão à solta. Isso é verdade, mas simplesmente temos de ter a capacidade de nos adaptarmos e transformarmos o mundo com as ferramentas que temos. Se o problema passa pelas redes sociais, é necessário regulamentá-las, levar a que as pessoas cumpram regras, desmontar o negócio construído à volta destas… Por exemplo, até aqui, as pessoas usavam o Facebook sem saberem aquilo que estava a acontecer, mas agora ninguém tem desculpa porque já foi divulgado o facto de que existe a tentativa de sermos manipulados em massa. Temos de estar na luta. A nossa atitude nunca deve ser de recusa dos progressos tecnológicos nem de achar que “antes é que era bom”. Eu sei que antes não era bom. Não haver Internet, redes sociais ou telemóvel era bem pior. 

Ao ter feito a cobertura de tantos conflitos, algo tão negro, existe alguém que o tenha marcado especialmente?

Nunca sei responder a essa pergunta, é muito complicado. Há sítios onde acontecem coisas que acabam por se tornar imortais, importantes historicamente. E, nesses casos, todos os pormenores e movimentos são uma espécie de lenda, coisas que ficam cristalizadas na minha mente. Estive nas grandes guerras em que o Ocidente esteve envolvido nas últimas décadas e todo o mundo tinha os olhos postos naqueles países e eu estava lá. Por outro lado, existem as pessoas que conheci, os episódios que vivi… E, aí, até posso valorizar acontecimentos pouco importantes para o resto das pessoas. Mas se conjugarmos estes motivos, digo que a Guerra do Iraque me marcou muito porque durou oito anos. Estes trabalhos de jornalismo internacional têm uma característica diferente daqueles que são feitos no próprio país: só pelo facto de se ir para um sítio longínquo onde não se tem referências nem outros afazeres. Em Lisboa, por muito importante que uma reportagem seja, vamos para casa depois. Se estamos num sítio destes e não pensamos em mais nada, fazemos um pequeno telefonema ao fim do dia para a família e pouco mais. Já é avassalador se formos para outro país durante um dia. Se estivermos lá três meses, é como se vivêssemos outra vida.

Em que momentos isso aconteceu?

Mencionei a Guerra do Iraque, mas vivi ainda mais esta sensação na Primavera Árabe. Foram praticamente três meses seguidos, quase quatro. 

Consegue “desligar-se” quando regressa a Portugal?

Não é fácil, nunca me desligo. E ainda bem porque seria estranho se tal acontecesse. Há coisas que provocam traumas e, paciência, fica-se com eles. Mas também é verdade que, precisamente por serem coisas em que se mergulha totalmente, quando se volta é como se saísse daquele mundo e parece que foi uma espécie de sonho. Por isso mesmo é que, do ponto de vista da escrita, é diferente escrever enquanto se está noutro país. Escrevendo depois, existe mais distanciamento, tempo para reflexão, faz-se tudo de forma melhor e mais ponderada. 

Mas o que prefere? Por exemplo, escreveu “Uma Casa em Mossul”, lançado em 2018, no Iraque. 

Sim, mas quando regressei, olhei para as notas e pareciam estar soltas e havia muitos erros gramaticais. No fundo, escrevi lá e arranjei o texto cá. O ponto de vista, a maneira como se sente aquilo que se escreve estando no sítio é diferente porque há outra emoção, o espírito alerta de quem vive o acontecimento e a personagem do narrador que escreve não é a mesma do narrador que já está no conforto do seu país a escrever baseado na memória daquilo que aconteceu. Gosto dos dois níveis, mas a escrita a quente foi aquilo que sempre fiz para o Público. Encostava-me a um cantinho qualquer com o computador ou o bloco de notas e escrevia. Não havia condições nenhumas, por vezes estava cheio de fome e sono. É forçosamente uma escrita distinta, mas respeito muito esse tipo de trabalho.

Opõe-se àquele que é feito hoje em dia, muitas das vezes, mediado pelas novas tecnologias?

Quando comecei a trabalhar no Público, não havia Internet. Em muitos trabalhos, ditava os textos por telefone. “Depois. Vírgula. Ele. Foi…” e a pessoa do outro lado a escrever. Também desmontava o telefone do hotel e fazia uma ligação clandestina para enviar os textos para o jornal. Agora, acede-se ao email em qualquer lado. Até sítios onde não há rede, o telefone satélite permite que consigamos enviar informação. Também é possível gravar vídeos e tirar fotografias com enorme facilidade. O jornalista deve usar todos os meios. Havia jornalistas que eram autênticos MacGyver, inventavam engenhocas ou estratagemas para chegarem à fala com este e com aquele, portanto, sempre fomos as pessoas que têm de se desenrascar para chegar às coisas. Só não se pode deixar de viver e ir aos sítios porque o jornalismo tem cheiro e sabor. 

Como surgiu a paixão pelo jornalismo literário?

De forma tardia. Não sabia nada sobre ele nem conhecia os autores. Quando o descobri, havia pessoas a fazê-lo há décadas. Tom Wolfe, Truman Capote, Gay Talese, Norman Mailer… todo esse mundo dos jornalistas que escreviam sobre o mundo usando recursos da literatura. Não me influenciaram porque nunca tinha lido nada deles. Lia muita ficção. Nunca fui grande leitor de jornais. Quando era jovem, achava-os “uma grande seca”. O tipo de escrita convencional jornalística é uma forma muito estéril e enfadonha de escrever. Não tenho paciência. Por isso é que gosto da escrita límpida de pessoas como o Ernest Hemingway. Quando comecei a dedicar-me à reportagem, desde cedo, tentei ter o meu estilo pessoal, espontâneo, livre e mais literário. 

Acha que estamos numa fase de paixão pela literatura ou afastamento da mesma?

Temos de mostrar novamente para aquilo que ela serve, à semelhança do jornalismo. As pessoas antes liam livros para passar o tempo. Agora, há os telemóveis. Há meia dúzia de intelectuais que continuam a ler, mas a maioria das pessoas julga que há coisas mais engraçadas. Não estamos numa fase de fazer experimentalismos estilísticos: temos de voltar atrás e questionar “Lembram-se daquilo que era pegar num livro e não conseguir parar de o ler?”. Há que voltar a esse prazer autêntico e quase infantil. Isso significa estar aberto ao mundo e valorizar histórias.

Quais são os seus autores preferidos?

Identifiquei-os como aqueles que têm que ver comigo e que me podem ensinar mais. Por um lado, a escola do novo jornalismo de que já falámos. Por outro, o realismo agrada-me muito e acho-o importante, por isso, gosto do Charles Dickens, que continua a ensinar-nos a escrever. E o Graham Greene mistura aventura com reflexão e, apesar de ser uma literatura um pouco datada, volta a ser necessário escrever daquela maneira. Os escritores que passaram a vida fechados num cubículo começam a ser desinteressantes.

Mas também existem situações-limite como “Viagem à Volta do Meu Quarto”, de Xavier de Maistre, que costuma mencionar.

É algo exemplar que pretende ser um statement: mostra que, de facto, aquilo que importa é a atitude que temos. Há pessoas que viajam e só conseguem contar que perderam a mala no aeroporto. A viagem em si passa pela atitude de disponibilidade e de observação para conseguirmos narrar as nossas experiências. Temos de ter a capacidade de viver, transformar e refletir. 

Foram essas ferramentas que a reportagem lhe deu e que, posteriormente, o auxiliaram a escrever ficção?

Sim. Em 2006, publiquei o “1147 O Tesouro de Lisboa” sobre a conquista da cidade aos mouros. Não estava nada virado para isso, mas a Esfera dos Livros tinha chegado a Portugal e fui o primeiro autor que ela contactou. Sugeriram que fizesse um romance histórico. Aceitei, não estava motivado, mas foi uma experiência de ficção. Os princípios da observação, de refletir sobre a realidade e de dar a conhecer o mundo são os mesmos. 

Isso ajudou-o a escrever o “Hipnose?”, lançado no ano passado?

É inevitável, nem sequer é uma decisão minha. Se nunca tivesse havido o curso de formação de jornalistas e eu não tivesse entrado no Público, teria continuado a dar aulas e poderia escrever romances ao mesmo tempo. Até foi isso que imaginei que aconteceria. Teria começado a escrever mais cedo e seria um escritor completamente diferente. Se calhar desenvolveria mais a arte da escrita, mas, por muito que queira voltar a esse tempo, não consigo. As experiências marcaram-me, traumatizaram-me, encheram-me a cabeça de histórias do mundo que transparecem forçosamente nos livros. 

Como os retratos que recolheu para o livro sobre a Ásia, o “Cidades do Sol. Em busca de utopias nas grandes metrópoles da Ásia”, que será editado a 3 de maio?

Esse livro já devia ter sido publicado, mas isso não aconteceu devido à covid-19. Devia ter sido lançado pela Nomad, mas será publicado pela Penguin. Acho que seria importante fazer lançamentos e sessões sobre o livro. É sobre a perspetiva de encontrar as utopias que surgem na Ásia. Os livros também devem ser um objeto que serve de pretexto para iniciar conversas. Este é muito feito de entrevistas com escritores, sociólogos, artistas, músicos. Quis saber as ideias que a classe média asiática tem. Há uma viagem que tinha feito previamente à China – 9.000 quilómetros num mês, por terra –, mas as outras tiveram a duração de dois meses e meio e são mais recentes. 

Há algo que ainda queira fazer? Por exemplo, explorar mais um género jornalístico?

Se não pudesse fazer mais reportagens na minha vida, aceitá-lo-ia porque tenho a barriga cheia. Por outro lado, há pessoas pelo mundo fora que gostaria de entrevistar. Há muitos escritores que entrevistei e com os quais me identifico. Por exemplo, o Arturo Pérez-Reverte. Gostei muito de conversar com ele. Foi difícil porque me tratou como se fosse mais um, disse as coisas que repete sempre, mas acabei por irritá-lo. Como ele tem um percurso parecido com o meu, falámos de coisas que mais ninguém entende. Também entrevistei o Gay Talese ou o Salman Rushdie. Há pessoas que, não sendo obviamente importantes, tiveram papéis cruciais em certos momentos e senti que estava a entrevistar a História. Há um livro muito importante, da jornalista italiana Oriana Fallaci, o “Entrevista com a História”, e tenho essa mesma sensação. 

Como quando escreveu a biografia “Otelo, O Revolucionário”, de Otelo Saraiva de Carvalho?

Sim. Foram muitas e muitas horas de entrevista. Ia para casa dele e estávamos lá um dia inteiro de gravador ligado. E isso aconteceu imensas vezes. É uma personagem histórica, alguém vivo que é responsável pelo 25 de Abril, e além disso considero-o fascinante, apesar de achar que não lhe é dado o devido valor por muitas razões. Ele próprio não soube gerir a sua lenda: se tivesse morrido cedo, como o Che Guevara, teria conseguido.

Já foi mediador entre o público e a História.

Senti isso. Aquilo que fica dos acontecimentos é aquilo que os jornalistas escreveram. As pessoas morrem e tudo desaparece. Há documentos mais formais como tratados e contratos, mas os relatos feitos na época são essenciais. É isso que ficará para os historiadores do futuro estudarem.

Mas, por vezes, as expectativas dos jornalistas podem sair goradas, mesmo quando se relata tudo em primeira mão? A título de exemplo, n'"O Segredo da Cartuxa", o padre António disse-lhe "Sinto Cristo no meu coração" e era esse o segredo que guardava.

É claro que me senti irritado na altura, mas, depois, ao pensar sobre isso, e quando decidi usar essa frase como fio condutor, entendi a sua importância. Acho que os jornalistas e escritores que escrevem sobre a realidade não têm o direito de enganar os leitores. Temos uma obrigação de sinceridade e seriedade para com eles que não significa necessariamente apenas dar os factos e não haver o mínimo de interpretação ou de sentimento. Pelo contrário. Não podemos fingir que uma coisa é importante quando não é apenas em nome da qualidade do produto final. O estilo não é um fim em si mesmo. É apenas um meio para se transmitir a verdade das coisas. Uma coisa é a fraude, inventar factos, isso é criminoso. Mas, para além disso, há outro grau intermédio: valorizar certos factos e desvalorizar outros e essa opção ser feita em nome da qualidade do texto. Tento usar os recursos para valorizar os factos mais importantes. No caso da Cartuxa, esse episódio, apesar de ser engraçado e inesperado e ter funcionado para manter o suspense, apenas usei-o por transparecer a realidade daquele convento. Mas não é muito diferente daquilo que se sente quando dedicamos a nossa vida a uma causa.

Tem um cariz universal?

Isso. E ajuda-nos a questionar "Se eu estivesse ali, o que faria? O que sentiria?". São pessoas iguais a nós. Tento mostrar aquilo que existe nos outros e com que nos podemos identificar.

O que lançará depois de "Cidades do Sol. Em busca de utopias nas grandes metrópoles da Ásia", na Objetiva?

Tenho sempre projetos em várias fases. Estou a trabalhar num livro de ficção e, se as coisas corressem bem, seria para publicar ainda este ano. Além disso, estou a trabalhar num livro sobre jazz em Portugal. Mais concretamente, sobre a Orquestra de Jazz de Matosinhos. Estou a fazer uma investigação apoiada pela Gulbenkian, devido à bolsa de jornalismo que ganhei no ano passado, mas o trabalho que tinha planeado implica viagens e falar com pessoas muito idosas no estrangeiro. Há coisas mais pequenas que tento fazer. Ter ideias também acaba por ser um trabalho. Quando se é freelancer, tem de se estar sempre a avançar. Num mercado como o português, em que há poucos leitores, torna-se difícil escrever para um público pequeno. Procurar financiamento é essencial e isso exige muito tempo e também energia.

O que pode ser feito para modificar isto?
Esta alteração deve partir do poder político. Porque é que Portugal tem uma das taxas de produtividade mais baixas da Europa? Porque trabalhar muitas horas não significa produzir muito. Por exemplo, os empresários não gerem bem as empresas porque não têm experiência, visão, know-how, não leem. O investimento na educação e no incentivo à leitura – porque os livros são o principal veículo de informação – devia existir. Por esta lacuna, Portugal é um país pobre. Há países mais pobres em recursos naturais, mas são mais ricos pela educação que têm. Os jornalistas vão entrevistar um candidato à Presidência e nunca perguntam que visão tem para o país ou quais serão as grandes apostas para o futuro. Parece que se esquecem das grandes questões. Alinham pela agenda que os próprios políticos impõem quando deviam defini-la. 

Imagina regressar a este ofício?

Não gosto da monotonia. Se nunca o tivesse feito, estaria louco para conseguir, claro. Quando dava aulas de História e Português, olhava para professores de 50 anos e ficava deprimido. Para mim, a vida é um percurso e prefiro subir e descer a estar sempre a caminhar em linha reta. Seria mais fácil regressar a uma redação. Ninguém me obrigou a sair do Público. Tinha um cargo bom, ganhava bem, mas eu é que quis sair. Já não fazia sentido para mim. Posso tecer críticas ao jornalismo, como ele é feito hoje em dia, mas saí devido ao meu percurso profissional. Quero fazer outras coisas.