Regresso, de vez em quando, a lisboa com o mesmo peso no coração com que António Nobre escreveu sobre Coimbra a sua Carta a Manuel – esta paisagem triste, triste, a cuja influência minha alma não resiste… O trânsito entope-se nas veias da cidade acimentada à custa de obras infinitas e incompreensíveis, há a sensação de que está sempre à beira de um acidente vascular, agora caiu de novo a maldição sobre o Terreiro do Paço e o Cais do Sodré, filas grotescas de carros que se debatem com os desvios assinalados a cor de laranja, a Baixa estrebucha mais uma vez sob a prepotência imbecil dos que teimam em destrançar a verticalidade e horizontalidade pombalina.
As esplanadas reabriram e as noites ganharam um pequeno resquício de Primavera com jovens de novo entornados sobre os passeios. Sinistros, obtusos, os guardas vigiam a cada esquina, armas à cintura, o ressoar das botas troando como ameaças fascistas deste país cada vez mais policiado, mais justicialista, mais escuro e mais soturno. A liberdade vai-se esquecendo de passar por aqui. Até quando?
Vejo um homem que nada no Tejo e calculo que seja proibido e não tarde a ir parar à burocracia de uma esquadra fedorenta. Vejo o Bairro Alto morto, assassinado velhacamente à custa de interesses bandalhos de gente que vai comer à mão dos restauradores/modistas que fazem refeições por medida.
Dizem-me que morreu o Nelson, os óculos de fundo de garrafa, todos os dias com camisolas de clubes diferentes pela Rua Diário de Notícias, pela Travessa da Espera, pela Rua do Norte, figura íntima do clube Rio de Janeiro que, nos tempos da velha A Bola, entornava os ensaio das marchas de St. António para a Rua da Barroca, quase janela com janela para a sala dos chefes. Dizem-me e eu acredito. Vi morrer o bairro a pouco e pouco, pingos de sangue de uma Lisboa que já não existe. Desculpa. Cheguei tarde. Culpa desta paisagem triste, triste…