Após o anúncio da contratação, por parte da TVI, de Francisca Cerqueira Gomes para o elenco da nova novela da estação, as vozes indignadas dos jovens atores com formação têm-se feito ouvir em todas as redes sociais do país.
O facto é que já nos anos gloriosos da série juvenil mais bem sucedida no país, Morangos com Açúcar, as televisões portuguesas apostavam em jovens sem formação. Alguns deles tornaram-se rostos emblemáticos do ramo: Paulo Pires e Pedro Lima começaram a sua carreira como modelos; Pedro Teixeira e Rita Pereira ainda hoje apelidados “moranguitos”.
Mas, enquanto uma porta se abriu para Francisca, filha da apresentadora Maria Cerqueira Gomes e modelo e influencer sem formação na área da representação, quantas não se tiveram de se fechar para atores de quem as caras são desconhecidas?
Maria, Mariana, Carolina, Júlio, Margarida e Raquel são apenas sete dos muitos jovens atores formados que lamentam a falta de oportunidades – e que se sentem ultrapassados por uma concorrência que consideram injusta.
Terapia coletiva do mundo
Se na Grécia Antiga as peças teatrais possuíam um caráter moral e de educação social, na atualidade não é muito diferente, considera Maria Romana. Para esta estudante de representação (está desde 2015 na Escola Profissional de Teatro de Cascais), “numa sociedade moderna, o trabalho do ator ganha uma nuance política e social, dando expressão aos problemas do presente através de textos contemporâneos e históricos, juntando a criação artística com o pensamento ou consciência comum de uma cultura”.
Já para Carolina Vouga, licenciada em Teatro pela ESAD – Escola superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, o teatro é um espaço de descoberta, de partilha, de diálogo, de questionamento e de reflexão. Na sua opinião, o ator “tem a missão de fazer acordar a população passiva que tem à sua frente”.
Mariana Lameirão, formada pela Escola Profissional de Teatro de Cascais, vai mais longe: o teatro “acaba por ser uma terapia coletiva do mundo e da sociedade”.
Júlio Magro, estudante da Licenciatura em Teatro na Escola Superior de Teatro e Cinema, acrescenta a capacidade que esta arte tem de fazer desenvolver a nossa empatia. “Acho que somos cada vez menos empáticos uns com os outros. Temos uma enorme incapacidade de nos colocarmos no lugar do outro e, uma das coisas que o teatro nos ensina, é aprender a escutar, a ter empatia pelo próximo, a dialogar, e mais importante que isso, a estar disponível para o fazer.”
A televisão e os seus hábitos de contratação
Maria Romana não põe tudo no mesmo saco. Para a jovem atriz há uma distinção clara a fazer entre teatro e televisão: “Não posso deixar de frisar que em Portugal o teatro é serviço público e por isso não pagamos 50 euros quando vamos ver uma peça. A quantidade de investimento externo nas produtoras nacionais nunca vai poder competir com o capital gerado pela publicidade, por isso é essencial o apoio do Estado no crescimento da indústria artística, o que ainda nos parece distante de atingir, visto que nem sequer temos 1% do PIB para a cultura”. Acrescenta que a formação de um ator passa por todas as vertentes da representação: cinema, performance, teatro, locução, série televisiva ou webseries. Um ator nunca sabe o que a vida lhe vai trazer e há que estar preparado para diferentes formatos.
A verdade é que “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” e o que antes era visto como o melhor programa para o serão – uma ida ao teatro –, foi, com o desenvolvimento das tecnologias, largamente substituído pelos ecrãs. “Vivemos tempos muito rápidos, está tudo à distância de um clique. Já ninguém tem paciência ou pachorra para saber o que está a ver. Se é de qualidade, ou se não é”, afirma Mariana Lameirão.
Margarida Bakker, licenciada pela Escola Superior de Teatro e Cinema, traça por sua vez um paralelo entre o meio televisivo, onde o número de seguidores nas redes sociais funciona como critério de contratação, e o marketing : “Acho que acaba por ser, um bocadinho, produção em massa, tal como o conceito do taylorismo. Isso assusta-nos, a nós que somos licenciados, ou que nos formámos no secundário. São muitos anos a batalhar para depois não termos, sequer, acesso a castings que, também, são limitados às agências”. Outro aspeto que lhe merece reparo é o facto de existirem agências que só aceitam atores que possuam determinado número de seguidores nas redes sociais. Por isso, o acesso às oportunidades profissionais é limitado.
Mas este movimento não pretende entrar em guerras contra os autodidatas, diretores de castings ou empresas televisivas, garante Carolina Vouga: “Todos os artistas emergentes, tendo estudos artísticos ou não, são bem-vindos, pois só assim se poderá desenvolver o sentido de pertença de cada um à comunidade. Só apelo para que realmente haja oportunidades para todos, que sejamos contratados por termos merecido ganhar esse lugar”. Os jovens atores afirmam compreender o porquê de estações de televisão, produtoras e responsáveis de casting porem a visibilidade à frente da formação. Até porque, atualmente, a televisão dispõe de uma concorrência direta: os serviços de streaming. “Grande parte dos conteúdos que estão a surgir provêm destas novas plataformas. E nesse sentido, penso que uma das estratégias que permitem que a televisão ainda vá “sobrevivendo” é o facto de integrar digital influencers nas produções, pois estes têm uma enorme visibilidade nas redes sociais e, hoje, o mundo passa também por aí”, explica Júlio Magro.
Por outro lado, Raquel Ferrosa, formada na NBA academia (fundada por Nicolau Breyner), na ACT – Escola de Actores na LX Factory e na Escola Profissional de Teatro de Cascais, acha que a televisão devia ter a obrigação de oferecer ao público bons atores e não passar a ideia de que ter essa profissão implica “pesar menos de X, ter a altura Y e ser capa de revista”: “Tudo isso resulta numa maior superficialidade dentro e fora do meio. Ao dar muita importância à imagem acaba por se criar muita ansiedade nos jovens atores”, acrescenta.
Foi o caso de Mariana Lameirão, que, ao sair da escola, teve poucas oportunidades de fazer castings. E, das que lhe foram oferecidas, nenhuma teve um final feliz: ”Tendo pouca autoestima e pouca confiança, deixei-me derrotar por aqueles nãos, acabando por desistir do meu sonho de sempre”, desabafa.
As vozes que aguardam reconhecimento
Depois de se saber que Francisca Cerqueira Gomes fora contratada para uma novela da TVI apesar de não ter formação na área da representação, o protesto dos jovens atores subiu de tom. São cada vez mais os profissionais que se unem fazendo nascer uma onda de indignação, solidariedade e de luta pelos seus direitos.
“Esta contratação veio acentuar a premissa de que este mundo continua a funcionar pela força dos lobbies, das cunhas e das caras bonitas e que a exposição nas redes sociais legitima o voyeurismo e a ilusão de que qualquer um pode ser uma estrela”, denuncia Carolina Vouga.
O “protesto”, contudo, não começou agora com o caso da jovem de 18 anos conhecida pelo número de seguidores nos meios digitais. Este é um problema que tem vindo a intensificar-se com o passar dos anos: “Está na altura de se fazer qualquer coisa, está mais do que na hora de se dignificar o estatuto do ator. Tal como a luta, já antiga, dos recibos verdes, de não termos contrato, de não recebermos limpo, de descontarmos, sei lá o quê, para a segurança social e não termos retorno!”, defende Margarida Bakker.
Os atores insistem na necessidade de criar uma plataforma séria ligada a diretores de casting, agências, companhias de teatro, etc., que permita a exposição do trabalho dos artistas sem que tenham de recorrer às redes sociais.
“Além disso, defendemos a criação urgente de um estatuto profissional e um maior reconhecimento da indústria e do ator como cidadão fiscal”, declara Júlio Magro.
A verdade é que em vários países europeus já existem plataformas idênticas à que os jovens atores propõem. Alguns exemplos disso são o Spotlight, E-casting, Backstage, Casting call pro Audition agency, entre outros. Maria Romana esclarece que “a nossa Carta Aberta pretende, em conjunto com o Ministério da Cultura, a DGARTES e a GDA, criar, com financiamento e apoio legislativo, uma plataforma a nível nacional que permita aos novos artistas expor o seu trabalho e expandir as suas networks. Bem sei que não há lugar para todos e nunca haverá, mas parece-me urgente lutarmos por esta plataforma que nos dê mais visibilidade”.
A Petição “Dignificar a profissão dos Actores em Portugal”, onde os atores exigem a Carteira Profissional de Ator para que se possa exercer a profissão de uma forma profissional em Portugal, já conta com 3938 assinaturas: “Em Portugal quem não tem curso de medicina não é médico, um arquiteto não dá consultas numa clínica dentária, um veterinário não é enfermeiro chefe no Júlio de Matos e um advogado não opera animais. Todos sabemos o quão as artes são desvalorizadas em Portugal, e se as poucas oportunidades que surgem são ocupadas por pessoas sem qualificação para tal, é considerado um atentado à saúde psicológica das pessoas que durante anos investiram na sua formação e na sua cultura”, lê-se na petição.
Mariana Lameirão insiste: “Nós só queremos ter as mesmas oportunidades que as pessoas sem formação têm por serem quem são. Queremos ter a possibilidade de chegar a um sítio e podermos fazer casting. Ser justo para todos. Há pessoas talentosas sem formação, ninguém lhes tira esse mérito. Mas não é justo existirem castings para essas pessoas e para pessoas que estudaram esta arte não. Só queremos ter as mesmas oportunidades”. Maria Romana recupera uma declaração da ministra da Cultura após uma visita à exposição Souto de Moura: Memória, Projetos, Obras: “Partilho da necessidade de encontrarmos respostas de curto prazo que deem soluções para o que estas estruturas estão a dizer e que representam os resultados provisórios do concurso de apoio às artes”. A atriz põe em causa esta declaração. “Está aqui uma geração inteira a juntar-se aos gritos do passado que são os mesmos que nunca foram resolvidos e a ministra diz que partilha da nossa necessidade. Perdoem-nos por não acreditar. As palavras precisam de atos que as tornem legítimas. Um Ministério que fala por nós, mas na verdade não nos representa, não cumpre o seu propósito”.
Quem também não ficou convencida foi a atriz Carolina Vouga. Considera a declaração da ministra “uma verdade de la palisse destinada ao governo e a todos os intervenientes políticos”. E conclui: “É preciso criar melhores condições de vida, com maiores rendimentos que ultrapassem largamente a subsistência, de modo a que todos vivam melhor, que todos possam efetivamente ter acesso à cultura e deixem de ser artisticamente analfabetos”.
Editado por José Cabrita Saraiva