A emergência da resiliência dos territórios


Os céticos, os negacionistas, os cabalísticos, dirão que sempre houve fenómenos climáticos extremos ao longo da história da humanidade.


Temos andado todos muito ocupados, e bem, com o combate à crise de saúde pública. Todavia, há outras pandemias que, no longo prazo, ameaçam fazer mais vítimas e mudar mais radicalmente a maneira como vivemos. O combate às alterações climáticas é uma dessas “pandemias”. Por não pressionar os Serviços de Saúde, fazer filas de ambulâncias à porta das urgências ou abrir diariamente os noticiários, a “pandemia” das alterações climáticas não tem tido dos governos a resposta que deve mobilizar-nos a todos enquanto comunidade global.

Os céticos, os negacionistas, os cabalísticos, dirão que sempre houve fenómenos climáticos extremos ao longo da história da humanidade. Tal como um relógio parado dá as horas certas duas vezes ao dia, também eles estão, em certa medida, corretos. Mas essa é só metade da história. A outra metade é a que mostra que os fenómenos extremos se tornaram mais violentos, mais frequentes e mais duradouros.

Por via de ter uma vasta frente costeira, um terço do território em parque natural, uma rede hídrica de ribeiras em meio urbano e uma das zonas do país mais sensíveis ao risco de cheia, Cascais sabe que tem de levar muito a sério a adaptação às alterações climáticas. É uma questão de resiliência da comunidade e de proteção do nosso património ambiental e cultural. É, sendo mais abrangente, uma questão de perenidade do nosso modo de vida.

Cada dia a menos no combate às alterações climáticas, é um dia a mais na nossa exposição ao risco. Hoje já é tarde demais. Não há tempo a perder.

Há sensivelmente uma década que vertemos a adaptação às alterações climáticas no nosso Plano Diretor Municipal. Esse conceito tem prioridade conceptual no ordenamento do território. É um farol e um guia para uma ambiciosa agenda de desenvolvimento sustentável que o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, reconheceu quando Cascais se tornou, em 2017, a primeira autarquia a comprometer-se com todos os ODS – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Desde esse ano, uma equipa multidisciplinar de 130 pessoas implementou um plano de 80 medidas – quantificáveis, orçamentadas e vigiadas –, das quais fazem parte a requalificação das ribeiras das Vinhas, de Sassoeiros e de Caparide.

Ora, foi precisamente sobre uma destas ribeiras, a das Vinhas, que estiveram centradas as atenções no último sábado. A passagem da tempestade Karim provocou uma rápida inundação do centro de Cascais, na popular zona do Largo Camões. Quem é de Cascais sabe: a baixa é uma zona altamente vulnerável por se encontrar abaixo da quota da ribeira das Vinhas. São vários os episódios de cheias rápidas. O mais trágico dos quais em 1983, quando o nível das águas acabou por provocar elevados danos patrimoniais e perda de vidas humanas.

Esse episódio cruzou a memória de muitos. Uma catástrofe foi evitada.

Como demonstram os registos meteorológicos oficiais, nos últimos 40 anos só por uma vez se verificou uma maior pluviosidade. Foi no dia 19 de novembro de 1983, com 127 litros por m2, enquanto no passado dia 20 de fevereiro se registaram 75 litros por m2. A diferença é que, desses 75 litros por m2, 50 litros por m2 foram registados entre as 11h e as 13h30. A mais elevada concentração de que há registo, possivelmente inédita, que potencia cheias rápidas. Para o leitor ter uma ideia: neste sábado choveu na bacia hidrográfica da Ribeira das Vinhas o volume de água equivalente a 763 piscinas olímpicas.

Como sublinhei, uma catástrofe em potência foi evitada. Há razões que explicam essa maior resiliência da comunidade. Todas elas merecem ser celebradas.

Em primeiro lugar, a competentíssima intervenção dos bombeiros, da PSP, Polícia Municipal e Serviço Municipal de Proteção Civil. Homens e mulheres que, de há anos a esta parte, vêm mostrando uma prontidão e capacidade operacional muito acima da média em todos os cenários de risco. Bem equipados, melhor treinados, as forças de Proteção Civil e Segurança ganharam, por via do seu trabalho, um lugar central neste mundo onde a incerteza e o risco são forças dominantes.

Em segundo lugar, as equipas municipais da Cascais Ambiente e da Cascais Próxima. Homens e mulheres que em minutos se mobilizaram para, com recurso a meios pesados, protegerem as populações e lutarem contra os efeitos da intempérie. Menos de 12 horas depois das inundações, a baixa de Cascais já se encontrava de cara lavada.

A última razão prende-se com os investimentos feitos na requalificação, recuperação e renaturalização da Ribeira das Vinhas. Esse investimento de vários milhões de euros, ao longo dos últimos quatro anos, consistiu em medidas como a remoção de resíduos que habitavam no leito e nas margens da ribeira, na aragem das terras de aluvião. Estas medidas contribuíram para aumentar a capacidade de escoamento da ribeira e a capacidade de permeabilização dos solos. Em paralelo foi possível implementar um trilho pedonal ao longo da ribeira, aproximando os cidadãos deste corredor ecológico e tornando-os guardiões do mesmo. Em aditamento às medidas de minimização de risco de cheias já referidas, todos os anos, antes da época de chuvas, a ribeira é limpa, não nos esquecemos do desassoreamento, e foram proibidas novas construções numa zona que sofre de históricas pressões urbanísticas.

A Ribeira das Vinhas é hoje um espaço mais qualificado. Passou a fazer parte do dia-a-dia dos cascalenses. É natureza no coração urbano. Se queremos, como Cascais quer, ser uma referência internacional de sustentabilidade e qualidade ambiental, muito trabalho há ainda por fazer para concertar erros do passado. Mas o trabalho que já foi feito permitiu-nos passar, com distinção, este duro teste da natureza.

Conscientes da nossa fragilidade coletiva, sabemos que somos pequenos perante as forças devastadoras do planeta.

Podemos apenas ousar minimizar os riscos, antecipando, planeando e tomando medidas certas. Com coragem. Com investimentos que não se veem, que não dão votos mas que salvam vidas.

As autarquias estão cientes de que não há maior ameaça ao nosso modo de vida e às nossas liberdades do que as alterações climáticas. Agir é urgente. Também no combate à pandemia climática, tal como na luta contra a covid-19, temos de ser todos por todos.

 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais

Escreve à quarta-feira