É da geração que se bateu pelo reforço da medicina pré-hospitalar em Portugal – médicos para quem a medicina de catástrofe foi, ao longo dos anos, território de ajuda humanitária lá fora e agora se torna a imagem do que o país viveu na terceira vaga da covid-19: multivítimas, limite de recursos, necessidade de antever cenários e coordenação. Vítor Almeida formou-se em Medicina em Hanôver, para onde a família emigrou, e regressou a Portugal nos anos 90 para fazer a especialidade. Foram duas: medicina geral e familiar e anestesiologia. Voltou às origens, a uma aldeia de Arganil onde a população ergueu postes com pentagramas para se proteger do mal pandémico, tradições ancestrais que perduram e, mesmo para quem não acredita, reforçam o sentido de comunidade. É médico no Hospital de Viseu e, no último mês, foi responsável pelo hospital de campanha que funcionou até esta semana na envolvente tranquila do Parque do Fontelo. De fora, nestes últimos dias, só as batas atrás dos vidros denunciam o pavilhão desportivo transformado em enfermaria por onde passaram 80 doentes, uma experiência que, ali como noutros pontos do país, acredita que confirmou que as estruturas de retaguarda podem, com segurança, libertar camas dos hospitais para doentes graves, covid e não covid, que voltaram a ficar para trás. Presidente do colégio da competência de emergência médica, que ajudou a criar, é nas saídas na VMER – os carros de emergência médica do INEM – que diz encontrar o país real, que não entra na “bolha” dos hospitais. É membro do gabinete de crise da Ordem dos Médicos e traz à análise que fazem regulamente da pandemia no país o olhar do interior. Imagens que marcam: as famílias inteiras que se infetaram no Natal, os idosos que morrem sozinhos sem se queixarem. Defende que é preciso tirar lições e que o tempo é mesmo de “limpar as armas”: criar estruturas de coordenação nacionais e regionais na área da emergência e também da resposta hospitalar, e pensar o desconfinamento com medidas que não sejam cegas às diferentes realidades do país. E, sobretudo, comando e liderança fortes, defende. Acredita que foi isso que fez a diferença na Alemanha onde cresceu.
Há uma visão diferente da pandemia quando se está aqui em Viseu?
Desde o início, o gabinete de crise da Ordem dos Médicos defendeu que era preciso uma visão regional, e isso é muito evidente. Quando se avançou para medidas por concelho, a visão que defendemos foi que era preciso atuar por regiões, e não por concelhos. Temos municípios com 5 mil, 6 mil, 7 mil habitantes que têm uma ligação económica muito forte com o concelho vizinho, as pessoas andam de um lado para o outro. Muitas das pessoas que vivem nos concelhos à volta trabalham em Viseu. Esta ligação regional tem impacto na propagação do vírus. E, ao mesmo tempo, em concelhos mais pequenos facilmente se chegava a um patamar em que se apertavam medidas com um forte impacto socioeconómico em territórios já mais frágeis. Por exemplo, na Pampilhosa da Serra, bastava naquela primeira fase haver 12 casos num lar para ficarem com medidas mais apertadas, mesmo estando-se numa zona serrana, onde as pessoas andam ao ar livre. A medida era a mesma que em Lisboa.
Tivemos uma terceira vaga muito maior, mais uniforme. Sentiram no terreno o efeito do Natal?
Claramente. Em Lisboa terá havido a influência, já numa fase mais tardia, das novas variantes, mas o que leva a epidemia a varrer o país é o Natal. Foi o único evento que mobilizou os portugueses de norte a sul. No gabinete de crise da ordem alertámos para isso: houve falhas de comunicação e decisão da estrutura governamental, que devia ter tido a mesma atitude que tiveram os alemães, que foi definir claramente as regras para que as pessoas não se reunissem. Tivemos um alívio de medidas e o resultado está à vista: esse alívio fez com que as pessoas baixassem a guarda de uma forma fatal. Vimos famílias inteiras infetadas.
De que se situações se foi apercebendo logo na altura do Natal?
Vimos dois movimentos: famílias que se deslocaram uns dias antes para a serra e familiares que foram recolher os seus idosos para irem passar o Natal a Lisboa. Regressam e contaminaram-se aldeias inteiras. Se, nas primeiras duas vagas, comparativamente com Lisboa e Porto, tínhamos tido uma situação, dentro do possível, menos má, desta vez, a região Centro não foi poupada e o problema não ficou tão restrito aos lares, afetou velhos e novos. Não foram os transportes públicos, não foram as escolas, foi o convívio social que desencadeou tudo.
Lembra-se de um momento em que tenha pensado “isto vai correr mal”?
Quando comecei a ver os centros comerciais abertos – quando digo abertos é totalmente abertos –, famílias nas compras, irem escolher prendas e depois conviverem, quando se começa a ver o convívio de quatro, cinco, seis pessoas de famílias diferentes, para mim era óbvio que ia correr mal. Não foi só a ceia de Natal, foi todo aquele período. As pessoas fizeram vida normal em tempos que não são normais. Foi o que nos trouxe até aqui.
No final de 2020 tinham morrido 1006 pessoas com covid-19 na região Centro. Passado um mês e meio, o balanço da epidemia subiu para 2786 mortes. O que marca um médico na linha da frente?
Tivemos doentes no hospital que não sabiam que tinham perdido familiares. Explicar a doentes que estão mal que têm um familiar ventilado nos cuidados intensivos ou que morreu é dramático. Ou estar a falar com amigos sobre um familiar internado e, passados uns dias, entra outro em situação crítica. Não são casos pontuais, são estruturas familiares que, de repente, se desintegram ou porque as pessoas estão gravemente doentes e estão internadas ou porque há um idoso internado que até já podia ir para casa mas, de repente, em casa estão todos doentes. E isto leva a novas necessidades de resposta. Casais em que um depende do outro, o cuidador adoece e o outro fica sozinho. São peças do puzzle social que desabam no meio da pandemia. O cuidador adoece e o mais frágil sobrevive. Para onde vai esta pessoa que perdeu o seu familiar ou cuidador? E foi nesse sentido que foram pensadas as estruturas de retaguarda, e sem dúvida que foram importantes para amortecer este impacto social.
O foco esteve muito tempo nos intensivos, nos ventiladores. Esse lado acaba por ser desvalorizado?
O despacho de novembro que cria as estruturas de retaguarda foi positivo e procurou também responder a isso. E sem dúvida que essa é uma crítica que faço, desde logo, aos média: fala-se muito de ventiladores, de intensivos, agora da ajuda do exterior com fardas. É preciso falar do resto que faz desta pandemia um problema enorme, com múltiplas repercussões. Idosos que perdem entes queridos e ficam isolados. Há pessoas em lares que não veem a família há um ano. Pessoas que perdem o emprego e não têm perspetivas, mais ainda agora que vemos que o plano de vacinação está lento e que áreas como o turismo, que no verão passado foram importantes no interior e correram bem, nos próximos meses não vão recuperar como gostaríamos. Temos um agravamento do impacto fisiológico, psicológico e social que precisa de uma abordagem global. Não se resolve com bazucas, só com dinheiro: precisamos de uma política atenta ao país, aos diferentes impactos, e creio que, também aqui, políticas regionais que vão ao encontro da realidade de cada local serão fundamentais. O presidente da junta conhece os problemas da freguesia como ninguém, consegue identificar as necessidades. E é aí que têm de ser colocados os apoios. O Estado tem de ser célere nas respostas.
Temos a terceira vaga com os contágios a ceder, os hospitais ainda assoberbados, mas as estruturas de retaguarda como a sua a começam a ser desativadas. Neste momento, o que o preocupa?
A grande preocupação são os doentes não covid. Temos de conseguir dar resposta a estes doentes que ficaram para trás o mais rapidamente possível, definir um plano com prioridades.
É anestesista. Ao longo destes meses viu doentes operados tardiamente?
Não podemos pensar apenas nos doentes cirúrgicos. Há todo um conjunto de doentes crónicos, diabéticos, cardíacos, com insuficiência renal, que não têm tido as suas consultas de forma regular, e isso tem consequências. Tem de haver um plano, mais uma vez afinado a nível regional, para recuperar as listas de espera e os doentes que ficaram para trás. E isto começa com a necessidade de libertar a medicina geral e familiar. Quando o médico de família passa o dia a fazer trace-covid em vez de ver os seus doentes, o nódulo mamário de uma jovem de 30 anos pode escapar. O que vemos no bloco operatório é que os doentes chegam numa situação mais crítica.
Viu cancros em estados que nunca tinha visto?
Indiscutivelmente. Por limitação dos serviços e porque os doentes tiveram medo de ir à consulta, ao hospital. Não me lembro de ter passado tantos óbitos na minha vida como nestes meses. E a perceção que tenho é que muitos doentes, por exemplo, com enfarte do miocárdio simplesmente não se dirigiram ao hospital. Por medo, por receio de se infetarem ou porque estão preocupados com outras questões, mas este medo paralisou durante muito tempo a resposta não covid. Vimos doentes com AVC há um dia em casa. Com dores no peito há dois dias antes de chamarem o INEM. Na primeira vaga, isso foi muito notório, agora um bocadinho menos, mas o medo voltou.
Em janeiro houve quase 20 mil mortes no país, quase o dobro do ano passado. Muitos serão casos desses?
Claramente temos mais mortes de doentes covid e não covid. Quantos, temos de esperar, mas é o que sentimos.
Qual é a situação mais frequente nas mortes fora de casa?
Encontrarmos um idoso morto em casa, sozinho. É a imagem típica da atividade da VMER no interior. Os vizinhos batem à porta, ninguém responde. Ligam para o 112 e dizem “não o vemos desde ontem” ou “há uns dias”. Já acontecia, mas agravou-se.
É algo que acontece em todos os turnos?
Há turnos em que temos duas e três situações destas. Muitas vezes, não sabemos a história. Estamos numa região onde, muitas vezes, as pessoas têm familiares emigrados, não têm ninguém mais jovem ao pé delas. Um idoso tem uma febre, uma tosse, não gosta de chatear o vizinho, tenta medicar-se em casa. E, se calhar, algumas síndromes gripais que foram fatais para quem já tinha outras doenças de base foram covid, as pessoas não chegaram a queixar-se e ficaram em casa. Não tenho dúvidas de que terá havido mais mortes por covid do que as foram contabilizadas. O que aconteceu ao certo, só saberemos mais tarde. O nosso foco, agora, tem de ser não relaxar, porque o problema não está resolvido. Os números baixaram porque estivemos confinados. Mas o país não pode estar sempre a parar nem a deixar tantos doentes para trás. É preciso acelerar vacinas, criar circuitos e regras na sociedade que nos garantam menor contágio possível, desde logo, testar em massa. É algo que o gabinete de crise da ordem defende há meses e parece que a mensagem, agora, passou. Como vai ser a operacionalização, não sei.
Acredita que esse reforço da testagem em outubro, novembro, poderia ter evitado este confinamento?
A estrutura a nível da saúde pública deveria ter tido um investimento muito mais musculado, isso, sem dúvida. Era o que dizia há pouco: focámo-nos muito nos ventiladores e esquecemo-nos que sem uma saúde pública bem organizada e estruturada, com meios para fazer face a um tsunami de infetados, tudo o resto cai. Foi o que aconteceu.
Chegar a 900 doentes com covid-19 em estado crítico, mesmo que haja vagas, é só por si sinal de que a resposta falhou?
Não pode haver dúvidas. Estamos a falar de números superiores a qualquer outro país civilizado e isso tem de fazer-nos pensar. Em termos de óbitos tivemos indicadores superiores a países que tanto criticamos, a América de Trump, o Brasil de Bolsonaro.
Fica ainda assim com a ideia de que não chegámos ao ponto de os médicos terem de escolher que doente salvam, a imagem brutal que ficou da primeira vaga em Espanha e Itália. Não chegámos mesmo?
A partir do momento em que o médico define um teto terapêutico e até que ponto o doente beneficia de cuidados, existe uma triagem, mas, naturalmente, um doente com 95 anos, com múltiplas patologias e que tem doenças gravíssimas já de base, não é um doente que vá melhorar em cuidados intensivos. Até eticamente seria irresponsável submeter a essa violência física um doente. Estas decisões sempre foram tomadas, antes da pandemia e agora.
Mas escolhas entre doentes em que ambos podiam beneficiar, um doente com 70 anos e um doente com 50, aconteceram?
Há hospitais onde podem ter ocorrido essas situações, são, pelo menos, os relatos que nos vão chegando. Na nossa região, o que vemos é que aos doentes críticos que efetivamente beneficiavam de cuidados intensivos, o sistema conseguiu responder. Agora temos de perguntar: responder à custa de quê? E, aí, foi claramente à custa dos doentes não covid. O doente com uma neoplasia, com uma cirurgia prevista de grande impacto e que precisaria de cuidados intensivos, não foi operado, e essa decisão teve de ser tomada. E é isto que é medicina de catástrofe. O que estamos a fazer é triagem multivítimas para que o sistema possa responder; o próprio Governo deu indicação para suspender atividade cirúrgica não essencial. Continuámos a operar doentes emergentes, as salas de parto funcionaram, e estou convicto de que, de norte a sul, essa foi a realidade. Agora, termos os hospitais praticamente dedicados à covid-19 tem de ter repercussões nos outros doentes, e esses doentes vão aparecer. Em oncologia, estou convencido de que vamos ter impactos muito negativos, e há muito a recuperar.
Depois de um ano com férias suspensas e a acumular folgas, os profissionais de saúde conseguirão agora dar resposta a essa nova onda de doentes?
A questão do burnout precisa de ser abordada, e não estou falar apenas de médicos. Quando temos pessoas a trabalhar sem terem um dia ou dois de descanso, naturalmente que estamos a criar um problema a médio e longo prazo. O descanso devia fazer parte do planeamento de qualquer força laboral. Os militares, os bombeiros têm obrigatoriamente períodos de descanso. No SNS, isso não foi organizado, primeiro, porque faltavam recursos e, segundo, porque, muitas vezes, quem gere recursos humanos não tem formação nesta área para perceber que deve organizar a força de trabalho que está sujeita a uma pressão constante de uma forma diferente. O médico ou a enfermeira a quem é pedido ou que se oferece voluntariamente para fazer mais um turno e depois mais outro vai pagar caro no fim.
Tem de ser parado?
Tem de ser parado, tem de lhe ser dito “agora não”. É preciso perceber que, a longo prazo, isso vai trazer danos à pessoa e vai repercutir-se na própria estrutura, com maior absentismo.
E já se nota essa onda de choque nos profissionais da linha da frente?
O que vemos é muito cansaço. Claro que cada pessoa tem a sua forma de reagir ao stresse e à pressão. Os estados de depressão aumentaram, a desmotivação é real. Precisamos de parar um pouco, reorganizar, procurar ajuda profissional quando necessário, e é agora que têm de entrar em cena os colegas da psiquiatria, da psicologia. Esta tem de ser uma fase de recuperação mental dos profissionais para se poder começar a recuperar a sério a capacidade do SNS e responder aos doentes. Há sempre setores mais poupados do que outros, mas quem está na linha da frente está na linha da frente desde o início, e o início foi há um ano.
Há pouco falava de receber telefonemas de amigos. Nos meios mais pequenos, conhecer os doentes afeta quem está na linha da frente?
Sem dúvida. De repente, é o vizinho que está infetado, um colega da turma dos filhos que tem o avô internado. Esta ligação social tem, obviamente, um impacto maior em termos emocionais, mas não é só nos profissionais, é em toda a comunidade. Saber-se que uma família está infetada numa pequena vila tem um impacto social muito maior do que, às vezes, saber-se que há um infetado num prédio onde, se calhar, vivem mais pessoas do que numa freguesia inteira. As pessoas conhecem-se, não são anónimas, o drama de uns e outros é vivido pela comunidade, com manifestações muito variadas, seja na entreajuda, seja na forma como se mobilizam. Na minha aldeia, a população pôs à entrada um cinco-salomão como proteção.
É um amuleto?
É um símbolo ancestral que as pessoas acreditam que as protege de epidemias, de doenças. Em dois sítios estratégicos da aldeia temos um poste de madeira altíssimo, com uns 20 metros, com aquele símbolo, um pentagrama e uma coroa. Rezaram uma missa para pedir a proteção. É uma forma de pensar e de viver ancestral e cultural que ainda existe aqui e mostra esse espírito coletivo.
E é dos que acreditam?
Acredito que permitiu estabilizar a aldeia. Criou um sentimento de pertença. E quer se acredite ou não, passa-se pelos postes da aldeia e fica-se com aquele sentimento de que está ali uma intenção. É como se diz: não acredito em bruxas mas que las hay, las hay.
E milagres, veem-se?
Nem tudo é explicável, isso é verdade. Se calhar, não tem de ser.
Sente que as pessoas com esse espírito mais comunitário lidam melhor com a pandemia ou a interioridade, depois, tem um reverso da medalha, um baixar da guarda como vimos em regiões mais rurais nos primeiros meses, quando as pessoas não aderiram tanto à máscara, por exemplo, continuaram a juntar-se no café…
O interior tem algumas vantagens. O confinamento na aldeia não tem nada a ver com o confinamento numa zona urbana. Na aldeia consigo tratar do quintal, dos terrenos, estou ao ar livre. Estar em confinamento numa aldeia, nesse sentido, é muito mais fácil do que num T2 no centro de Lisboa. Falo por mim: faço a vida trabalho-casa há meses, mas poder fazer uma caminhada no meu vale, onde não está ninguém, deu-me uma estabilidade emocional que, se vivesse na cidade, se calhar não teria. Depois há esse lado: as pessoas mantiveram os laços, faz parte da forma como vivem, e isso nesta vaga foi brutal. Uma criança fica infetada na escola e vai ter com os avós, que vivem na mesma aldeia. Enquanto não havia transmissão comunitária, isso não foi um problema, mas nesta vaga foi tudo diferente. A doença propagou-se como um fogo de verão com vento de feição. Tínhamos tido o problema mais em lares e, agora, esteve em todo o lado e, desta vez, as zonas rurais não foram poupadas.
Falava da recuperação que há pela frente. No interior, uma das dificuldades crónicas no SNS é a fixação de profissionais, de médicos. Nunca pensou em ir para uma cidade maior?
Fiz a especialidade de medicina geral e familiar e anestesia em Coimbra, e a possibilidade de ficar existiu, mas voltei para cá. O Hospital de Viseu, na altura, estava a crescer, foi um desafio. Estamos a falar de um hospital que hoje está ao nível de qualquer hospital central numa grande zona urbana, com cuidados de excelência – mesmo assim, temos muito para crescer. É óbvio que fixar jovens médicos nesta região é mais difícil por vários motivos e também por razões económicas, e isso é muito complicado de mudar porque é um problema estrutural. Aqui, o setor privado tem um peso totalmente diferente do que tem na área da anestesia em Lisboa…
Não existe o privado para complementar o que se ganha no público.
Raramente. Aqui não se enriquece, ponto.
Faz privada?
Não, dedico o meu tempo ao INEM.
Isso é raro num anestesista?
Aqui não é assim tão raro. É o que digo: temos realidades diferentes no país quando, por vezes, se tende a olhar para o país ou mesmo para o SNS como um todo. E falando de diferenças entre regiões vemos, por exemplo, a capacidade de resposta do Norte nesta pandemia, nomeadamente do Grande Porto, e percebemos claramente que hospitais como o São João, o Santo António, Vila Nova de Gaia e Matosinhos tiveram uma organização extrema e bem coordenada. Nunca vimos imagens de ambulâncias em fila como se viu no Santa Maria. O São João foi, claramente, o hospital que liderou a resposta no Norte. Foi o navio-almirante para o resto do país.
O que explica a diferença: são as pessoas, a cultura das instituições?
O Norte já tinha uma boa experiência em medicina de emergência, mas a liderança é fundamental. O São João teve a sorte de ter uma liderança forte. O antigo secretário de Estado Fernando Araújo, um homem com experiência clínica, extremamente organizado, eticamente irreprovável. Teve uma visão global do problema e soube rodear-se das pessoas certas. A liderança é a chave e vimo-lo noutros pontos do país. Aqui em Viseu tivemos uma liderança nesta terceira vaga que permitiu uma resposta cabal e muito superior a muitos hospitais da Grande Lisboa quando se tem em conta os recursos que temos. Chegámos quase às três centenas de doentes internados num hospital com menos recursos do que os hospitais centrais. E não temos hospitais vizinhos, estamos isolados. O hospital de referência é o Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC), onde se viveu uma situação calamitosa, com uma pressão brutal. E lá está, pouco foi falado, comparando com a visibilidade que teve Lisboa. O CHUC foi o centro hospitalar que teve mais doentes com covid-19. Este foco na capital é algo que a nós, que vivemos no interior, nos perturba um pouco.
Mas considera que é um problema da comunicação social ou sente um abandono dos decisores?
As duas coisas estão ligadas. Quanto mais longe do poder político, mais difícil é poder influenciá-lo. E numa situação destas gostava de ter visto o poder político mais presente no interior. É a minha opinião, não o digo em nome da ordem, mas é o que sinto. A liderança tem de estar com as pessoas em todo o país. Nunca tivemos um momento de descontrolo como vimos noutros sítios, e isso porque localmente houve liderança, mas foi duro.
Houve, ainda assim, um aumento da letalidade e Lisboa, o Centro e o Alentejo tiveram um maior peso nos óbitos do que na distribuição de contágios. A sobrecarga dos serviços pesou nos resultados?
Será sempre algo multifatorial. Por um lado, é preciso perceber quem são os doentes, e na região Centro temos uma população muito envelhecida, mais vulnerável, que por si só sofrerá sempre um maior impacto com este tipo de doença. Temos fatores demográficos, temos fatores de mobilidade e, com certeza, o acesso também pesa. Dou-lhe um exemplo: temos uma única viatura de emergência médica (VMER) para 500 mil habitantes nesta região, uma única viatura de emergência médica para todo o distrito de Viseu. Temos um helicóptero mas, no inverno, há limitações. Portanto, se está ocupada numa ocorrência que fique a 40 quilómetros da cidade, a viatura médica não pode salvar o atropelado a 200 metros do hospital.
Numa situação destas em que se sabe que mais pessoas podem adoecer subitamente, seja por covid ou não covid, não poderia ter havido um reforço?
Esse reforço é necessário e não tem a ver com a pandemia, há um problema de base. O Estado planeia os recursos de emergência consoante a localização dos hospitais quando deveria colocar meios de suporte avançado de vida como as VMER em sítios estratégicos para dar resposta em tempo útil à população de forma equitativa – por exemplo, pensar se conseguimos ter uma equipa diferenciada, em 15 minutos, em qualquer ponto do território. Não temos e é claro que estas assimetrias têm impacto na mortalidade. Em situação de pandemia, estas fragilidades tornam-se mais evidentes, mas já existiam antes. Como, de resto, se passa em todas as áreas. O que vemos é que em sítios que já tinham problemas, seja no socorro, seja na capacidade dos hospitais, com a pandemia, tudo veio ao de cima.
Tiveram casos em que a VMER não chegou no tempo mais adequado?
Em todo o território, isso acontece, já acontecia antes. O que posso garantir é que a nossa viatura de emergência médica nunca esteve indisponível, como não esteve noutros hospitais, mas sabemos que há situações em alguns hospitais em que houve buracos nas escalas, em que o socorro parou durante a pandemia porque não foram escalados profissionais.
Porque não há profissionais?
Porque houve conselhos de administração que não cumpriram o que está no despacho legal que regula esta atividade, que é garantir a operacionalidade permanente nesse meio e mobilizar recursos para que tal aconteça. E não conheço responsabilização política quando isso não acontece.
Que análise gostava que fosse feita?
Terá de ser um estudo muito profundo do que se passou, que aborde todas estas questões. Penso que só daqui a uns anos vamos perceber o que se passou em termos de impacto na mortalidade e nos indicadores de saúde. Sabemos que morreram quase 20 mil pessoas em janeiro, mas não são só as mortes, é que impacto nos indicadores de saúde vamos ter, seja no que acontece aos doentes, seja no encurtar da esperança de vida. Esse impacto, só vamos ver a longo prazo. Agora, nesta fase, o que temos de fazer é não desconfinar já, mas analisar bem o que fizemos e prepararmo-nos para o que vem a seguir. Nos cuidados intensivos, creio que chegámos ao limite e, no meio deste desastre todo, os profissionais de saúde mostraram capacidade de resiliência e competência técnica. Mostrou-se que o SNS, apesar da pressão, consegue salvar vidas, isso é indiscutível. Mas é preciso focar nos não covid, preparar um plano de recuperação bem estruturado e discutido com todos os parceiros. E o Governo tem de perceber de uma vez por todas que as estruturas que representam os médicos do país são estruturas que estão cá para ajudar. O nosso objetivo é fazer parte da solução, e não do problema.
Sente que não tem havido essa abertura às recomendações que fazem?
Sempre que alertámos foi no sentido construtivo, de ser parte da solução. É essa a visão que tenho da ordem. E se analisarmos retrospetivamente, estivemos sempre um passo à frente das decisões políticas. Alertámos para o uso de máscaras, para a importância das máscaras comunitárias, para os não covid, para confinamentos regionais e não por concelho, para testagem em massa. Tudo aquilo que agora gradualmente começa a ser feito, já o defendíamos há meses. Não foi oralmente, foi por escrito e de forma formal. Parece-me que é a altura de o poder político perceber isso. A nomeação do novo coordenador da task force da vacinação acaba por ser um sinal positivo. Há uma diferença abismal da forma de comunicar da liderança atual e penso que esta mudança será positiva para imprimir rigor e coordenação.
A vacinação tem corrido bem na região Centro? Houve relatos de surtos em lares já depois da vacina, de se poder ter baixado a guarda de certa forma…
Não sei como está a correr nos lares. No meu hospital e nos que conheço tem corrido bem. O problema, neste momento, é haver vacinas – havendo vacinas, conseguimos organizar-nos. O que não pode acontecer são abusos, atropelos e aquele egoísmo que vemos em momentos de guerra e que agora vimos também, que é o salve-se quem puder. Nuns casos terá sido isso; noutros, puro amadorismo, infantilidade na gestão das vacinas. Com esta liderança, não tenho dúvidas de que as pessoas vão pensar duas vezes antes de abusarem da vacinação e de se aproveitarem da vacinação.
Fazer a vacina muda a forma como se vai para o hospital?
Sem dúvida. Estivemos meses naquela pressão: será que me infeto, que posso infetar a minha família? E por isso é tão importante vacinar os profissionais de saúde. É o nosso trabalho, mas claro que há medo. Depois de fazer a vacina mantemos os cuidados, mas já não há aquela ideia de que estamos a fazer o trabalho com uma bomba-relógio. Senti-o logo na primeira toma, uma pessoa fica mais tranquila. E, no meu caso, até tinha tido o meu filho com sete anos infetado. Tantos meses no hospital, e apareceu em casa. Até pensei que tivesse sido eu, mas estava negativo e, por milagre, não apanhei.
Bateu-se pela criação da competência em emergência médica, fez missões internacionais. Faz-lhe sentido comparar a pandemia a uma guerra?
Estive quatro meses no Iraque com a GNR, estive na missão do INEM de resposta ao ébola na Guiné-Bissau e fiz parte da minha formação em Israel. Muitas pessoas podem não saber, mas temos portugueses em tudo o que são estruturas internacionais de resposta a emergência médica, desde Cruz Vermelha Internacional, Médicos Sem Fronteiras, Nações Unidas. E em posições-chave. Os médicos portugueses lideram em muitas áreas, sobretudo na área de gestão e coordenação. Isto escapa um bocado aqui ao dia-a-dia, mas tivemos médicos portugueses no Iémen, no Sudão, no Congo, quase tudo pessoas ligadas à nossa geração, que criou a emergência médica em Portugal. No fundo, fomos a primeira geração a fazer intensamente VMER no fim dos anos 90, início dos anos 2000, quando se massificam as viaturas de emergência médica em Portugal. É uma grande escola de vida e é uma grande escola de preparação para uma situação como esta. Treina-se uma forma de pensar diferente, de planear para conseguir reagir ao que se encontra no terreno, antevendo. Uma pessoa que tem de se confrontar com um acidente de autocarro com 20 vítimas: há o inesperado, mas há o que se pode antever, as metodologias de intervenção. Numa pandemia é algo muito mais abrangente. Naturalmente, não estamos num cenário de guerra, mas do ponto de vista organizacional é tão ou mais exigente do que num conflito bélico, que é pontual: a patologia é diferente, o envolvimento da sociedade é diferente, mas aquilo que se aprende em medicina de conflito, a preparação, a triagem multivítima, aplica-se da mesma forma. E por isso dizemos que temos estado a fazer medicina de catástrofe: não é um sismo, mas é uma catástrofe de origem biológica em que todo o sistema tem de se readaptar.
Mas o que sentiu que era mais decisivo nessas missões lá fora?
Uma liderança forte, uma logística ininterrupta que dá estabilidade a quem está no terreno. Uma liderança forte e uma boa coordenação salvam vidas. Vi-o na minha formação em Israel, quando respondiam a um ataque terrorista. Vi-o com a GNR no Iraque. Os portugueses safaram-se porque foram organizados. Não tivemos uma única baixa. E não é porque não andássemos no meio da cidade a fazer patrulhamento às três da manhã. É porque houve cautela, planeamento e uma liderança forte.
Um SNS que consegue ter 900 doentes com covid em cuidados intensivos quando, há um ano, tinha 600 camas conseguia organizar-se para dar médico de família a toda a gente?
Um SNS bem organizado, com a capacidade humana que temos, com o know-how médico e com vontade e dedicação dos profissionais, podia ser o melhor SNS deste planeta. Penso que a grande lição a tirar desta terceira onda é que o investimento em saúde e no SNS é um investimento no país, na economia. Em áreas-chave, o Estado tem de ser forte. E quando digo forte é do ponto organizacional, não excluindo setor privado e social e articulando a resposta e balizando o papel de cada um, mas todos fazem parte do Estado e da sociedade. Creio que agora fica claro que sem saúde não há economia e não haverá recuperação económica. O país não podia voltar a parar. Se não fosse o Natal, não teríamos tido confinamento. A gestão daquela época foi um desastre e penso que o poder político já o percebeu. Para os portugueses também tem de ficar a lição de que não podemos desconfinar à toa, pensar que vamos ter uma Páscoa normal. Há muito a preparar para desconfinar e temos de ser exigentes. Não se pode pensar em abrir as escolas sem testar professores, sem vacinar os professores. Os alemães fizeram-no, são considerados profissionais essenciais.
Viveu quantos anos na Alemanha?
Vinte e oito anos, cresci lá. E continuo a fazer INEM em Hanôver, temos um projeto de intercâmbio.
Tem-se falado muito do exemplo alemão numa resposta precoce à pandemia, com um confinamento mais cedo do que foi decidido em Portugal. A capacidade económica do país é a diferença?
As pessoas, às vezes, têm uma visão da Alemanha como um país megaorganizado, e não é bem assim. Certas decisões só foram tomadas depois de a chanceler Merkel pressionar os estados federados.
A diferença foi também a liderança?
Para mim, claramente. Houve estados federados que não quiseram confinar e outros que confinaram precocemente. Os impactos económicos existem sempre, a questão é o que se ganha, as vidas que se salvam. O fator de coesão nacional foi a liderança da chanceler. Se não fosse Angela Merkel, a Alemanha não tinha confinado como confinou. A saúde faz parte da alçada federal, mas os estados têm autonomia, podiam fazer o que quisessem. Um segundo ponto importante é como, culturalmente, a ciência é a base da decisão politica.
Merkel é licenciada em Física, doutorada em Química. Há quem diga que ajudou.
É a forma de estar na vida dos políticos alemães. É uma democracia que nasce da pior atrocidade histórica da humanidade, têm um peso em cima deles que ainda hoje é muito palpável. Agora, na população temos aspetos em que estamos melhor: os portugueses aceitaram bem o confinamento, lá existe um movimento negacionista muito mais forte.
Em contrapartida, o sistema de saúde teria muito mais capacidade de lidar com uma crise sanitária maior e, mesmo assim, confinou-se mais cedo.
Mas também tem problemas: a privatização do sistema de saúde trouxe problemas de descoordenação. E tem problemas estruturais como os nossos, falta de médicos, que também emigram para a Noruega, para Inglaterra, para os EUA. Não é um sistema perfeito, mas claro que tem recursos que não são comparáveis com os nossos, seja nos cuidados intensivos e de emergência, sem dúvida.
E quanto mais ganham os médicos, por exemplo?
Três ou quatro vezes mais. O salário-base de um médico, de um assistente graduado com funções idênticas às que temos cá, são 7 mil ou 8 mil euros sem precisar de fazer privada ou 70 horas semanais. A minha irmã é internista na Alemanha. Cumpre 37,5 horas, tudo o que é extra é pago à parte. Eu, aqui, tenho de fazer 80 horas para segurar as pontas do sistema e ganho metade do que ela ganha. Mas isto é transversal a toda a sociedade. Um operário fabril na Alemanha ganha 2 mil euros limpos – logo isto permite outras condições de vida à população. Na saúde, acaba por ser também crucial. Os alemães pagam o mesmo que nós por um ventilador – até menos, porque produzem e têm outras condições de negociação. Portanto, não haja dúvidas de que a pobreza económica de Portugal se repercute no sistema de saúde.
Como viu a vinda dos colegas alemães?
Claro que a ajuda é bem-vinda, mesmo sabendo que perante 900 doentes internados em cuidados intensivos, oito camas seriam sempre uma gota no oceano. É uma manifestação de solidariedade, da mesma forma que os portugueses, quando é preciso, são os primeiros a ir e os Governos, há que dizê-lo, têm tido essa sensibilidade. Recebemos ajuda de fora, mas temos uma diplomacia portuguesa que sempre respondeu muito bem a emergências internacionais e que tem dado muito apoio aos PALOP. Esta pandemia colocou a saúde no centro da diplomacia. Veja-se a vacinação: é política. A América Latina está a fazer a vacina russa; a Turquia, a ser vacinada com a vacina chinesa. Os alemães enviaram agora ajuda militar – os militares têm tido um papel muito importante na resposta à pandemia na Alemanha e era algo que em Portugal também podia ser mais reforçado.
Acha que devia ter havido liderança militar na resposta à pandemia?
Penso que a liderança tem de ser do Ministério da Saúde e da Proteção Civil. Aquilo que gostava de ter visto e não vi é uma liderança regional forte.
O Governo criou autoridades de coordenação regional, com um secretário de Estado responsável por cada região.
Não posso exigir que um secretário de Estado domine uma área que não é dele. A gestão operacional devia ser menos política, mais tecnocrática, mais ligada à realidade local. Lembro-me, por exemplo, dos antigos governadores civis, que aqui poderiam ter tido um papel importante.
Ainda faz sentido repensar o modelo?
Penso que sim, da mesma forma que não é por esta vaga já ter passado que não devemos criar uma rede nacional de transferência de doentes dos hospitais, com uma coordenação centralizada. Dizemo-lo desde agosto porque antevíamos essa necessidade caso tivéssemos uma grande vaga, e vimo-lo em janeiro, com dezenas de doentes transferidos dos hospitais, mas muito na base de contactos entre hospitais, e não numa gestão centralizada. Naquela noite em que houve o problema do oxigénio no Amadora-Sintra, uma coisa que me marcou foi ouvir, a certa altura, o enfermeiro-diretor a agradecer ao hospital a, b e c que recebeu os doentes. Ao fazer isso, bem-intencionado, expõe uma fragilidade do sistema. Numa situação daquelas não devíamos ter de estar a agradecer a generosidade de um hospital, é para isso que serve a coordenação, a rede que devia funcionar. A qualquer momento, qualquer hospital pode ter uma catástrofe interna, pode ter um incêndio, e não faz sentido ter então de andar a ligar a perguntar onde há vagas.
Da mesma forma, seria possível evitar situações como as filas de ambulâncias no Santa Maria?
A resolução muito se deve à Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil e ao INEM.
É cedo para pensar que o pior já passou, que não voltaremos a ter uma vaga desta dimensão?
Não sabemos. Que isto foi marcante para todos, não tenho dúvidas. Ensinou-nos a dar valor a estruturas de saúde que funcionam com limitações no dia-a-dia e mostraram ser capazes de se organizar em situação extrema. Os mortos e os números de doentes internados falam por si e o que tivemos foi medicina de catástrofe nua e crua, um cenário para o qual sempre dissemos que tínhamos de estar preparados. Não estávamos. Saímos da primeira vaga com o milagre português no subconsciente, com a ideia de que tínhamos escapado. O verão foi suave, quase tivemos um verão normal. Em setembro não se anteviu a resposta e a segunda vaga já foi bem pior. E, depois, o erro fatal no Natal que levou a este desastre de quase 20 mil mortes e que não são explicáveis só com covid. Houve falhas que têm de ser corrigidas e não podem voltar a acontecer. Podíamos ter antevisto muitos passos que agora tivemos de fazer sob pressão.
Imagino que não concorde com a ideia de que não é tempo para balanços que por vezes se ouve.
Aquela ideia de em tempo de guerra não se limpam armas é errada. É exatamente em tempo de guerra que temos de limpar mais a arma. Usar essa frase só mostra desconhecimento. É quando usamos mais a ferramenta que nos defende que ela tem de estar mais oleada. Não se limpam armas? Ai limpam, limpam. Portanto, exatamente numa situação destas é que temos de avaliar e perceber que não podemos ser estanques. Se vemos que um plano está a falhar temos de conseguir readaptá-lo e ter o plano b, o plano c. E se for preciso vamos até ao z. É o que aprendemos na emergência médica. E uma estrutura crítica tem de pensar assim e rodear-se de quem pense assim.
O que o prendeu a esta área?
É o que todos os médicos jovens gostam, salvar vidas. É um trabalho muito gratificante.
Mas pesado.
Não sei o que é mais pesado. Um trabalho pesado é o que a gente faz sem gostar.
Os primeiros tempos são os mais marcantes?
Confrontamo-nos com os acidentes, com as famílias destroçadas. Continuo a acreditar que a presença do médico junto dos doentes críticos na rua deve ser reforçada. Traz benefício para o doente e para dentro do hospital. Aquilo que eu vejo na rua, na intervenção pré-hospitalar, é algo que no hospital vejo muito raramente e levo essa experiência para dentro do hospital, ajuda-nos a ver a saúde de uma forma mais abrangente.
Todos os médicos deviam fazer VMER?
Não, têm de ser equipas diferenciadas. Mas creio que, na formação, todos os médicos deviam ter esse contacto com o pré-hospitalar.
O que traz?
Maior ligação à população. Um médico jovem está muito focado no ambiente hospitalar. Lembro-me de um professor israelita que foi meu orientador usar esta ideia: quando vamos a um país diferente, quando visitamos um amigo, vemos a casa arrumada, a vida perfeita. Se entrarmos com uma ambulância ou uma equipa médica de emergência na casa de uma vítima com um enfarte do miocárdio às três da manhã vemos a realidade. Temos um contacto com a sociedade e com a população totalmente diferente. Vemos miséria que no hospital não vemos. Tenho visto pobreza aqui na região de Viseu que nunca imaginava.
Fome?
Miséria mesmo. Casas frias de inverno, saneamentos que não funcionam devidamente, abandono, alcoolismo. Vemos problemas sociais de que nos hospitais não nos apercebemos. Nos hospitais estamos numa bolha protegida. Quando estou no bloco operatório é como se fosse uma nave espacial isolada, não nos falta nada, equipamento, tecnologia de ponta, resolve-se o problema, acaba o turno. Na medicina pré-hospitalar apercebemo-nos da miséria que continua a existir no país.
E vê-se que a pandemia está a agravar essas desigualdades?
O relato que vamos tendo é de mais dramas sociais, mais violência doméstica. Sabemos que essas situações existem, estão à nossa volta e temos de encontrar formas de responder.