Augusto de Campos. A poesia como máquina do tempo

Augusto de Campos. A poesia como máquina do tempo


Um dos maiores exploradores da modernidade e da mais vasta tradição lírica na língua portuguesa chegou aos 90 anos, mas parece pouco considerando a obra, não só aquela que surge com o seu nome, mas a de tantos poetas de quem lançou muito mais que a sombra, ligando o passado e o futuro numa viagem…


Os verdadeiros monstros não adiantam muito ao curso natural das coisas. A sua força está do lado de uma discreta insurreição, quase uma variação musical da sua época, ao mesmo tempo mais harmonizada e destemperada. A razão que os anima fere a ligeireza das noções que tomam o tempo por burro: uma coisa linear, um tanto desalmada, pela indiferença que tem pelo antes e o depois, deixando-se assujeitar por um presente perpétuo. Talvez a única coisa que nos ligue verdadeiramente aos nossos antepassados seja a morte, mas até esta está meio desacreditada. A verdade é que vivemos como uma raça que se libertou da sua mortalidade mas que, por outro lado, tem uma frieza glacial em relação à eternidade. Na terceira parte das Viagens de Gulliver, Swift imaginou com “minucioso aborrecimento uma estirpe de homens decrépitos e imortais, entregues a débeis apetites que não podem satisfazer, incapazes de conversar com os seus semelhantes, porque o curso do tempo modificou a linguagem, e incapazes de ler, porque a memória não lhes chega de uma linha para a outra” (Jorge Luis Borges). Como não ver nesta descrição da senilidade um diagnóstico mais abrangente sobre o momento que vivemos?

Augusto de Campos surge num contraste radical com este tempo, pelo domínio da expressão, claro, mas, de forma simétrica, pela sua intimidade com o silêncio, o conhecimento que tem da extensão dos seus humores, pelo modo como este emerge na sua expressão poética, o que leva Trajano Vieira a afirmar que o silêncio é o verdadeiro substracto da obra deste poeta. O que isso lhe dá é um ouvido soberbo, capaz de detectar “a mais ínfima diferença” num som que largue a correr nas sensíveis cordas do ar ou que se desenhe como signo embaciando o vidro da sua atenção. Numa reflexão breve, mas imensamente esclarecida, que está incluída numa edição especial da revista Bunker, comemorando os 90 anos do poeta, tradutor e ensaísta, Trajano Vieira adianta que a dicção de Augusto de Campos “parece resultar de um conceito de tempo, da lucidez de seu ritmo lento e incisivo do engenho que o configura como manifestação consciente de seu transcurso e percurso”. E acrescenta: “Serenidade seria dizer pouco do que é. Trata-se antes, creio eu, do máximo fulgor que se pode haurir da máxima reserva. Timbre, variações imprevisíveis de escala, espaços entre signos, o instante incalculável em que a expressão passa a existir.”

Soberano de si mesmo, Augusto está comprometido com a mais vasta composição musical do tempo, alguém que se coroa e se confunde com o seu próprio reino, como dizia nuns versos do seu livro de estreia, “O Rei Menos o Reino”, dado à estampa há precisamente 70 anos. Trajano Vieira, professor e tradutor de grego clássico, reconhece no seu percurso o vigor de uma “lírica da paciência”, ou seja, a “de quem aguarda o momento exato — o kairós, diriam os gregos — de usufruí-la, de gozá-la em seu máximo sinal de menos, no âmago de seu cerne, no coração que pulsa imoderadamente no prenúncio da elocução. O passado visto do futuro, o passado não como tempo perfeito, nem como o que termina agora, mas como reverberação no que está por vir. Abertura do tempo.” E conclui: “É de lá, para lembrar Khliébnikov, que proviria “o vento que os deuses do verbo nos enviam”.

“A minha vida está velha/ Mas eu sou novo até aos dentes”, escreveu Vitorino Nemésio. Versos que assentam na perfeição a Augusto de Campos, mestre para quem o tempo se configura como uma série de passagens, funções, e que dedicou uma vida inteira a recortar a chave certa, um murmúrio que leva o trinco da porta a ceder, como que seduzido, e, assim, trabalha não só os nomes mas, mais além, os seus ecos, as suas ramificações, seja na poesia que assalta todas as fraquezas da nossa tão insubstancial contemporaneidade para desmoralizá-la e interromper o seu curso bárbaro, seja na sua “prosa porosa”, equilibrada, irradiando de experiências, ligações, um texto-consciência que, muito antes do aparecimento da internet, era já um labirinto na sua capacidade de concentrar-nos até à perdição e, ao mesmo tempo, um porto, pelas infindáveis coordenadas que nos entregava, numa prática multímoda que foi instituindo “uma poesia genuinamente global” (Marjorie Perloff). Assim, numa mensagem publicada nas redes, “Carta Aberta dos 90”, se o poeta agradecia as homenagens, fez questão de não fechar o plano da comemoração, e lembrou que a maior parte da sua vida passou-a “mais traduzindo do que criando obras de minha própria lavra, e isto me reconcilia com a ideia de que meu trabalho possa ser avaliado com magnanimidade”. Entendeu, portanto, que seriam mais frutuosos quaisquer esforços de celebrar a sua obra esperando que “deste encontro afetivo possa resultar uma congregação de vozes que dê vida aos que ainda amam a arte poética, na sua solidão e inviabilidade”.

“E quem dirá – seja qual for o desencanto futuro – que esquecemos a magia, ou que pudemos atraiçoar na terra amarga a macieira, a canção e o ouro?", questionava Thomas Wolfe. E no Brasil, com tudo o que de mau se passa, com todos os motivos para o desencanto, e com o arrastamento do colectivo que acaba por tocar fundo até as solidões mais invioláveis, os 90 anos de Augusto de Campo no passado domingo foram assinalados através de uma série de publicações, exposições e outras homenagens que entenderam que a celebração deve impor-se ao luto, como uma lembrança das coisas por que se luta. E isto apesar ou até mesmo por causa do descalabro da situação política e social do país, com a pandemia a lavrar de forma devastadora num ambiente minado já por outras formas de miséria e ódio. Assim, a “gripezinha” revelou-se um detonador que expôs dolorosamente esse vírus da idiotia que, em último caso, conduz à loucura, e, consequentemente, à perda da realidade.

Na sua carta, Augusto de Campos fez questão de sublinhar o empenho da sua obra em traçar essa rede alternativa, essa suprema ficção que instauram aqueles que não desistem da magia, e, aproveitou, por isso, para “lembrar o trabalho dos que se permitiram atuar ‘à margem da margem’”, usando uma expressão de Décio Pignatari, cúmplice dele e do seu irmão Haroldo de Campos na criação da revista Noigandres, em 1952, e que foi a base das operações do grupo concretista, tendo os três publicado três anos mais tarde “Teoria da Poesia Concreta”, em que sistematizavam os conceitos para a criação desse movimento literário que, em vez de hesitações e desculpas, abriu a linha de campo imaginário e levou a cabo algumas das mais audazes propostas das vanguardas poéticas desse século. Este foi um movimento que perdeu a vergonha, seguiu as suas aflições até ao fim, tudo fez para que o corpo se expandisse numa razão proporcional ao conteúdo, para lá da página, dos confins verbais, radicalizando a sincronia destes com os elementos sonoros e visuais, de tal modo que foi um movimento que, em muitos aspectos, ficou à espera do futuro para se concretizar plenamente. Esperou a revolução tecnológica para produzir o seu choque transitório, indo a par da expansão multimédia, e deixando registos que traçam a anatomia de um organismo imaginário, a baleia que do branco se levanta e dá forma a um terror que nos espicaça e hipnotiza ao ponto de lhe darmos caça até ao limite das nossas forças. Pignatari definia a poesia como “essa pequena guerra sem frentes e só de frentes”. Lembrava que a tarefa que se impunha aos jovens era “recuperar o passado que os velhos querem enterrar, recuperar o futuro que desejam igual ao seu, deles, presente”.

Mais do que nenhum outro poeta, foi Augusto de Campos quem percebeu a importância crucial do trabalho de tradução para redefinir as linhas mestras, os meios da imaginação e da dicção da nossa língua na sua tentativa de abarcar esses altos sentidos noutros lugares, e foi assim que o seu trabalho de poeta se cumulou na difusão de outras vozes, pela forma como não se contentou em traficar versões vagamente literais, respeitosas mas consternadas pelas perdas sofridas nesse tráfico, e aplicou-se na recriação dos textos em português, invadindo o original, decompondo-o em partes gramaticais e lexicais, numa virtuosa dissecação que, além das transcriações, deu origem a uma forma de “crítica via tradução criativa”, embalando o resultado proposto em comentários iluminadores, e promovendo a ideia de que a poesia, de Dante a Cage, “é cor, é som, é fracasso de sucesso e não passa de uma conferência sobre nada”. Assim, não se limitou a apresentar traições engenhosas, mas caçou a musicalidade superior dos originais, oferecendo em troca de tudo quanto se perde “algo novo que já lá estava” (Steiner). Assim, obras como “Linguaviagem”, “O Anticrítico”, “Poesia da Recusa”, ou as tantas plaquetes que vem publicando nos últimos anos como capítulos sob a designação geral de “Extraduções” (publicadas com o selo das Edições Galileu), além de inúmeros títulos dedicados à obra de um poeta em particular, constroem de facto essa congregação de vozes, constituindo monumentos de uma expressividade inigualável na nossa língua, formando os leitores para as subtilezas radicais que nos permitem participar desse movimento, da forma como as línguas recebem da boca umas das outras esse hálito que faz tremer a consciência e os sentidos. 

E mesmo quando a sua inteligência, sempre radiante de alguma nova descoberta, alcança uma nova vertigem expressiva, sem descer à maledicência, faz frente aos regimes da facilidade, a esses vápidos triunfos supostamente democratizantes que servem para mobilizar e celebrar os poetas mecânicos de cada época, e neste ponto poderiam citar-se uns versos que ele traduziu de Vielimir Khlébnikov: “Hoje de novo sigo a senda/ Para a vida, o varejo, a venda,/ E guio as hostes da poesia/ Contra a maré da mercancia.” Assim, num gesto cuja ferocidade se deve à acutilância da sua fala, este poeta, não apenas atacou o “hipnotismo baboso da imbecilidade” (Pignatari), como se virou à “pedregosa linguagem da crítica” a qual se faz valer de uma suposta autoridade “pela imposição e pela impostura da seriedade”.

Levando em conta a noção de Wittgenstein de que “os limites da linguagem são os limites do meu mundo”, Augusto de Campos insurge-se como um arauto da “beleza difícil”, e aos 90 anos prossegue em plena actividade, um prodigioso caçador que se dedica a montar armadilhas que hão-de persistir pelo tempo fora, mas que em vez de prender os movimentos, dilacerar a carne de quem ali pisa, libertam, transmitindo uma dor que ordena o mundo, essa brevidade de um momento que desabrocha como tensão absoluta, uma razão que soa, que se lança na busca infatigável do som justo. No teste simultâneo de tantas águas, das diversas correntes e profundidades, nele o tempo deixa de ser linear, carrega diversos planos, ruídos e vozes, passos em marcha, uma língua incandescente com o calor da vida, tudo ressoando como uma orquestra sinfónica. A sua obra marcou uma revolução na forma de enfrentar um poema na língua original e transcriá-lo, a qual, deste lado do atlântico, só tem paralelo na forma como Herberto Helder foi mudando poemas para português. E é importante lembrar como o bardo luso nunca se cansou de reconhecer a importância do trabalho feito pelos irmãos Campos e pelos seus consortes, indo ao ponto de exaltar nos seus versos as versões de Ezra Pound que tanto o instigaram nas suas próprias incursões noutras línguas. 

O repertório literário das transcriações de Augusto de Campos é vastíssimo, incluindo nomes como Dante e Rimbaud, Gerard Manley Hopkins, Emily Dickinson e Gertrude Stein, Yeats, e.e. cummings, Mallarmé, Valéry, Maiakovski… E o que prevalece é essa devoção perpétua, um incitamento das coisas umas às outras, como se Augusto de Campos fosse mais que tudo um elemento condutor, recompensado pela variedade dos seus conhecimentos, afinando uma intuição estrondosa. Assim, nas suas traduções não há qualquer confisco, mas antes uma conversa, de tal modo que a literatura recupera essa frescura do que se levanta da tinta, se livra de dogmas rígidos, e prefere captar os reflexos que se encontram no “âmbar da verdade”. Da forma como ele as fixa, as palavras parecem emancipar-se dos seus trilhos contemporâneos, desbravando um tempo mais largo, com uma sumptuosidade comparável à alegria e boa-disposição dos rapazes fora da escola.

Por isso, em vez de entrar nas típicas contendas desses mesquinhos criadores que se digladiam apresentando os seus números pretensamente originais, como hipnotizadores rivais, Augusto de Campos preferiu ser condutor de orquestra, uma escavada a muito custo numa língua que chega a ser mais dele do que de gerações que fazem dela outro dos modos da usura. Ele ensina os rapazes que por qualquer razão não aguentaram o saber como outra das estruturas burocráticas e que preferiram vir para a rua e para o risco, a dar a volta com o pouco, o mínimo, um pó na língua, caindo no sentido, ferindo mais longe uma outra ideia, traçando essas concentrações de fábula, entre sessões divinatórias e operações arqueológicas, reavendo os ossos de uma hipótese mirabolante encontrados séculos mais tarde. A poesia assume assim a importância de um elemento de reconstituição da vida e não já da história. Não interessa os grandes homens e os seus feitos, mas aqueles que absorvem o mundo em si mesmo, tornando presente uma relação mais vasta, entre história, ficção e experiência, iluminando-se ao longo das eras.