O lado subversivo da infância e dos desenhos animados

O lado subversivo da infância e dos desenhos animados


A infância surge cada vez mais cercada de muros, protecções e cuidados, com os desenhos animados e outros programas para os mais novos a serem motivo de acesa polémica, como aquela que cercou John Dillermand, na Dinamarca, enquanto isso, assiste-se a uma infantilização das audiências e os adultos é que se mostram incapazes de definir…


Se fôssemos recontar as histórias que deram profundidade à nossa infância sem omitir detalhes cruciais, se quiséssemos ser honestos, não veríamos tantos perigos, essas calamidades ao virar de cada esquina, mas teríamos pistas sobre as intrigas que metiam cenas de morte, astros, caminhos de ferro, navegações marítimas, dormindo sob o convés, ouvindo nos sonhos o bater da perna de pau, e nos quintais pedras e tangerinas eram frutos iguais, florindo a meio do voo, e rasavam os muros personagens amalucadas, heróis inesperados. Então tínhamos tios em toda a parte. Mas depois, os anos acumulam-se, vêm de ângulos estúpidos dar cabo de todo o vigor, contestar por via burocrática a imaginação e o ânimo aventureiro da criança, como uma aranha cheia de cálculo e perfídia, que nos põe de castigo presos a um tempo que não era o nosso mas que nos deram, insistiram, até perdermos uma a uma as chaves, e não sermos mais capazes de conquistar outro. A infância vai ficando, então, difícil de situar, como uns jardins que visitámos e eram imensos, mas que, aos poucos, iam definhando e que, hoje, de tão ridículos, parecem para sempre perdidos. Era ali onde tudo era ritmo e riso ou uma vontade danada de gozar com tudo, de modo que as nossas gargalhadas pareciam assembleias. Era aqui, onde o que nos parece agora mirabolante se mostrava de um realismo comprovável ao microscópio, e foi de lá que se levantaram tantas sombras do futuro, esses instintos a que recorre mais tarde o nosso destino quando precisa de nos dar alguma missão.

“Que âncora poderosa carregamos”, diz o poeta brasileiro Paulo Mendes Campo, e está ali para recompensar-nos, como fonte “consoladora dos aflitos”. Quem não teve passa pela vida esmagado. Pouco mais coisas vê no mundo que o seu cansaço, o lado mesquinho das coisas. É preciso esse altar para os mitos, capazes de se alimentarem de tudo, esse sol que nascia repartindo-se entre fantasias tão ambicionadas de noite, quando o escuro vinha arrebatar os nossos planos. Então, a vida ria-se sozinha. Como dizia Mendes Campo: “Que força do destino tem a carne/ Feita de estrelas turvas e de nada!” Depois até há quem venha desmenti-la, dizer que foi tudo exagerado, pura ignorância, erro de perpectiva, miragens às cavalitas umas das outras – são os somíticos da infância. Os que já então eram dados a um fatalismo absurdo, descobrindo substâncias mortais em todo o lado, até nas flores, nas ribanceiras, nos cursos de água só viam afogados, tinham um medo que os proibia de sair para ir brincar. E então chegamos a isto, a esse olhar sobre as crianças que é o de quem não tem recursos para tê-las, quem muito responsavelmente prefere negar-se a esse abalo. Como se em algum momento tivesse sido razoável trazer crianças a este mundo. Já Montaigne, no século XVI, havia sentenciado que “as crianças fazem parte daquelas coisas que não têm muito para serem desejadas, sobretudo neste tempo em que seria difícil torná-las boas”. Aí está a disciplina dos somíticos da infância. Para percebermos como as atitudes foram mudando na forma como a criança foi sendo encarada, vale a pena lembrar como, na década de 1980, a socióloga Viviana Zelizer proclamou que estávamos a viver na era da criança de “valor inestimável”. Esta autora notou que, no final do século XIX, as crianças eram valorizadas principalmente pela sua contribuição económica para a sua família e para a sociedade em geral. Mas, no início do século XX, depois da aprovação das primeiras leis do trabalho infantil e com a queda das taxas de mortalidade infantil, o valor das crianças começou aos poucos a ser definido em termos sentimentais.

Hoje, numa era de protecção obsessiva das crianças, e em que os pais as exibem e quase não falam de outra coisa, procurando expurgar não só o espaço doméstico como o espaço públicos de quaisquer ameaças ou inconvenientes, não faltam instâncias zelosas e inúmeras comissões de protecção dos menores, que tomam a infância por uma coisa indefesa, inofensiva, ingénua, e nunca pelo triunfo da malícia que também há nela, esquecem todos como, deixadas soltas, há infâncias ardentes como um álcool (Huidobro), dessas que sentam nos caminhos da noite a escutar a eloquência das estrelas, ou, pelas tardes, a oratória das árvores, o teatro dos pássaros. Diz-se que alguém fez mal a uma criança e logo vem um edital a mandar trancar a infância toda. Proíbem-se os jogos selvagens com que ela dá as voltas que quer ao tempo. Fecha-se a infância e com ela a desmesura cósmica que a nutre. Não demora muito para descobrirem que até em casa há infinitos perigos para as crianças. Já não são os rios nem as florestas ou o velho maluco que fazia coisas aos rapazes, mas a televisão, os desenhos animados asneirentos, cheios de maus exemplos, a darem cabo da pureza das criancinhas. Coitadas. Ou são os adultos que estão estragados? Se calhar esquecem a distância que vai da terra (da realidade em que se encerraram) à infância, e, por isso em tudo encontram o risco, a roca onde irá picar-se a sua virtude, as forças que irão desfigurar as suas mentes, que são, como se sabe esponjas, e absorvem tudo, e estão sujeitas às piores deformações. É o horror. Isto num tempo em que, das tecnologias aos conteúdos, não faltam perigos à espreita, todas as formas de assédio de um entretenimento que não olha a meios. A vigilância aperta e não faltam mães e psicólogos para palmilhar cada recanto em busca de tomadas eléctricas, escadas vertiginosas, alçapões e o raio até nos desenhos animados. Para não falar dos péssimos exemplos, influências assustadoras, passadores de todo o tipo de noções estupefacientes.

Estranhamente, quanto mais se defende as crianças, mais fraca a produção de adultos, bando macambúzio de maçadores, de um conservadorismo aflitivo, de um reacionarismo que deixa a realidade chorosa como uma viúva. E nisto tem peso a infantilização geral dos públicos numa época em que, em lugar de um serviço militar obrigatório, o que há é umas milícias da moral, com a música do elevador parado do tédio nas redes sociais a incitarem ao aparecimento desses grupos de canto coral dos ofendidos e esquadrões da morte por abaixo-assinado, quase sempre por dá cá aquela palha, fazendo-se, depois, um silêncio sepulcral em torno das questões que põem em xeque o nosso modo de vida. O estado metabólico social nunca esteve mais desarranjado. Pode-se mergulhar e dar algumas braçadas na tão propalada modernidade líquida de Bauman e reparar como as cores tão garridas dos peixinhos, todas juntas, dão uma mostarda, e apercebemo-nos de que os desenhos animados ainda gozam de uma relativa liberdade, engenho, espirituosidade e inteligência quando comparados com o lixo dos programas e das telenovelas que lideram as audiências, mimando os seus piores instintos e inclinações. Ou bem que se lhes dá essas doses de parvoíce radioactiva, que a estimule nos poucos segundos que regista toda a memória de um peixe, ou já pegaram no telemóvel. Assim, aquela coisa de se ver um corpo especado numa atenção espantosa recebendo a luz de um ecrã, sem mexer um músculo, isso é um exclusivo da infância, capaz ainda de se deixar submergir, espicaçar e desafiar. E ainda vai demorar algum tempo para que os miúdos reajam em bandos de ofendidos identificando-se de forma algo patológica como minorias, exigindo protecção, como se se tratassem de espécies ameaçadas.

Felizmente, no que concerne à infância, “a queda vale mais do que a segurança de estar parado”. Por outro lado, não faltam hoje controvérsias à volta dos programas e séries, filmes ou outros conteúdos dirigidos aos mais novos. O admirável mundo novo da expansão dos media produziu um reino de susceptibilidades fervilhantes, em que uma espécie de fungo que se apanha nos sofás entra na corrente sanguínea e assalta as ideias produzindo esses tipo de vigilantes com um conjunto muito particular de habilidades, capazes de provocar a tempestade no copo de água de uma caixa de comentários, e nunca como nesta época tanto se mostraram tão empenhados e preocupados com a crise dos valores, e, desde logo, com a inocência das crianças. Poucos lhes concedem ou reconhecem os superpoderes de perversidade, a natural atitude libertina, esse humor lancinante, provocador, gerador de desordem, desalinho, deformação, mas também inquisitivo, de uma flamante curiosidade, e uma inteligência que cerca, que nos sarrazina o juízo, a profunda inquietação das crinças, sempre a testarem os limites, a tentarem ler nos adultos as fronteiras entre o que sabem e o muito que fingem, fazendo-lhes um exame em que a maioria dos pais chumba repetidamente. E isto só o sabem os pais que lhes deram margem e sofrem as invasões bárbaras, incapazes de dar alimento a essa imaginação esfomeada, a esse génio incontido e desavergonhado, capaz de desautorizar seja quem for por meio de delicadezas surpreendentes, de palpites assombrosos, insondáveis inspirações. Pois se quisermos falar da infância, não convém deixar para o fim a inteligência e até a fúria com que reage se a obrigam a engolir sapos ou até a sopa. E como é atraída pelo que lhes é interdito, como a proibição a estimula, como investiga e drena o leito dos rios para onde os adultos atiram essas coisas que os deixam atarantados, de garganta seca, sem saber como lidar com o que lhes parece impróprio. A criança desmascara muitas vezes a ridicularia de certos tabus, de restrições morais tão persistentes e bacocas, desafiam interdições absurdas, recusam essas normas e imposições injustificáveis, riem-se a bom rir daquilo que aos grandes faz corar, da caca e dos puns, dos órgãos multiusos que trazemos de origem. Para proteger a infância, muitas vezes dela só se deixa passar essa caricatura, esse branqueamento dos seus aspectos mais extraordinários, num processo que trata de recalcar tudo o que pareça infeccioso e ameace estalar as conveniências, o respeitinho, a moralidade mesquinha. 

O mais recente capítulo desta novela envolve um programa infantil que foi para o ar na televisão dinamarquesa, DR, que é o equivalente à nossa RTP. Trata-se de uma série de animação para a faixa etária dos 4 aos 8 anos, e chama-se John Dillermand – o que se poderia traduzir por “João Pénis”. Cada episódio tem cerca de cinco minutos, e o protagonista é um boneco de plasticina vestido com uma espécie de pijama às ricas, vermelhas, e que tem um pénis extensível, também ele coberto pelo mesmo pijama, ou seja, é um pénis como podia ser uma cauda, ou qualquer outro apêndice dotado de uma vontade própria, obstinado em gerar peripécias ao seu impotente (salvo seja) dono. É claro que bastou o genérico, ou até o título para gerar uma acesa polémica no país, e, desde pais a políticos, passando por especialistas desses chamados seja para pôr água na fervura ou regar com combustível qualquer fogacho, não faltaram, nas redes sociais, opiniões num e noutro sentido, a indignação, aqueles que tomaram esta animação infantil como “nojenta”. “Sou o único que acha repreensível que as crianças achem divertido ver um pénis de um adulto na DR?”, escreveu no Twitter Morten Messerschmidt, do conservador Partido do Povo Dinamarquês. E a escritora Anne Lise Marstrand-Jørgensen perguntou se na era do #metoo, em que se discute o assédio sexual, é “realmente a mensagem que queremos transmitir às crianças”. 

Em sentido contrário, não faltou também quem não visse nada de especial nesta animação, e a considerasse bastante inofensiva. Erla Heinesen Højsted, uma psicóloga clínica que trabalha com famílias e crianças, disse que os opositores do programa estavam a retirar as coisas do contexto e a ver um conteúdo obsceno numa série que o que faz é naturalizar uma parte do corpo masculino. “John Dillermand dirige-se às crianças partilhando a sua forma de pensar – e é um facto que as crianças acham piada aos genitais.” Embora conceda que a altura em que o programa foi para o ar pode ser um pouco sensível, Højsted insiste que, nem o programa tem qualquer conteúdo sexual, e que “fingir o contrário é apenas uma forma de projectar fantasmas dos adultos nele”. 

A emissora de serviço público dinamarquês tem já uma reputação por testar os limites, especialmente no toca à programação dirigida aos mais novos. Outra das suas bandeiras nesta faixa é Onkel Reje, uma figura popular que usa palavrões, fuma cachimbo e faz de tudo para evitar tomar banho. E, em 2012, uma personagem do programa Gepetto News tinha já levado os conservadores aos arames quando revelou uma paixão pelo transformismo. A mais recente polémica tem alguns meses, e surgiu depois de o programa Ultra Smider Tøjet apresentar a crianças de 11 a 13 anos um painel de de adultos em pelota, numa espécie de contraofensiva, com o canal a justificar a sua necessidade por, hoje, os adolescentes estarem constantemente a ser bombardeados por imagens de corpos perfeitos. “Que espécie de cultura estamos nós a promover junto das crianças se lhes dizemos que não há mal nenhum em expô-las constantemente a corpos perfeitos no Instagram – melhorados com photoshop ou cosmeticamente –, mas depois não se pode mostrar-lhes como são os ‘corpos reais’?”, questionou Højsted.

No que toca a John Dillermand, a DR justificou a sua aposta com o objectivo satisfazer a curiosidade que as crianças têm sobre os seus corpos, incluindo as partes que podem achar mais constrangedoras, daí o personagem ser um adulto com um corpo incomum. Margrethe Bruun Hansen, a psicóloga infantil que foi consultada para a produção do programa, lembrou que “as crianças gostam de ficar nuas e explorar o seu corpo. Elas brincam aos médicos, examinam-se umas às outras e adoram palavras impróprias”. 

John Dillermand não passa de um tipo comum e que, não fosse pelo seu singular e quilométrico pénis, teria uma vida bastante apagada. É o tipo que só quer fazer a sua vida, ir à mercearia, visitar o zoo, ocupar-se do jardim, mas que dá por si, nestas anódinas movimentações, metido em enrascadas, tudo porque o pénis insiste em arranjar confusão. Ora, se mete entre os arbustos como uma cobra quando o vizinho está a apará-los, ora pega num cone de gelado e vira-o sobre um semáforo, provocando um curto-circuito e perturbando o trânsito, ora, numa atitude um pouco mais insolente, quando Dillermand decide ir à caça, agarra numa espingarda e anda a agitá-la pela floresta. Basta ver alguns episódios para perceber que é um membro absolutamente desprovido de motivação sexual. Nem sequer é usado para urinar, e não passa, por isso, de uma espécie de animal de estimação um tanto inconveniente.

Dá vontade até de citar um poeta e político português do século XIX, esse sim uma figura admirável pela fineza e encanto da sua genial imaturidade. Guerra Junqueiro cantou com gloriosa insubordinação uma ode ao descomunal membro viril de Pedro Soriano, um dos mais famosos patifes dos que povoavam a Lisboa no final daquele século, um poema que o poeta nunca quis fixar, mas cuja alada expressão feriu com tal júbilo a memória daqueles que tiveram o privilégio de o ouvir que eles mesmos se juntaram para fixar essa lendária descrição do membro imenso, uma que até ali era um rumor, e que fez o poeta desconfiar, ao ponto de a sua incredulidade se ter satisfeito com a observação directa do instrumento, que, quando lhe foi mostrado, puxou por ele, e resultou nesse canto homérico a um mangalho, num exemplo de repentismo cozinhado com a ajuda de abundantes libações. E recorde-se um excerto ao leitor, encorajando-o a descobrir o resto nas profundas galerias da internet onde descansa o seu vigor. “Enfim, nesta pobreza métrica/ cantemos essa porra, porra quilométrica,/ donde pendem colhões que ideia vaga/ das nádegas brutais do Arcebispo de Braga.// Sim, cantemos a porra, o caralho iracundo/ que, antes de nervo cru, já foi eixo do Mundo!/ Mastro de Leviathan! Iminência revel!/ Estando murcho foi a Torre de Babel/ Caralho singular! É contemplá-lo/ É vê-lo teso!/ Atravessaria o quê?/ O sete estrelo!// Em Tebas, em Paris, em Lagos, em Gomorra/ juro que ninguém viu tão formidável porra/ É uma porra, arquiporra!/ É um caralhão atroz/ que se lhe podem dar trinta ou quarenta nós/ e, ainda assim, fica o caralho preciso/ para foder a Terra, Eva no Paraíso!”

Entretanto, e retomando o tema da programação infantil, quem esteja atento ao regime revisionista, com as suas luvas de borracha e desinfectante sempre a postos, poderá recuar alguns anos e até décadas para descobrir que muitos dos programas e séries de animações que nos agarraram durante horas num quimérico deslumbramento frente ao ecrã do televisor quando éramos crianças estão hoje a ser alvo de uma purga retroactiva, que vem agora deslocar os ossos antigos, e que pareciam já selados nas suas tumbas profundas com tantos outros tesouros afectivos, para nos mostrar como fomos submetidos a perigosos materiais que, afinal, estavam a promover uma série de preconceitos e a organizar toda uma linha de aguerridos estereótipos. Seja como for, qualquer empurrão em direcção ao passado, se começa por mexer com as bolsas de nostalgia que temos em nós, também serve para nos levar a pensar como, desde há muito, a programação dirigida aos mais novos segura uma linha de irreverência, que vai de programas como Looney Tunes ou Tom & Jerry, prosseguida por Os Simpsons, e, mais recentemente, por séries como The Ren & Stimpy Show, Beavis and Butt-Head e South Park. Ou seja, há muito que bandos de terroristas se infiltraram nos escaninhos onde se dá à manivela da máquina efabuladora que fala a mesma linguagem que os miúdos, nos subterrâneos onde ganha forma, entre milhentas propostas cheias de boas intenções, uma ou outra fórmula mais inusitada e que capta o fulgor infantil, é nesses laboratórios que uns artistas tantas vezes anónimos originam vírus fantasiosos com um período de incubação bastante largo, até para evitar a detecção.

Na memória de cada um de nós terão ficado certamente alguns episódios ou cenas memoráveis que atestam o rasgo de insubordinação e o penetrante e subversivo humor, recorrendo tantas vezes ao arsenal do absurdo, que tornou tantos destes programas e séries marcos culturais decisivos para sucessivas gerações. O exemplo que logo me vem à cabeça é uma cena do filme South Park (1999), uma selvagem sátira que, com os recursos mais pobres no que toca a técnicas de animação, rivaliza com Dr Strangelove (1964) de Stanley Kubrick pelo brilhantismo da escrita, há uma cena que devia estar registada nos anais do humor, na qual, depois de os EUA declararem guerra ao Canadá, numa ofensiva justificada pelos desaforos e as letras indecentes de um duo de cantores daquele país que estariam a perverter as criancinhas da América, a certa altura, nos preparativos para um ataque com o nome “Operation Human Shield”, um batalhão constituído inteiramente por negros é destacado para forrar os veículos do exército (mais à frente aparece um avião e um tanque de guerra com negros atados nas laterais), e quando Chef, o tipo que trabalha no refeitório da escola de South Park e que é negro, pergunta ao general no comando se já ouviu falar na Proclamação da Emancipação, este responde-lhe que não ouve hip hop.

South Park é um extremo, pois trata-se de uma série que se serve do pacto de confiança que nos faz encarar com benevolência bonecos coloridos, supostamente inofensivos, para operar uma espécie de golpe nas expectativas, um ludíbrio de todo o tamanho, pondo na boca de crianças mal desenhadas todo esse fulgor subversivo que estas conseguem espevitar nos adultos.

A infância e a idade adulta medem-se uma à outra. E os melhores desenhos animados não se limitam a organizar excursões de um para o outro lado da fronteira, mas instigam invasões bárbaras de parte a parte. A pior forma de se viver a infância é sentir que se tem como senhorios uns adultos que estão ansiosos por promover o nosso despejo. Ter a sorte nessa lotaria, é ter como pais traficantes capazes de infundir a realidade de uma boa dose de sonho, e nessa operação os pais vão aperfeiçoando essa capacidade de mostrar as coisas e encantá-las. Mas nisso são ajudados pela disponibilidade de encanto dos filhos. Valeria Luiselli diz-nos que "os filhos forçam os pais a procurar uma cadência, um olhar, um ritmo específico, a forma correcta de contar uma história, sabendo que as histórias, não resolvendo nada nem salvando ninguém, serão talvez capazes de tornar o mundo simultaneamente mais complexo e mais tolerável. E às vezes, só às vezes, mais belo. As histórias são uma maneira de subtrair o futuro ao passado, a única maneira de encontrar clareza no olhar lançado atrás." A ligação entre pais e filhos é o grande balanço para tudo isto que cá andamos a fazer. Se com os pais aprendemos aquilo que podemos esperar do mundo, com os filhos descobrimos aquilo que o mundo pode esperar de nós.