Cemitérios e crematórios não dão resposta e há quem espere oito dias pelo funeral

Cemitérios e crematórios não dão resposta e há quem espere oito dias pelo funeral


Os mortos fazem fila para alcançar o descanso eterno. Os hospitais e as funerárias guardam-nos em salas refrigeradas a abarrotar de corpos e caixões. Os cemitérios e os crematórios não dão conta do recado. E cada vez mais pessoas pedem fiado às agências para poderem enterrar os seus. 


As filas nos hospitais não terminam à porta. Nas traseiras, em silêncio, longe de todos os olhares, outras filas vão-se formando, feitas por aqueles que aguardam para seguir viagem rumo à última morada. Os mortos não protestam. E aguardam pacientemente a sua vez nas arcas frigoríficas esgotadas dos hospitais e das funerárias. Há agências funerárias suficientes? Há. E carros funerários? Há. E meios humanos para fazer tudo isto funcionar? Também há. O que não há, neste momento, é cemitérios e crematórios disponíveis suficientes para dar resposta à mortalidade recorde registada em janeiro de 2021, desde que começou a terceira vaga da pandemia.

“Sabe o que isto me recorda? Aquelas imagens do ano passado na Lombardia, em Itália, com mortos amontoados e filas de caixões. Estou exausto. Estamos todos exaustos… física e psicologicamente”, confessa ao i Artur Palma, proprietário da funerária Velhinho, na Amadora, uma das zonas mais congestionadas do país no pós-vida.

A voz sai-lhe num queixume. “É um cenário pelo qual nunca passei… e que julguei nunca ser possível vir a passar. Estamos completamente esgotados. Trabalhamos 24 sobre 24 horas. O telefone não para de tocar, as pessoas não param de nos bater à porta. E apesar de conseguirmos, para já, dar resposta aos pedidos que nos chegam, a verdade é que depois não temos sítio para onde levar os corpos dos falecidos. Resta-nos agendar com os cemitérios e os crematórios e aguardar por uma data e um horário disponíveis para concluirmos o processo”, explica.

Nos cemitérios localizados na periferia das grandes cidades – onde há registo de maiores dificuldades –, o tempo para enterrar ronda as 72 horas; nos crematórios, a situação é ainda mais dramática. As listas de espera atingem períodos que podem ir dos quatro aos oito dias.

A funerária Velhinho tem hoje seis caixões fechados na sua arca frigorífica. O local, antes de passagem, para não mais de um par de horas, é agora um depósito sem vida, abarrotado, empilhado, que mexe com os nervos dos profissionais do setor, mas também com os dos familiares e amigos dos mortos. “Esta situação não é fácil para ninguém. As pessoas saberem que os seus entes queridos estão depositados numa arca frigorífica durante dias e dias… sem que nada se possa fazer a não ser esperar. Não é nada fácil lidar com tudo isto. Não é fácil, sobretudo, lidar com os vivos neste momento”, admite Artur Palma.

E todas as funerárias têm uma arca frigorífica como esta? “Não”, responde. Como se faz, então, se não existirem condições para guardar um cadáver? “É simples. Ficam no hospital até haver um cemitério ou crematório disponível. É por isso que as morgues dos hospitais estão a rebentar pelas costuras. É por isso que a maior parte dos grandes hospitais já teve de reforçar estes espaços, com mais arcas frigoríficas. O Hospital de Santa Maria já tem mais duas, o Beatriz Ângelo outras duas e o Amadora-Sintra mais uma… mas eu já lhe conto uma história…”, promete.

Pesadelo em Loures. Artur Palma conta-nos a sua experiência. É domingo. O agente funerário cumpre a curta viagem entre a Amadora e Loures depois de lhe ter sido solicitado o serviço de um funeral para um indivíduo falecido nessa manhã no Hospital Beatriz Ângelo.

À sua espera está apenas o segurança de serviço, que confere a papelada e indica a arca frigorífica onde se encontra o cadáver. “É ali naquele. O contentor número cinco”, indica. Ao fim de semana é sempre assim. Não há mais ninguém destacado para guardar os mortos. Artur Palma e os seus colegas encaminham-se para o local, vestidos a rigor – protegidos da cabeça aos pés com luvas, máscaras e os equipamentos de proteção individual (EPI) –, como sempre acontece desde que a covid-19 passou a constar como causa de morte em Portugal.

É também o próprio Artur Palma quem abre o contentor, um dos dois novos espaços do género adicionados, há duas semanas, para permitir alargar a morgue do hospital. E é também Artur Palma, desta vez na companhia dos seus colegas, quem olha desolado para uma arca frigorifica repleta de macas com corpos deitados no interior de sacos de plástico. Apenas ali estão pelo menos duas dezenas de corpos.

O agente funerário tem de procurar nas etiquetas penduradas por um fio o número que corresponde ao seu “cliente”. Um por um. Mas são tantos que rapidamente os profissionais se veem impedidos de prosseguir, não lhes restando outra opção a não ser começar a desviar cadáveres para o exterior e para os lados até conseguirem chegar às macas localizadas ao fundo daquele retângulo que funciona a baixas temperaturas.

“Nunca vi nada assim. Estavam ali dezenas de corpos. O contentor estava a abarrotar. E numa arca frigorífica não há corredores por onde possamos passar. Tivemos de andar a desviar cadáveres para conseguirmos avançar e, por azar, o corpo do indivíduo de que tinha de fazer o funeral era precisamente o último naquela arca frigorífica. É uma situação que nos afeta muito, mas que se verifica todos os dias desde que tudo isto começou”, conta Artur Palma.

O dono da funerária Velhinho vai ainda mais longe e encontra uma relação direta entre as filas para a vida e as filas para a morte. “Porque acham que há estas filas todas à porta dos hospitais? Porque demoram tanto os hospitais a dar entrada aos doentes que chegam nas ambulâncias?”, questiona. “As morgues, as arcas frigoríficas, os novos contentores estão repletos de macas, que antes serviam os doentes que chegavam aos hospitais, com os corpos daqueles que já morreram”, garante. “Esta é que é a verdade. Não há macas para os vivos porque estão ocupadas com dezenas ou centenas de mortos”, conclui.

Culpados? “É quem gere os cemitérios em Portugal”. “É hora de enterrar os mortos e cuidar dos vivos”. A frase atribuída ao ministro do reino Sebastião Carvalho e Melo, marquês de Pombal, como resposta ao terramoto de Lisboa de 1755, tem ecoado como pano de fundo numa crise sem memória que eleva o número de óbitos no país para picos sem paralelo. O problema é, precisamente, a dificuldade que se tem revelado fazer cumprir essa ordem.

Ao i, Carlos Almeida, presidente da Associação Nacional de Empresas Lutuosas (ANEL), lamenta o “estado a que se chegou” e considera que as coisas poderiam estar a correr de forma diferente. “Obviamente que as coisas podiam ter sido preparadas de outra forma. Repare: há uma semana que estão a morrer em Portugal cerca de 700 pessoas por dia. Mas existem 1330 agências funerárias no país. Três mil carros funerários. E essas empresas nunca ficaram com meios humanos e técnicos indisponíveis. Portanto, não é certamente por responsabilidade das agências funerárias que não se tem conseguido escoar os cadáveres e realizar enterros e cremações ao ritmo que, infelizmente, tem sido hoje necessário”, afirma.

Mas, afinal, existem culpados? “Sim, existem. A culpa é da gestão dos cemitérios e dos equipamentos de cremação”, acusa Carlos Almeida. “Cerca de 80% dos cemitérios portugueses são geridos pelas juntas de freguesia, que nem sequer têm um funcionário próprio, apenas um tarefeiro, que é solicitado sempre que há um funeral. Muitas vezes trata-se de uma pessoa que presta este serviço em três, quatro ou até cinco cemitérios em simultâneo. Neste contexto, é óbvio que não se consegue dar conta do recado. É assim que o atraso nos funerais se explica: não há braços para abrir tantas covas”, garante.

O presidente da ANEL recorda que “já tinha alertado a Associação Nacional de Municípios Portugueses e a Associação Nacional de Freguesias para este problema mas, na altura, ninguém me quis ouvir, fui completamente ignorado”. “O contexto pandémico que hoje estamos a viver veio apenas trazer ao de cima um problema muito antigo e que é aquilo a que chamo o nacional-amadorismo português na gestão destes equipamentos. É algo que dura há demasiados anos. Só que agora, no contexto atual, está simplesmente mais visível”.

Porém, mesmo com os problemas identificados, a situação não deverá alterar-se rapidamente. O nosso jornal sabe que, nesta fase, há câmaras municipais e juntas de freguesia que têm procurado contratar em emergência elementos para reforçar as equipas que trabalham nos cemitérios, algo que não tem sido fácil.

Em relação ao número de crematórios (cerca de três dezenas em território nacional), os atuais não são suficientes para fazer face à elevada procura – mas numa pandemia como a que atravessamos, estes equipamentos têm-se revelado insuficientes não só em Portugal como também em qualquer outro país do mundo.

Perante este cenário de crise, Carlos Almeida deixa um apelo à população: “As pessoas têm de nos ajudar neste momento. A única solução passa por simplificar o processo funerário, sem velório, sem missa, sem quaisquer outras cerimónias… tem mesmo de ser assim, de casa ou do hospital diretamente para o cemitério ou para o crematório”.

“Eu sei que custa muito, eu sei que dói, eu sei que esta não seria a homenagem que imaginaram para os seus entes queridos, eu sei que, muito provavelmente, isto ficará na memória de familiares e amigos para o resto das suas vidas, mas é a única solução que vejo para que esta situação possa ser resolvida o mais rapidamente possível”, diz. “As pessoas têm, de uma vez por todas, de tomar consciência de que estamos numa guerra… e, numa guerra, todas as espingardas contam”, conclui.

Crise dos vivos. À crise pandémica soma-se também uma crise económica e social: o desemprego, o layoff; em todos os casos, os salários emagreceram. Esta situação, de resto, já tem vindo a refletir-se nas dificuldades financeiras que muitas famílias demonstram para fazer face às despesas com a realização de um funeral ou cremação.

“Já se nota, já se nota”, diz-nos Artur Palma. O agente funerário admite que tem recebido “cada vez mais pedidos para adiar os pagamentos” das cerimónias fúnebres, mas acrescenta que os próprios compromissos das empresas do setor nem sempre permitem aceitá-los. “Não posso mais. Ainda no outro dia ligou-me uma senhora que já tinha recorrido a quatro ou cinco funerárias, e todas tiveram de dizer-lhe não. Eu próprio já não tenho condições para aceitar a realização de funerais ou cremações nessas condições. Resta a estas pessoas pedirem apoios às instituições”, refere.

O i apurou que, para já, a Santa Casa da Misericórdia (SCM) ainda não registou um aumento significativo do pedido de apoios sociais para a realização de funerais desde que começou a pandemia. Por exemplo, a SCM de Lisboa pagou 477 funerais sociais (incluindo indigentes e apoios às cerimónias) em 2020, um número superior ao que foi registado em 2019, mas muito em linha com o que foi verificado em 2018, não podendo, por isso, assumir-se uma relação com a covid-19. No terreno, porém, a convicção é que cada vez mais pessoas demonstram dificuldades em enterrar os seus mortos.