Confinamento. “Chorava compulsivamente, tinha falta  de ar e sentia-me sufocada”

Confinamento. “Chorava compulsivamente, tinha falta de ar e sentia-me sufocada”


Cerca de 50% dos portugueses relataram um impacto moderado a severo do confinamento na sua saúde mental. Especialistas acreditam que a situação pode piorar.


Fez na passada segunda-feira dez meses que foi anunciado o primeiro estado de emergência em Portugal. Com ele vieram o confinamento obrigatório, as restrições à circulação na via pública, o distanciamento social, a solidão e a incerteza. Foram vários os portugueses que se viram obrigados a recorrer a serviços de apoio psicológico visto que o isolamento pôs a nu problemas que até então estavam escondidos ou não existiam de todo. A psiquiatra Beatriz Lourenço, colaboradora da associação ManifestaMente, quando contactada pelo i, afirmou até que “todos os estudos que foram feitos mostraram que o confinamento trouxe um aumento das queixas de sofrimento psicológico que são reportadas pelas pessoas”. No estudo “Covid-19 em Portugal: Explorar o imediato impacto psicológico na população em geral”, publicado na revista internacional Psychology, Health and Medicine, realizado por sete investigadores portugueses, foi possível identificar que, de uma amostra de mais de 10 500 pessoas, 49,2% avaliaram o impacto psicológico da situação pandémica como moderado a severo, 11,7% relataram sintomas depressivos moderados a graves, 16,9% sintomas de ansiedade moderados a graves, e 29,2% níveis de stresse moderados a graves. O coordenador deste estudo, Mauro Paulino, contactado pelo i, afirmou que os valores de stresse e ansiedade podem ser ainda superiores neste novo confinamento.

A ansiedade do isolamento Carlota Andrade foi um desses casos. A jovem de 21 anos já tinha procurado um psicólogo no passado devido a um quadro de ansiedade, mas tudo piorou quando se viu obrigada a ficar em casa, distante de quem mais gostava. No entanto, assume que desta vez não foi capaz de procurar ajuda por não querer preocupar os pais. O isolamento fez com que Carlota começasse a ter ataques de ansiedade diários e “na segunda ou terceira semana de isolamento [chegou] a ter vários por dia”. A sintomatologia era semelhante em todos: “Chorava compulsivamente, tinha falta de ar e sentia-me sufocada”. Quando isso acontecia “fechava-me no quarto e tentava fazer o mínimo de barulho possível”, explica Carlota. A estudante contou que, ao ver todos os amigos e o namorado em zonas diferentes do país, sentiu-se confrontada com “a obrigação de passar muito tempo sozinha” com os seus próprios pensamentos. Estes pensamentos intrusivos começaram a fazer parte dos dias, criando “um círculo vicioso” de insegurança, culpa e má disposição. Ao esconder-se no quarto ficava ainda mais ansiosa por se lembrar que os pais podiam “aparecer a qualquer momento e não ia saber o que lhes dizer”. Só em maio Carlota viu a sua situação melhorar: “Quando começámos a saber das medidas de desconfinamento e estávamos mais à vontade, quando voltei a poder estar com o meu namorado e as minhas amigas é que comecei a sentir-me melhor e vi a ansiedade a ir sempre acalmando até setembro”. Para lidar com a situação, a jovem escolhia abrir a janela para respirar e desligar o telemóvel “para não começar a disparar para cima de ninguém”.

Daniela Matos, de 22 anos, viu-se numa situação parecida com a de Carlota. Durante o confinamento ligou várias vezes “de urgência” à psicóloga que a acompanha por estar a ter dificuldades em lidar com o stresse. O facto de estar fechada “24 horas por dia com a minha mãe e os meus irmãos estava a causar-me muita irritabilidade”, explica a jovem.

À segunda será de vez? Quando foi declarado o primeiro estado de emergência, Portugal estava com um número total de infetados de 642 pessoas. Registava-se nesse dia 18 de março a segunda morte. A população estava assustada e com medo do desconhecido e, tal como foi pedido pelo Governo, as pessoas fecharam-se a sete chaves. Hoje, o total de casos confirmados de infeção por covid-19 em Portugal é de 566 958 e os mortos são mais de 9 mil. O número de casos diários tem ultrapassado os 10 mil e o número de mortes por dia tem sido superior a 100 há várias semanas, tendo ontem superado pela primeira vez os 200. O Governo declarou um novo confinamento. A diferença é que já ninguém parece assustado. Esta é a nova normalidade e, apesar de os hospitais estarem cheios, as praias, as ruas e os jardins também estão. As palmas batidas à janela como homenagem aos profissionais de saúde parecem hoje fazer parte de um passado longínquo e os relatos por eles agora publicados nas redes sociais aparentam ser ignorados.

Relaxamento ou saturação? Se, por um lado, a população está já familiarizada com o vírus e, por isso, mais relaxada, a verdade é que existem também muitos a quem o segundo confinamento pode afetar ainda mais do que o primeiro. O cansaço provocado pelos dez meses de pandemia e a ansiedade por se conseguir ver uma luz ao fundo do túnel parecem aumentar exponencialmente de dia para dia.

Quem realça esta dicotomia é também Beatriz Lourenço. Apesar de achar que o impacto deste segundo confinamento trará consequências imprevisíveis, afirma que “o facto de já termos passado por isto no ano passado faz com que tenhamos desenvolvido estratégias para gerir melhor o stresse durante o confinamento”. No entanto, “não querendo ser pessimista”, continua a psiquiatra, “as pessoas já estão muito saturadas da pandemia, é algo que se arrasta há muito tempo”. O peso de enfrentar a pandemia há quase um ano “não existia no primeiro confinamento e pode trazer uma maior dificuldade em lidar com estas medidas propostas e piorar o impacto”.

Manter Rotinas Para que a sanidade continue a ter lugar nas vidas de cada um, a psiquiatra sugere várias coisas, sendo a principal a manutenção das rotinas já existentes. Se o habitual ao ir trabalhar é acordar às oito horas, convém que se continue, mesmo em teletrabalho, a fazer o mesmo. Outro conselho que Beatriz Lourenço dá é que se diferencie o tempo e o espaço dedicado ao trabalho daquele dedicado à vida privada. “Acaba por haver uma grande dificuldade em distinguir o tempo e o espaço laboral e pessoal”, afirma. Quando não se faz esta distinção, as pessoas começam a dispersar-se e usar as suas horas livres para trabalhar e vice-versa. A junção destas duas esferas que estão habitualmente separadas pode ser a causadora de muita ansiedade e dores de cabeça. Para prevenir, o melhor é manter o horário de trabalho ou de estudo igual àquele que tinha quando em regime presencial. O espaço de trabalho também deve ser diferente do de lazer. Se não há a possibilidade de ter uma divisão para tal, pode-se sempre optar por ter uma mesa específica ou arrumar e desarrumar.

Mauro Paulino assume que a situação pode agora tornar-se mais complicada. O psicólogo relembra que, no ano passado, a Organização Mundial da Saúde começou inclusivamente a usar o termo fadiga pandémica para se referir ao mal-estar psicológico causado pelo confinamento e pelas restrições gerais que foram impostas à população como medidas de proteção. Para que os impactos não sejam tão negativos, os conselhos dos especialistas devem ser seguidos.