O que sabemos ao certo sobre a natureza humana? O que há para além de conjeturas assombradas por mitos, histórias e relatos que se ligam desde tempos imemoriais, testemunhos abonatórios contrapostos a acusações escabrosas, numa espécie de disputa eterna por essa indefinível coisa a que chamam a alma? A própria Igreja Católica ao longo dos séculos traduziu esse conflito entre extremos, assumindo um papel benévolo em tantos aspetos e noutros tenebroso, sendo capaz de guiar os melhores anjos da nossa natureza e de exorcizar demónios. Noutras alturas, pareceu representar a podridão infernal que faz pensar que Deus virou costas à sua criação.
Curiosamente, foi da Igreja que veio, no século XVII, uma orientação espantosa no sentido de nos impormos a dúvida como bordão. Assim, como lembra o historiador italiano Carlo Ginzburg, “na canonização de uma pessoa, havia a figura do advogado do diabo, cuja tarefa consistia em formular objeções de maneira a levantar dificuldades aos defensores da beatificação da pessoa em causa, pondo à prova o caráter legítimo e acertado dessa canonização”. Ginzburg socorreu-se desta figura no seu trabalho, definindo-se à sua luz, e na entrevista que deu ao mais recente número da revista “Electra”, defende que “é preciso introjectar a figura do advogado do diabo”, mantendo continuamente um diálogo com ele com vista a combater o nosso narcisismo, colocando “questões difíceis, insidiosas, inquietantes”.
Paradoxalmente, aquilo que hoje parece estar em falta é quem faça o papel oposto, o de advogado do homem, quem o defenda contra um constante acusatório, um ambiente recriminador e que tem vindo a consolidar-se na cultura popular, e isto está patente na generalização de uma má fé que liga todos os males na sociedade às suas supostas tendências. Nos últimos anos, esse advogado tem emergido numa compreensão mais profunda das suas motivações, numa série de análises históricas e ensaios que têm tentado interpor recursos para tribunais superiores, de forma a que sejam revistas condenações apressadas, penas duríssimas, toda uma jurisprudência que já encara o homem como um ser predisposto a incorrer nos piores vícios.
Rutger Bregman, um historiador holandês que tem agitado as águas e desafiado uma série de premissas ideológicas que nos habituámos a acatar sem contestação, e que, assim, condicionam e constrangem o debate à volta de questões fundamentais como a desigualdade económica e a pobreza, tem ganho protagonismo ao defender medidas como o rendimento universal garantido, a semana de trabalho de apenas 15 horas e uma política de abertura das fronteiras a nível global. Autor do livro “Humankind – A Hopeful History”, publicado em 2020, questionou estas presunções, pondo em causa o pessimismo antropológico que tem ganho terreno nos últimos séculos, notando que a cultura ocidental tem sido excessivamente permeável à noção de que os humanos são criaturas egoístas. “Essa imagem cínica da humanidade tem sido proclamada por filmes e romances, livros de história e estudos científicos. Mas nos últimos vinte anos algo de extraordinário tem acontecido. Cientistas espalhados por todo o mundo têm assumido uma perspetiva mais esperançosa da humanidade.”
Bregman adianta que esta viragem está ainda num momento um tanto precoce, de tal modo que muitos cientistas em diferentes campos não estão sequer cientes da complementaridade das suas pesquisas, escapando-lhes o enredo mais vasto que os liga.
“Quando comecei a escrever um livro sobre esta atitude mais esperançada, soube que iria ter de confrontar uma história em particular. Esta desenrolou-se numa ilha deserta algures no Pacífico. Um avião tinha-se despenhado e os únicos sobreviventes eram um grupo de miúdos de liceu britânicos que não podiam acreditar na sorte que haviam tido”, diz Bregman, acrescentando que, depois do desastre, aqueles adolescentes deram por si num cenário paradisíaco: Nada senão a vastidão de uma praia a perder de vista. E sem a vigilância de adultos para impor-lhes qualquer tipo de restrições.
O artigo de Bregman, publicado no The Guardian em maio do ano passado com o título “O verdadeiro Senhor das Moscas: o que aconteceu quando seis rapazes ficaram isolados numa ilha por 15 meses”, é um excerto adaptado do seu livro, e compara a ação do romance de William Golding com um incidente com semelhanças gritantes e que ocorreu em 1965, quando seis adolescentes, aborrecidos de morte com as suas vidas num colégio interno na nação do Pacífico chamada Tonga, roubaram um barco de pesca e lançaram-se à aventura para logo se verem a lutar pela vida, engolidos por uma tempestade gigantesca que desfez o barco e os deixou à deriva por oito dias no mar, antes de darem à costa de uma remota e deserta ilha selvagem.
Depois de oito dias sem comida nem água, era de noite quando a ilha se pôs diante deles. E se estavam desesperados por um milagre, a primeira coisa que fizeram foi rezar, agradecer a Deus. Isto contou Sione Filipe Totau, um dos sobreviventes, ao mesmo jornal, dias depois, quando o artigo se tornou viral. Depois de rezarem, caçaram umas aves marinhas que andavam por ali, beberam-lhes o sangue e os ovos para acalmarem a sede. Terão parecido uns selvagens. Logo depois, desfaleceram e só acordaram na manhã seguinte.
Bregman tinha já entrevistado Totau, e no seu artigo focou-se nos aspetos positivos desta história de sobrevivência, nomeadamente na capacidade de os rapazes cooperarem uns com os outros, estabelecendo uma comunidade responsável que lhes permitiu sobreviver ao longo de mais de um ano na ilha. Mas ainda antes de nos falar deste caso verídico, Bregman remete-nos para o seu paralelo ficcional, o célebre romance que marcou a estreia de William Golding.
A saga para desmontar um clássico
Até então apenas tinha publicado um volume de poemas, e décadas mais tarde viria a ser galardoado com o Nobel da Literatura em 1983. Em “O Senhor das Moscas”, tudo vai bem encaminhado depois do avião se despenhar. Logo no primeiro dia os miúdos instituem uma espécie de democracia. Um deles, Ralph, é eleito o líder. Era o candidato natural, pelas suas capacidades atléticas, carisma e beleza, e traça um plano bastante simples: 1) Manter as coisas leves, divertirem-se. 2) Sobreviverem. 3) Irem fazendo sinais de fumo para tentar alertar navios que por ali passassem.
O primeiro ponto é seguido à risca, os outros nem tanto. Mais empenhados em gozarem à fartazana a liberdade recém-conquistada, os rapazes estão demasiado entretidos a lambuzarem-se com as iguarias que vão encontrando na ilha e em esgotar a voragem aventureira que toma conta das suas brincadeiras, e não estavam para se maçar com a tarefa de vigiar a fogueira.
Bregman resume o enredo, dizendo-nos que não demorará muito para que os miúdos comecem a aprofundar as suas incursões no delírio, pintando as caras, desfazendo-se das roupas, e deixando-se acirrar pela urgência de alguns comportamentos agressivos, beliscando-se, trocando golpes, mordendo-se. Quando, por fim, um oficial da marinha britânica dá à costa, a ilha está imersa num ambiente desolador, o qual não podia estar mais longe do quadro que geralmente se pinta da infância. Três dos miúdos estão mortos, e perante isto o oficial exprime a incredulidade dos leitores, ao proferir estas palavras: “Aquilo que esperaria de um grupo de rapazes ingleses é que fossem capazes de nos oferecer uma espetáculo mais decente da nossa condição do que este.” Diante do olhar incrédulo do adulto, Ralph desfaz-se em lágrimas, e Goldind diz-nos que ele “chorava o fim da inocência”, e, ao mesmo, chorava por ter sido tomado pelas “trevas no coração dos homens”.
Filho de um professor, Golding foi também ele professor de alunos do primário. Tinha estudado ciências naturais, e na II Guerra Mundial serviu na marinha britânica. A experiência marcou-o profundamente, tendo sido uma das vozes que se destacou no ajuste de contas com os tenebrosos aspetos que foram revelados sobre a humanidade no rescaldo da guerra. E deu testemunho do seu profundo desencanto ao afirmar que “qualquer pessoa que tenha vivido esses terríveis acontecimentos sem entender que o homem produz o mal como a abelha produz o mel teria de estar cega ou louca”.
Bregman lembra que, com a sua primeira incursão no romance, Golding parece ter tocado o nervo da consciência que se impunha à medida que o mundo era obrigado a confrontar-se com o terror vivido por milhões nos campos de concentração nazis. O livro vendeu dezenas de milhões de exemplares, transformando-se num clássico instantâneo, merecendo traduções em mais de 30 idiomas. No momento seguinte, Bregman recorda o choque que o livro lhe provocou na adolescência, e como o deixou imensamente desencantado com os homens. Diz também que, na altura, nem questionou a perspetiva de Golding sobre a natureza humana. Só mais tarde, numa dessas clássicas inversões que surgem como epifanias, se deu conta de que talvez o motivo do pessimismo de Golding estivesse inscrito nos factos da sua própria vida. Afinal, como veio a descobrir mais tarde, Golding era um indivíduo bastante solitário e infeliz, um alcoólico propenso a estados depressivos. Assim, num assomo de ingenuidade quase comovente, Bregman resolve a questão sugerindo que o problema não estava na realidade que o outro testemunhou, mas no olhar já por si lacerado, o de um escritor que às tantas se deu conta de que não precisava de procurar fora de si os elementos que lhe permitam extrapolar e até perceber o que levou os nazis a fazerem o que fizeram. Ao contrário da maioria dos pensadores, Golding teve a coragem de reconhecer que entendia como se chega ao mal absoluto, “porque também eu sinto dentro de mim esse terror à espreita de uma oportunidade”.
Para Bregman esta é a chave, uma espécie de prova que iliba a humanidade. “O Senhor das Moscas” não era uma reflexão sobre a alma humana, mas sobre essa mosca que Golding sentia a raspar na sua alma, essa “triste consciência” que o levou a virar contra si mesmo o dedo acusador em vez de fazer, como tantos, essa fita que dura até hoje, a de inúmeros pensadores que teatralizam a sua incompreensão e se emocionam com a sua inocência, encarando Auschwitz como uma espécie de anomalia histórica.
Mas Bregman não se contenta em apontar o subjetivismo de Golding e vai mais fundo, lançando-se numa busca por uma versão alternativa e enraizada na própria realidade, a qual possa contestar a visão desencantada de “O Senhor das Moscas”. Depois de ter encontrado uma referência na internet aos náufragos daquele reino polinésio que tinham ficado presos numa ilha deserta, e sobrevivido graças a um pacto de manter a coesão da sua pequena tribo de seis não se deixando dividir com querelas e descer ao inferno pelas escadas do rancor, acabou por dar com uma antiga edição de um jornal australiano que relatava a aventura vivida pelos adolescentes tonganos. A notícia era de 6 de outubro de 1966, e dava conta de que os miúdos tinham sido resgatados três semanas antes da ilha rochosa de Ata, a sul de Tonga, por um comandante australiano. Entretanto, o comandante estava a gozar os seus quinze minutos de fama, e tinha conseguido que um canal de televisão local filmasse uma espécie de documentário reencenando a aventura dos rapazes e o seu salvamento.
Bregman não demorou a chegar à fala com o capitão Peter Warner, ele mesmo um personagem muitíssimo colorido, que cativa de tal modo o historiador holandês que este lhe concede um parêntesis que se arrasta por alguns parágrafos, antes de regressarmos à aventura vivida pelos rapazes na minúscula ilha. E é Warner quem conta que esta chegou a estar habitada por uma população nativa até 1863, quando um navio negreiro surgiu no horizonte e acabou por acostar para, dias depois, partir de novo levando os nativos como carga. Depois disso, a ilha passou a ser apenas outra dessas referências para lugares vagamente amaldiçoados e ignorados pelos mapas, ficando praticamente esquecida.
Dono de uma frota pesqueira na Tasmânia, Peter Warner era filho de um dos homens mais poderosos da Austrália, o dono do império Electronic Industries. Depois de, aos 17 anos, ter escapado ao seu destino como herdeiro, entregando a juventude ao mar, aos golpes e deslumbramentos que este oferece, integrando tripulações e viajando entre Hong Kong e Estocolmo, Xangai e São Petersburgo, acabou por regressar a casa e acatar o seu destino. Aquela frota foi a desculpa para continuar a molhar em água salgada a mal cicatrizada juventude, e foi uma dessas viagens que o levou a Tonga, no inverno de 1966.
A história da reconciliação com a humanidade
Num pequeno desvio deu com a ilha, e, ao espreitar pelos binóculos, reparou numa série de manchas, pequenas zonas ardidas nos penhascos enverdecidos. Explicou a Bregman que nos trópicos é raro os fogos desatarem espontaneamente. Isto fez com que se detivesse num olhar mais demorado e foi então que viu um miúdo. Nu, cabelo pela altura dos ombros. Uma velha estampa do rapaz selvagem a lançar-se de uma fraga para o mar. Logo foi seguido no mergulho por outros rapazes. Os gritos galopavam as águas e faziam-se ouvir à distância. Estavam em êxtase e não demorou muito para que o primeiro subisse a bordo, apresentando-se num inglês perfeito, apenas atrapalhado pelas lágrimas de alegria: “Chamo-me Stephen. Somos seis e estamos aqui presos há uns quinze meses.”
Quando Peter contactou pelo rádio a capital de Tonga, Nuku‘alofa, para dizer que tinha encontrado os seis rapazes, do outro lado parece ter havido um soluço e um interregno de 20 minutos após a mensagem ter sido recebida, até que a pessoa do outro lado voltou: “Encontrou-os! Estes miúdos tinham sido dados como mortos. Até se realizaram os funerais. Se são eles, é um milagre!”
Já com 90 anos quando Bregman chegou até ele, Peter revelou-se um prodigioso narrador, com a memória exercitada de tanto recontar as peripécias em verso de epopeia, preservada à espera que lhe aparecesse algum Homero, ou um historiador popular e motivado para revestir esta narrativa do tipo de significado e simbologia que afectam os mitos.
Tudo o que Peter contou foi depois confirmado quando Bregman chegou à fala com Totau, mais conhecido como Mano. Tinha 15 anos na altura do resgate, e estava agora perto dos 70. Além dele, os outros protagonistas daquela aventura que começou em junho de 1965, eram Sione, Stephen, Kolo, David e Luke. Todos eles colegas num rígido colégio interno católico em Nuku‘alofa. O mais velho tinha 16, e o mais novo tinha 13, e o que os unia foi o que os levou a magicar um plano de evasão digno de prisioneiros de uma colónia penal e a rasparem-se dali. A ideia era seguirem em direção às Fiji, a mais de 800 quilómetros de distância, ou mesmo até à Nova Zelândia.
Os miúdos não estavam a brincar, não era um amuo nem uma simples birra para chamar a atenção dos adultos. Queriam mesmo fazer honrar as lendas, os heróis antigos, ir às fuças aos deuses. Mas os deuses, como se sabe, tendem a ser temperamentais, e resolveram divertir-se e ver como é que os miúdos se davam numa robinsonada.
O plano de fuga já indiciava o nervosismo nenhum com que se lançaram ao mar. Não andaram muito tempo a namorar a ideia, mesma para que esta não arranjasse competências aterradoras e viesse acagaçá-los. Havia lá um pescador por quem nenhum deles nutria grandes simpatias, e, já que precisavam de um barco, decidiram que seria um dos dele. Encheram dois sacos de bananas, só para calar o estômago, alguns cocos para se hidratarem e protegerem das queimaduras solares. Levavam ainda um pequeno luzeiro a gás, e era tudo. Depois de serem salvos, ao recontarem a aventura, riam-se de não lhes ter passado pela cabeça que talvez fosse boa ideia levarem um mapa e uma bússola.
Quando zarparam, o mar estava calmíssimo, como se a preparar uma emboscada, atraindo os miúdos a si. Estavam de tal modo confiantes que se deixaram dormir sem que ninguém ficasse de vigia. Poucas horas depois, acordavam já com a tempestade a rir-se deles, e quando se lembraram de içar a vela, os ventos rasgaram-na sem clemência. Depois, como por maldade, as ondas sacudiram o barco até desfazerem o leme. Nos oito dias que andaram à deriva, foram tentando pescar sem grande sucesso. Não tinham o que comer, e só tinham o mínimo para aliviar a sede, dividindo irmãmente a pouca água da chuva que apanhavam nas cascas de coco, o que dava para beberem um golo pela manhã e outro à noite.
No oitavo dia afigurou-se-lhes no horizonte o tão ansiado milagre. Algum dos deuses terá intercedido por eles junto do concílio. Não era bem a ilha que faz as delícias da imaginação citadina, não era o típico postal paradisíaco, com as palmeiras a agitarem os cabelos sobre areias dessas que, se o vento puxar, são fáceis, deixam-se levar e dançam. Era antes uma massa rochosa projetando-se a uma altura de mais de 300 metros sobre o nível das águas. Considerada hoje um calhau inóspito, segundo registou o Capitão Peter Warner nas suas memórias, “quando lá chegámos, os miúdos tinham estabelecido uma pequena comuna, com uma horta, troncos de árvores escavados onde recolhiam a água das chuvas, um ginásio com os pesos mais variados e curiosos, um campo de badminton, um galinheiro e uma fogueira permanente, tudo resultado de árduo trabalho manual, com a ajuda de uma velha faca e muita determinação”.
Enquanto os ingleses em “O Senhor das Moscas” se engalfinham por causa do fogo, nesta versão da vida real os tonganeses cuidaram das chamas para que não lhes faltassem, e mantiveram-nas vivas por mais de um ano. E os contrastes não se ficam por aqui. Totau diz que, como era de esperar, tratando-se de um grupo de seis adolescentes prisioneiros numa situação assustadora, houve bastantes desentendimentos, mas houve também a consciência de que a paz era um bem essencial aos esforços de sobrevivência. A solução que arranjaram foi simples: sempre que ensarilhavam uns com os outros, impunham-se períodos de isolamento. A solidão não só é um bálsamo como tende a fazer sentir falta de um eco que não seja esse ricochete das ideias trancadas num juízo ilhado.
Quanto às tarefas, dividiram-se em turnos, equipas de dois, e iam-se revezando entre tratar da horta, cozinhar e manter a vigilância. Mas também o espírito exigia cultivo, para que não esmorecesse. Assim, os dias começavam com cantorias, seguidas de preces. Kolo improvisou uma viola de um pedaço de madeira flutuante, meia casca de coco e seis fios de aço resgatados do barco que os levara até ali. Bregman diz que Peter guarda até hoje a viola como uma das suas mais estimadas posses. O grande drama que enfrentaram foi o verão, já que raramente chovia e os miúdos quase enlouqueceram com a sede. A certa altura terão tentado construir uma jangada para deixarem a ilha, mas a embarcação não resistiu ao impacto das ondas.
Outro drama que viveram na ilha ocorreu quando Stephen escorregou certa vez, caiu de uma escarpa e fracturou a perna. Os outros rapazes resgataram-no e imobilizaram-lhe a perna com paus e folhas. A perna acabaria por sarar na perfeição. E quando os rapazes foram resgatados, isto impressionou imensamente os médicos que os examinaram, isto e a musculatura que os rapazes tinham desenvolvido. Assim, se seria de esperar problemas relacionados com malnutrição, todos eles estavam nas melhores condições físicas. Inicialmente tinham sobrevivido à base de uma dieta de peixe, cocos, uma espécie de galinholas de quem bebiam o sangue e comiam a carne e ainda dos ovos de aves marinhas em que faziam um furo e chupavam as gemas e as claras sem desperdício. Depois, à medida que começaram a explorar a parte superior da ilha, deram com uma antiga cratera vulcânica onde tinham vivido os nativos um século antes. Foi ali que descobriram taro selvagem, bananas e galinhas que se vinham reproduzindo e prosperando desde que os nativos foram levados.
Resgatados num domingo, a 11 de setembro de 1966, a aventura dos rapazes não se ficou por ali, e à chegada a Nuku‘alofa as autoridades nem lhes deram tempo de desembarcarem para serem recebidos pelas famílias. Os seis foram detidos e levados para a cadeia. Porquê? Porque o pescador a quem tinham roubado o barco não se deixou comover com a história deles. Comprovando que a pouca estima que lhe tinham não era indevida, decidiu apresentar queixa pelo roubo.
Foi Peter quem os safou uma vez mais. Podia simplesmente ter pago ao pescador pelo barco roubado, coisa que acabou por fazer, mas quis primeiro ter dos miúdos a garantia de que iriam colaborar com uma produção televisiva que recriasse a aventura que viveram na ilha. Ficou com os direitos da história para o resto do mundo e vendeu ao Channel 7, em Sidney, os direitos para a difusão do filme na Austrália.
Os rapazes foram finalmente acolhidos pelas famílias em júbilo, numa cerimónia que reuniu toda a comunidade da ilha de Haʻafeva, ou seja, 900 pessoas. Peter foi proclamado herói nacional e recebido numa audiência pelo rei Taufa‘ahau Tupou IV. Este quis agradecer ao capitão pelo resgate dos seus seis súbditos, e perguntou-lhe se podia fazer alguma coisa por ele. O australiano não se fez rogado e pediu os direitos para pescar as lagostas nas águas de Tonga. O rei acedeu e Peter deixou por fim a empresa do pai, arranjou outro navio pesqueiro e deu aos seis rapazes a oportunidade de viverem a aventura que os fez fugir do colégio: contratou-os para integrarem a tripulação e cruzarem os mares à descoberta do mundo.
Bregman, por sua vez, aproveitou este balanço, garantindo que a moral da verdadeira história de “O Senhor das Moscas” versa sobre a amizade e a lealdade, e ilustra a força que descobrimos em nós quando somos capazes de confiar uns nos outros. Mas se ninguém lhe retira o mérito de ter descoberto uma história que oferece argumentos convincentes contra a tese de que os piores instintos do homem tendem a revelar-se em situações dramáticas e que fazem estalar essa fina camada de verniz que mantém a coesão social, o certo é que há muitas outras histórias verídicas que sustentam o pessimismo de Golding.
A natureza humana na calamidade
Às vezes o mal só precisa de um empurrão, e às vezes um sopro basta, alguém que organize os nossos piores instintos a seu favor. No magistral ensaio “Os Náufragos do Batávia”, Simon Leys diz-nos que “uma sociedade civilizada não é necessariamente uma sociedade que comporte uma proporção inferior de indivíduos criminosos e perversos (que é provavelmente mais ou menos constante em todos os agrupamentos humanos) – simplesmente, oferece-lhes menos oportunidades de manifestar e satisfazer as suas inclinações.” Nesta reflexão poderosa e inquietante, bastante poética também, Leys debruça-se sobre aquele que foi o destino dos passageiros do Batávia, orgulho da Companhia Holandesa das Ilhas Orientais, que, em 1629, “naufragou nos escolhos de um arquipélago de coral, a uns oitenta quilómetros das costas australianas”. A breve e incitante sinopse da edição portuguesa, publicada em 2003 pela Cotovia, recorda como “os trezentos sobreviventes que se salvaram a custo de afogamento, caíram nas mãos de um deles, um psicopata visionário, que, secundado por um punhado de acólitos, empreendeu o massacre metódico do grupo”. A nota acrescenta ainda que esta tragédia “acendeu a imaginação do público, mais ainda do que o naufrágio do Titanic o virá a fazer no século XX”.
O autor, um ilustre sinólogo belga que se fixou na Austrália em 1970 e cujo nome de batismo era Pierre Ryckmans, passou algumas semanas nas ilhas onde se deu o massacre, constatando que, não fosse a oportunidade que encontrou um deles para dar largas ao seu ânimo diabólico, testando os espíritos cuja perturbação interior se deixara virar do avesso para assim constituir a sua milícia infernal, os sobreviventes do naufrágio poderiam ter gozado “uma existência não desprovida de encanto”. Ou seja, entreter-se num ensaio edénico, encenando a nobreza das suas convicções. Mas, no fundo, é sempre uma minoria quem se impõe e rasga um caminho para a tragédia através de uma forma qualquer de idolatria, uma razão obscena. No fundo, se a natureza propende para uma certa benevolência, é preciso uma força drástica para produzir um desequilíbrio que tome o partido da monstruosidade. “Rodeados de monstros e de deuses”, escreveu Proust, “pouca tranquilidade conhecemos”.
Uma oportunidade como a de um naufrágio é como se ser lançado numa adolescência sem freio, em que é possível a um conjunto de pessoas reinventar a sociedade. Uma oportunidade destas canta e sopra a qualquer réstia de inocência e sonho que persista em nós, e Proust lembra que, com todos os erros que são feitos na adolescência, mesmo com o desejo que lhe sobrevem de abolir tantos gestos apaixonados e que vieram a provar-se descabidos neste mundo, a única coisa que “deveríamos lamentar é o facto de já não possuirmos a espontaneidade que nos fazia praticar esses gestos”. E acrescenta: “Mais tarde vemos as coisas de uma forma mais prática, em plena conformidade com o resto da sociedade, mas a adolescência é a única época em que aprendemos alguma coisa.”
Cada desgraça atira-nos para uma margem qualquer, ou cria, pelo menos, uma forma de suspensão. Assim, na sequência dos piores desastres, abre-se um processo de regeneração e reavaliação, uma oportunidade de os homens se fazerem uma promessa, a de recomeçar e desta vez fazer melhor, usarem a sua inteligência e criatividade para evitar a tirania e a degradação, o ódio, a violência ou a crueldade, mas também a ganância, a aviltante desigualdade e a pobreza. “Por um motivo qualquer, habituámo-nos às calamidades que infligimos a nós mesmos”, escreve o neurocientista Sebastian Dieguez num comentário a uma passagem de “A Peste”, de Albert Camus, no número 10 da “Electra”.
“Não deveríamos habituar-nos à nossa própria desgraça, mas costuma acontecer”, vinca. A passagem sobre a qual Dieguez se debruça é esta: “Nada é menos espetacular do que uma calamidade e, devido à sua duração, as grandes desgraças são monótonas.”
A alegoria política de Camus foi alvo de inúmeras referências durante a primeira vaga da pandemia de covid-19, gerando-se um culto em regime de formigueiro à sua volta, tendo sido alvo de um tráfico de citações avulsas como linha para coser apressadamente profecias banalmente sombrias ou esperançosas. E, nesses primeiros meses de euforia pandémica, o livro subiu aos tops dos mais vendidos em alguns países, mas não foram muito penetrantes as leituras feitas à luz deste novo enquadramento crítico que temos vivido. Dieguez consegue ir mais longe no seu breve comentário. Lembra que “somos criaturas em busca de um sentido que o mundo raramente fornece”, e, em resposta à crise que a ciência parece na eminência de dissipar, vindo assim socorrer-nos, por um lado, mas também levantar dos nossos ombros o peso de termos de redefinir o regime social posto em causa pela peste, este neurocientista diz-nos que o que é crucial na forma de lidar com estas “grandes desgraças” é quebrar a sua monotonia.
Assim, aquilo que se nos impõe, independentemente da duração destas desgraças, é tornarmos novamente a pestilência “sensacional”. Mas quem, pergunta Dieguez, se presta a essa tarefa? “A peste chegou para ficar, e de facto ‘nada é menos sensacional’ do que a realidade crua da miséria humana. Habituámo-nos a ela, ao ponto de já nem repararmos que existe.” Reconhecendo isto, o que é que poderia lançar-nos de volta naquela adolescência que se coloca perante o mundo e o apercebe nas suas arestas, nessas saliências e rugosidades que afligem uma pele ou consciência sensíveis? Dieguez lembra que a solução de Camus foi apresentada em “O Mito de Sísifo”, onde “o ‘herói absurdo’ ergue um punho de desprezo para o nada que o rodeia”.
Na leitura desta obra capital do existencialismo, o neurocientista diz-nos que a paixão pela vida deste herói “depende do seu desprezo, pois tem perfeita consciência de que terá de pagar o preço do negócio corrupto que aceitou”. E conclui: “Para abraçar a sua condição, uma pessoa tem inicialmente de encará-la como realmente é (e não é) e depois desprezá-la. Combater o absurdo com mais absurdo, é assim.”
Aos 22 anos, quem também se debatia com esta questão e a colocava em termos similares era Emil Cioran, tendo escrito em 1933, quase uma década antes de Camus ter publicado a sua obra-prima, o livro em que rompia com a “inanidade da filosofia”. Em “Nos Cumes do Desespero” serviu-se da “lucidez vertiginosa” das suas noites insones que o levavam a passear pelas ruas vazias de Sibiu, na Transilvânia, e foi nessas horas de vigília que lhe surgiram as meditações angustiadas dessa obra cheia de ira juvenil, um livro que foi publicado pela primeira vez entre nós há semanas, numa edição das Edições70, com tradução de Jorge Melícias. Às tantas, num breve capítulo com o título “A Paixão do Absurdo”, anota isto: “Quando todos os ideais correntes, sejam eles de ordem moral, estética, religiosa, social ou outra, não conseguem imprimir à vida direcção e finalidade, como preservá-la ainda do nada? Não podemos aí chegar senão agarrando-nos ao absurdo e à inutilidade absoluta, a esse nada intrinsecamente inconsistente, mas cuja ficção é capaz de criar a ilusão da vida.”
Mais à frente, ainda acrescenta: “Se podemos reencontrar amor e serenidade, é através do heroísmo, não da inconsciência. Qualquer existência que não encerre uma grande loucura permanece desprovida de valor.”
Seremos mesmo bombas antissociais?
Na epígrafe ao seu ensaio, Simon Leys relembra a frase que parece, por si só, ter imortalizado Edmund Burke: “tudo o que é preciso para que o mal triunfe, é que as pessoas de bem não façam nada”. Por outro lado, existe atualmente uma pressão fortíssima da parte do ambiente cultural e, ainda mais, dos ciclos noticiosos, uma espécie de preconceito epocal, esse que Bregman denuncia, e que nos diz que estamos todos fechados uns para os outros, irremediavelmente sós, e que ninguém virá em nosso socorro nos piores momentos. Ora, esta noção mereceu já um exame severo por parte da escritora norte-americana Rebecca Solnit. No livro “A Paradise Built in Hell”, ela pôs à prova esta ideia, estudando uma série de eventos catastróficos e a resposta que isso desencadeou da parte das pessoas, focando especificamente cinco casos: o terramoto e os fogos em São Francisco em 1906, a explosão em Halifax de um navio de carga francês carregado de munições em 1917, o terramoto na Cidade do México em 1985, os ataques terroristas do 11 de Setembro e as horas de terror vividas na baixa de Manhattan e o dilúvio em Nova Orleães provocado pelo Furacão Katrina.
Em cada um destes casos, Solnit explora uma espécie de emoção arrebatadora que domina as pessoas e que elas mesmas descrevem como profundamente positiva e mais forte do que a própria ideia de felicidade, uma espécie de vislumbre daquilo que o mundo poderia ser se este sentido de propósito e de proximidade em momentos dramáticos fossem alargados para lá do contexto das calamidades. Qualquer das crises abordadas serviu como um amplo laboratório para aquilo que os sobreviventes entenderam tratar-se de uma provisória sociedade utópica. Solnit ilustra com uma série de casos de altruísmo, coragem e compaixão esse sentimento que, no meio de um turbilhão selvagem de acontecimentos, originou uma avassaladora resposta social, não faltando heróis anónimos que se mostraram dispostos a colocar-se em risco para ir em auxílio de um estranho como se fora um irmão.
Ao mesmo tempo, a autora defende que, nestas ocasiões, os media parecem servir-se recorrentemente de um guião que enquadra estes momentos desesperados como alturas em que se instala o caos e não falta quem se aproveite para tentar beneficiar ou degradar ainda mais as coisas, e, deste modo, reforçam-se os preconceitos da classe que detêm o poder. De algum modo, em vez de a representação destas situações de crise ou de catástrofe ecoar esse sentido de entreajuda social, o que é destacado são exemplos de atos recrimináveis e abusos, que alimentam a noção defendida pelo autor de “Leviatã”, Thomas Hobbes, para quem “todos nós somos bombas antissociais que se deixam ativar com um pouco de pressão” e que estamos só à espera de uma desculpa para ceder aos nossos piores instintos, instaurando uma “guerra de todos contra todos”.
Munida de um empirismo que se insurge contra estas teorias nefastas, Solnit demonstra como foi precisamente quando as instituições públicas e as autoridades falharam que eclodiram estas sociedades que reforçam os laços de vizinhança e de cooperação, em que os indivíduos revelam um ânimo e um voluntarismo espantosos, agindo em conjunto para resgatar e socorrer aqueles que estão em risco. E Solnit vai mais longe e mostra como, em muitos casos, no rescaldo das grandes calamidades as ameaças que acabam por atrapalhar ou mesmo agravar, os danos vêm não da anarquia ou dos atos de violência e pilhagem, mas das más decisões baseadas em receios infundados e crenças nefastas sobre a natureza humana.
Solnit cunhou assim o termo “pânico de elite” e, defende que há uma série persistente de rumores e mitos que se espalham e são propagados pelo regime mediático o qual, por regra, encena sempre a mesma visão apocalíptica em que, perante grandes calamidades, de súbito a bondade é vista como uma fraqueza, e se instala o cada um por si mesmo, à medida que as pessoas arrancam o açaime social e dão largas a um regime de terror desenfreado que vê saltar para as ruas todo o catálogo de formas de predação, entre violações, pilhagens e saque das lojas, não faltando também as hordas de minorias que, nos EUA, seguindo a típica fita de terror de Hollywood, troca os zombies por multidões de negros ameaçando as propriedades de brancos. Solnit desenterra, assim, de entre as ruínas, provas enfáticas de que a resposta dos indivíduos em momentos críticos é esmagadoramente definida pelo sacrifício em nome de terceiros, por pessoas que, de súbito, deixam de se tratar como estranhos e agem movidos por um furor bem-querente, afirmando a vida, e que contraria a ideia de que o maior dos perigos na desproteção a que somos sujeitos na sequência de grandes desastres vem dessa forma de inferno oportunista em que o homem se revela o lobo do próprio homem.