“Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suícido”. Assim principia o ensaio “O Mito de Sísifo”, de Albert Camus, uma longa reflexão sobre o sentimento do absurdo, o “divórcio entre o homem e a sua vida, entre o actor e o seu cenário”, que considera directamente ligado ao suicídio, “a aspiração ao nada”. Servindo-se da personagem mítica, condenada para a eternidade a carregar, uma e outra vez, montanha acima uma pedra que, no fim da subida, há-de rolar montanha abaixo, o ensaio reflecte sobre o heroísmo de existir esmagado pela futilidade da existência. Camus imagina para Sísifo a paz que só o conhecimento da verdade confere, a percepção de que é possível "refutar tudo neste mundo que me rodeia, me choca ou me arrebata, excepto este caos, este acaso-rei e esta equivalência divina que nasce da anarquia”, de que é possível desaprender a esperança e reencontrar, diante da insensatez do mundo “o corpo, a ternura, a criação, a acção, a nobreza humana”. Mas Sísifo é um homem eterno, que não possui sequer a liberdade de se findar. Nunca lhe soçobrariam as forças ao abandonar “a estrada árida e ressequida do esforço lúcido, que agora desemboca na vida quotidiana”. Sísifo nunca se sentou na mesa da cozinha e pensou em matar-se.
“Na afeição do homem pela vida há qualquer coisa de mais forte que todas as misérias do mundo” e qualquer desculpa pode servir de justificação para lhe dar continuidade. Num velho álbum de fotografias, Artur encontra a sua – um rosto antigo, um fantasma no dia do seu casamento, um desconhecido a quem não consegue dar nome. Decide voltar à terra natal para lhe descobrir a identidade, como quem inverte o andamento do relógio, animado por um gesto sonhado, o toque desse estranho que lhe transmitiu “uma paz tão absoluta, uma quietação tão inesperada, que o tornava duplamente ansioso.” Este é o mote de uma saga à escala da pequenez de Artur, o senescente protagonista, enredado nas malhas cinzentas da rotina e de cujo abraço só vê uma saída – “uma morte sem contratempos, metodologias, dores ou incómodos” – e que inventa uma desculpa final, uma demanda que lhe adie o fim.
Artur sofre de um morno descontentamento, o corpo a amolecer lentamente pelo repetido malhar dos dias. Na plataforma do metro imagina que reúne a vontade para se lançar para a frente da composição em andamento, no parque vê-se a “flutuar serenamente à tona daquela água, a ondulação acariciando a carne verde e violeta, o alvo cabelo emaranhado e as órbitas desocupadas como refúgio de pequenas flores e girinos, à sua volta um séquito refulgente de peixes gordos.”
A saga é bater às portas do passado, um recenseador que vem atrasado. É nestes encontros, que funcionam como micro-narrativas dentro do livro, que Cláudia Andrade vai deslaçando Artur pelos seus gestos e memórias. Sentado na sala de um velho primo encontra a familiaridade desaparecida como “um pequeno e quase palpável cadáver jacente por sobre a mesinha baixa da sala, que Artur velava com consternação e horror. A possibilidade de o primo se sentir saudoso da graça de lhe prender a cabeça por debaixo do braço para o obrigar a cheirar-lhe o sovaco acometeu-lhe por várias vezes o espírito”. Numa festa infantil, aniversário da filha de um outro primo, forçado a explicar o porquê de não ter filhos responde que os quis poupar “Ao nascimento, ao desmame, ao sarampo, aos exames escolares, aos desamores, à escravidão do salário, às coisas boas que acabam e às coisas que acontecem. E tudo isto para que depois a morte o devolvesse ao sítio, seja ele qual for, onde eu inicialmente o teria ido incomodar”.
Artur vai descobrindo as migalhas que o estranho deixou para trás. Numa visita a uma paixão antiga descobre-lhe um sotaque, no lar onde reside agora um primo descobre que este se encontrou com o fura-casamentos num restaurante à beira-mar no qual seria cliente habitual. Uma geografia por fim e outra viagem.
A demanda solitária de Artur soma-se à de Ivan, a quem confessa em voz alta: “Ando a pensar matar-me”. Ivan, personagem onírica cuja existência no mundo material fica por resolver, fareja em Artur uma criatura solitária e consumida de angústia, perfeita para consumar “a sua visão de esplendor”. Este anjo da morte feito guia espiritual oferece “orientação e companhia para as criaturas perdidas na sua viagem de volta ao ventre” recebendo em troca “o inestimável prazer estético de uma supernova intencional pela beleza pura desse fogo-de-artifício” que é a entrega à morte. Deseja “a contemplação beatífica da poalha doirada que fica a pairar após cada descolagem”.
É em torno desta personagem que se escrevem as melhores páginas deste livro. Num monólogo interior, Ivan discorre sobre as dificuldades do ofício, lances falhados porque “mesmo os mais destros no dom da angústia, repletos de desgostos idiotas e vigílias atrozes, dizendo-se desejosos de boicotar o êmbolo dentro do qual pulsa o pavor do mundo, mostram-se impulsivamente relutantes, apegam-se aos de repente sacros recantos do corpo que habitam.”
Cláudia Andrade, que com o seu livro anterior, a colecção de contos “Quartos de Final e Outras Histórias”, venceu o Prémio para "Melhor livro de Ficção Narrativa" SPA 2020, regressa a meio deste romance a esse formato, um texto escrito por Ivan sobre as dúvidas que assolam um carrasco diante de um pescoço que tinha o dever de cortar. Este trecho, que parece até desconjuntado do resto da narrativa do livro, demonstra a real singularidade da voz desta autora, essa atenção que partilha com Ivan, o dom da “dolorosa e misteriosa ternura que o atacava à visão de um gesto aparentemente trivial de um desconhecido aparentemente vulgar, um acontecimentozinho frágil que ele sabia sem precedentes e irrepetível no continnum do tempo”, um olho sagaz que lhe permite encontrar nos gestos banais as frases certas que os encenem.
Artur é um desses que escapa às garras de Ivan, como este diria “subitamente cobardes, desconfiam de algum propósito obscuro da morte que não a intenção clara de lhes restituir a liberdade, perdida no momento em que chegaram a este mundo aos berros”. A cerimónia que Ivan imaginou para Artur, uma reinvenção da marcha da barca de Caronte, em que Artur haveria de se entregar à água ao invés de pousar na margem de lá do Estige, não chega a acontecer. Artur esconde o óbolo que é devido ao barqueiro e aprende na água que deveria ter sido o seu cadafalso “a suportar tudo o resto com essa facilidade aquática que iria aprender, comportar assim as dores, as horas, a tristeza vaga dos velhos álbuns”. Ao invés de embarcar, Artur retoma a sua vida a nado. Nada mudou, excepto a piscina onde poderá esperar em paz o tempo que lhe sobra até não ter outra alternativa que não estender ao barqueiro esse fugidio óbolo que lhe pague a passagem para o lado de lá.
O gesto de apaziguamento, a paz onírica que o toque do homem desconhecido prometia, nunca chegou. A busca por ele foi somente a desculpa que foi adiando o gesto de morrer até Artur encontrar motivo para dele abdicar. A certa altura Artur julga mesmo tê-lo encontrado na rua, roga-lhe “fale-me, toque-me, salve-me”, mas nenhuma graça recebe que não uma nota. Victor, é esse o nome do fura-casamentos, revela-se apenas a Ivan. A sua aparição recupera para esta história a célebre imagem do anjo bom e do anjo mau, sentados um em cada ombro, sussurrando ao ouvido. Ao contrário do anjo mau que é Ivan, Victor possui o dom de libertar os indivíduos “prestes a ceder sob o peso da infelicidade, corroídos por dentro por uma proliferação infinita de angústias tacteantes” dos “embustes injustificados, dos pensamentos funestos, das decisões irreflectidas, ensinar-lhes a simplicidade e depois levá-los, com ternura infinita, à reentrada triunfal na felicidade, na vida.”
Anjo bom e anjo mau, nada mais que o enfrentamento da ideia de viver ou morrer, despenham-se juntos penhasco abaixo, que morram as abstracções, que continue a vidinha. Artur sonha a queda, de volta à sua cama de casado. Talvez valha a pena estar vivo, mesmo diante da impotência e do enferrujar do corpo e da mente, é vitória bastante ir adiando a morte, conter-lhe a chegada, diminuir-lhe a torrente até que a sua infiltração seja um lento gotejo que num dia longínquo faça desabar o corpo. “É preciso imaginar Sísifo feliz”.