Numa obra que explode em todos os sentidos, com um fôlego comparável apenas a um desses animais de grande porte, Gonçalo M. Tavares volta mais de uma década depois ao conjunto de livros negros a que chamou de “O Reino” – e que agora já não são negros, infelizmente, perdendo esse seu traço distintivo.
Há continuidades com os livros anteriores, sem dúvida: temas que vão surgindo aqui e ali, personagens que comparecem (como um certo Klump, que surge a dada altura deste “O Osso do Meio”), situações, como a do cavalo esventrado no meio da rua, uma linguagem cada vez mais despojada que já estava presente em “Aprender a Rezar na Era da Técnica”, um enredo cada vez mais lasso.
No entanto, a experiência de pensamento – mas também de escrita – que Gonçalo M. Tavares encena em “O Osso do Meio” parece encontrar um outro movimento, uma outra direcção: o desejo sexual, ambiguamente presente no título, não redutível ao corpo a corpo e ganhando dimensões diversas – encarado, portanto, tanto de forma literal como metafórica.
A carne, em primeiro lugar. Anterior ao corpo, descoberta pelo desejo, a carne é o corpo enquanto “material que se utiliza”. Kahnnak, talvez a personagem, das quatro que mapeiam este livro, que, pela sua violência, mais interesse tem, conhece bem esta dimensão: “com um olhar antigo, olhar que herdou dos lobos”, ele, no limite do desejo mata uma mulher logo no início do texto, quando descobre esse último momento, “depois de todas as camadas terem caído – as frases e os gestos elegantes -, quando a fome e a sobrevivência se transformam no único estado urgente dos homens”. O que ele descobre, aquém de qualquer convenção social, aquém de qualquer civilização ou progresso, é uma espécie de facto biológico puro – o termo biologia surge num momento-chave e o homem é visto como “alimentando-se, adormecendo, fornicando”; o corpo é aqui aquilo que só existe para matar ou ser morto.
“Kahnnak não segura a tempo as próprias mãos de modo a evitar o que elas fazem sem qualquer plano, numa ligação imediata a um prazer pouco recomendável entre humanos: as mãos apertam o pescoço da rapariga de saia levantada, deitada na cama, as mãos com força calma de início, mas a pouco e pouco aumentando a pressão.”
A metáfora que usa a dada altura é a da caça – “e se a percepção for colocada em instinto de caça, nenhum segredo resistirá ao apetite de conhecer” – e a presença do talho e da comida ao longo do livro vai no mesmo sentido, no de um mundo primordial, anterior à cidade, mundo da “floresta, cidade sem ordem, assustadora, criminosa”, sem linguagem, só grito, sobrevivência; matar ou ser morto. Surge logo com Kahnnak, com essas vísceras “capazes de levantar o asco às crianças mais distraídas”, como se Gonçalo M. Tavares nos mostrasse aqui esse universo ao mesmo tempo arcaico e actual que encontramos na cozinha: as mãos lidando tantas vezes com pedaços do que há bem pouco tempo eram corpos, como despojos de uma carnificina sem fim – mexendo, cortando, despedaçando, partindo ossos, ficando com bocados de carne nas mãos, sujas de sangue, ouvindo o som dos ossos a partir, sentido a resistência da carne, a força do braço e da faca a retalhar. Tudo isto, de facto, remete-nos para um outro tempo, ou melhor, faz irromper no nosso tempo uma memória que, muitas vezes, gostaríamos de esquecer.
Mas surge, igualmente, na última parte, com Vassliss Rânia – dividido em quatro partes, “O Osso do Meio” conta-nos a história de quatro personagens diferentes que se vão cruzando. E, aqui, a imagem a que Gonçalo M. Tavares recorre é a do talho – Rânia é talhante. Prazer, desejo, porque “um talho tem o cheiro verdadeiro do mundo”.
“O jovem Vassliss Rânia enfrenta a carne grossa e morta com o seu útil instrumento de corte; sem competição, o já gordo talhante Vassliss Rânia tem o rosto manchado de vermelho, e um ânimo maldoso faz com que o seu braço não pare e um certo prazer domine por completo o acto de cortar a carne de um animal”
É este prazer que encontramos em Kahnnak, é este prazer que toma por objecto Maria Llurbai – “era demasiado bela” – mas é também o mesmo prazer soturno que encontramos em Albert Mulder, “voyeur que ganhava afecto pelo que espiava”, vigiando, sem estes o saberem, os rapazes que se despiam num compartimento ao lado do consultório – “um golpe amoroso e mau, mau e amoroso”.
“Uma vez a velha puxou-a e levou-a a ver o que faziam dois homens a um barco que já não era útil: com pesados ferros partiam o barco aos pedaços, pancadas violentas que saíam subitamente; cada uma, apesar de repetidas, lançando uma surpresa no ar; pancadas fortíssimas sobre a madeira que aos poucos se desmanchava, se separava. E o que antes era uma forma evidente, útil, com um determinado sentido, com uma lógica humana: um barco – um elemento que a cidade reconhecida – em pouco tempo passou para algo disforme, pedaços apenas, coisas inúteis, fragmentos de madeira separados entre si”
Esta acção de desmanchar, de desfazer, de matar – que não anda muito distante do seu contrário, se se pensar na cozinha, nesse trabalho a partir das vísceras que as transforma “na parte do mundo que lhes abre o apetite” –, esta agressividade inscrita no desejo, descobre a continuidade entre o homem e o animal – “o homem que sofre é um animal, o animal que sofre é um homem” como lembra Deleuze; descobre essas “linguagens cegas; imperfeitas, incompletas, gulosas, comendo-se mutuamente”, as linguagens da “natureza disforme”. O mundo, aqui, é violência, ódio, raiva, medo e sobrevivência; matar ou ser morto, nada mais.
“«Estou vivo, dá-me», eis a frase que a cidade esqueceu; a biologia existe, Kahnnak sabe que ela existe e que tem a intensidade que nenhuma história de crianças consegue apagar. Não me contem histórias, pensa Kahnnak, enquanto atira o livro que descreve o processo de instalação da liberdade num país”
Esta frase – “estou vivo, dá-me” –, que surge em diversas partes do livro, abre, em “O Osso do Meio”, uma outra dimensão. Ela é, digamos assim, a medida da vontade, dessa vontade que não tolera qualquer forma de resistência, ou melhor, que só quer resistência para se afirmar sempre e de cada vez mais – há nela qualquer coisa de agramatical. Mas ela é também o lugar que ocupa, neste texto, um outro problema que coordena de longe o livro: a presença daquilo que Freud chamava, num conhecido texto (“O Mal-Estar na Civilização”, título que só pode conhecer más traduções), de Urmensch, de homem primordial ou primevo.
Com este pequeno termo, Freud não designa tanto um homem que terá existido algures no tempo, mas a presença, em qualquer tempo e lugar, de uma dimensão primitiva, arcaica, um homem que é apenas vontade, pulsão agressiva, para quem o mundo se reduz à posse violenta, à ausência de passado ou futuro, à sobrevivência, ao matar ou ser morto.
“E é nessa impotência da frase perante o ataque da força material de dois braços mais fortes, que agarram para maltratar, é nessa impotência que o progresso humano de séculos se revela como é de verdade: um logro, uma ficção longuíssima, com enormes raízes, mas ficção, história bem contada, pensava Maria Llurbai”
“Ou és forte e vences ou és fraco e perdes”: o mundo é reduzido aqui à mais estrita necessidade – vences, matas, perdes, morres –, o desejo, a vontade, são já o momento da agressão, a posse é sempre esquartejar, partir, lançar contra a parede como faz Kahnnak, é já retalhar.
Que esta outra história esteja sempre presente, não muito distante de nós, que ela é já o nosso presente, é o que nos diz Gonçalo M. Tavares. Que ela possa vir a ser o nosso futuro, tornando-se por fim contemporâneo de “O Osso do Meio”, é, de forma um pouco inactual, o seu augúrio epocal. Como essas vísceras que se lêem como “se estudasse na biblioteca uma língua estrangeira”.