David Fincher é incapaz de dotar o filme das mesmas qualidades dos seus anteriores trabalhos, que eram a ambiência, a perspectiva do realizador sobre as histórias que conta, e o aproveitamento do tempo enquanto personagem autónoma, necessitada também ela de uma dimensão que concorre para o impacto dos seus finais – no exemplo mais brutal, revelavam-se as qualidades técnicas de Fincher num simples olhar trocado numa loja do interior americano, entre Jake Gyllenhaal e John Carroll Lynch, o único assassino do zodíaco possível. Toda uma década ou mais de tragédia eclodia desse olhar, e o efeito da passagem do tempo atingia no peito o espectador, que apenas podia apelidar esse efeito de «a magia do cinema», aquilo que ele tem de único relativamente às outras artes.
Mank é um falhanço em que não se revela um toque de realização que não seja o de falsificar vestígios de classicismo através de flashbacks e de sons da época áurea de Hollywood. Imitando, em certos aspectos formais, truques que foram os de Orson Welles, Fincher obtém um produto artificial. Nele movem-se personagens de papelão, que não se procura dotar de dimensão, o que resulta numa narrativa esterilizada e sem interesse. Lidera-a um Gary Oldman acabado de oscarizar, sem qualquer poder de transcendência no palco em que se move, que é o mesmo em que surge, de vez em quando, um tímido Welles, não por uma questão de personalidade, mas por insegurança do realizador em representar alguém que, aos 24 anos, recebeu um frasco com o elixir dos deuses – que mais tarde partiu.
Para uns, que podem ser os fanáticos de Citizen Kane ou dos bastidores dos clássicos estúdios da RKO, pode sobrar a pequena curiosidade histórica. Porém, a mitomania hollywoodiana dos anos 30 e 40 não parece outra coisa que não um cirque du freak com palco para os grandes CEO das produtoras, suas mansões e seus jardins zoológicos megalómanos, suas festas e seus devaneios de grandeza. Tudo o mais, é a monotonia do que os rodeia, porque o texto do filme assim o obriga, restando o easter egg das femmes fatales, ou, numa cena dramática e teatral, o vislumbre da pequena Shirley Temple. As personagens secundárias sofrem com a falta de arrojo de Fincher, também ele deslumbrado por um argumento que não domina (o que se demonstra, desde logo, pelo resultado final de todos os argumentos que Fincher outrora dominou).
O filme não é mais do que a história que conta, sem linhas narrativas definidas, independentemente dos recursos utilizados para conseguir esta definição, assentando-lhe como a poucos a crítica do filme que é «só imagem». Não confundamos a história com as formas clássicas que existem para a contar, nem o modernismo com a desconcentração, a incapacidade de foco, e a verborreia; Welles tem filmes modernos no seu currículo, para quem quiser tirar as teimas. Ser-se veloz não é ser-se moderno, muito embora Othon seja tão moderno quanto Francisca.
Fincher é um dos bons realizadores do cinema americano, e é-o mesmo em piloto automático, o que se manifestou em Alien 3, que hoje renega. Aqui não vence um argumento fraco e o impulso para tentar simular um período que já não existe, e por isso Mank tem validade curta: a mesma que é estampada em todos os produtos que são saudosistas sem serem originais, apaixonados ou meritórios. Não imaginei vir a ter saudades de um filme em que tão bem se lia a alma americana como é Gone Girl, ou de um realizador capaz de criar narrativas reminiscentes de uma forma de contar antiga, em todos os filmes excepto naquele em que o tentou imprimir a ferros – mas tenho. A julgar pelo contrato de exclusividade que David Fincher celebrou com a Netflix, é uma saudade que adquirirá contornos de épico.