Há algum tempo que se vem desenhando uma era de recessão democrática. As autocracias têm vindo a ganhar espaço e a fabricar novas fontes de legitimidade. A liberdade e a tolerância estão a recuar um pouco por todo o lado. Dentro das democracias estão a ser plantadas as sementes extremistas da sua própria destruição. Com a memória da guerra a perder-se e com a vida em liberdade a dar-se como adquirida, gerações de cidadãos falham em fazer uma defesa vigorosa dos valores democráticos, relativizando até sobre a bondade de horizontes alternativos não democráticos – como demonstrou o magistral ensaio de Yascha Mounk, “The Danger of Deconsolidation”.
Com as grandes crises, financeira e da dívida soberana, na memória, sob ataque cerrado de regimes hostis e com muitas dificuldades para gerir politicamente graus de desigualdade económica crescentes, o regime das liberdades tem passado um mau bocado no primeiro quinto do séc. xxi.
Estas tensões foram profundamente agravadas nos últimos meses. Com o seu cocktail de recolher obrigatório e confinamentos, disputas científicas e massificação de fake news, supressão de liberdades individuais e civis, congelamento na economia e fechamento de fronteiras, a covid-19 abalou os fundamentos da ordem liberal. À pandemia de saúde pública juntaram-se outras duas pandemias: a social e a económica. Evitar que surja uma quarta, de ordem política e institucional, é crítico para a estabilidade das nossas democracias.
As eleições assumem, neste contexto, uma importância adicional. Elas estão no centro da vida democrática. Pode haver eleições sem democracia, mas nenhuma democracia sobrevive sem eleições. Razões de saúde pública serviram de argumento para tudo e para o seu contrário: para adiar eleições; para as realizar; ou, simplesmente, para encontrar mecanismos alternativos de participação política e eleitoral.
Portugal tem este ano dois importantes atos eleitorais. Já em janeiro, os portugueses são chamados a escolher o próximo Presidente da República, por definição o detentor de cargo político com maior e mais abrangente legitimidade democrática. Depois do verão, milhares de candidatos por todo o país vão a votos nas maiores eleições nacionais: as autárquicas.
Os portugueses avaliam mal o sistema político. O clima de descontentamento é geral. Não criar as condições para que todos tenham uma justa (e segura) oportunidade de fazer as suas escolhas políticas, de confrontar projetos e horizontes alternativos, de fazer ouvir a sua voz poderia constituir uma machadada irreversível na nossa realidade pós-25 de Abril. As democracias devem promover, a todo o custo, a participação dos cidadãos. O distanciamento político, em cima do distanciamento social, fará mais pelos populismos e pelos extremismos do que décadas de convivência com esses partidos.
Preparar esta dupla chamada dos portugueses às urnas com toda a segurança é, por isso, uma obrigação de qualquer decisor político para manter a salubridade do sistema.
A pandemia pode servir de desculpa para muita coisa. Mas nunca servirá de desculpa para não tentarmos o nosso melhor. E, neste caso, o nosso melhor é garantir: (1) que todos os cidadãos têm condições para exercer o seu direito de voto; (2) que o fazem em situação de absoluta segurança; (3) que, como sociedade, somos capazes de encontrar mecanismos de reforma do mais importante canal de participação cívica.
A DGS e a Comissão Nacional de Eleições estão a ultimar os pormenores para a operação eleitoral. Ainda não sabemos muita coisa. Mas já sabemos que o poder local volta a ser um parceiro essencial na organização das presidenciais e das autárquicas.
Em Cascais, esperando pelas guias oficiais para as presidenciais, mas não perdendo tempo, estamos já a colocar em prática um plano de voto seguro que promoverá um duplo alargamento: de mesas e de assembleias eleitorais. Em São Domingos de Rana, uma das maiores freguesias do país, passaremos de 43 para 58 mesas de voto. Em Cascais e Estoril, a união de freguesias com mais eleitores no país, mantivemos o número de mesas, mas alargamos o número de locais onde é possível exercer o voto.
Estamos também a trabalhar no projeto do voto antecipado e na recolha do voto dos cidadãos confinados – a peça mais difícil deste puzzle, precisamente pela volatilidade dos números.
Muita gente tem confundido a democracia com sistema económico, com garantia de bom governo, com pleno emprego ou com a garantia de uma vida confortável. Essa é uma visão que só apraz aos detratores da democracia. Porquê? Porque é fácil deslegitimar o regime sempre que o governo representativo não alcance os resultados.
É, pois, essencial que todos compreendamos o seguinte: a democracia é o único sistema político feito à medida da dignidade de todos os homens precisamente porque cada homem vale o mesmo perante a lei. A democracia é, na feliz expressão de Lincoln, o governo do povo, pelo povo e para o povo. É o único regime que nos garante que a lei é soberana. Para que não seja o soberano a lei, votar e participar é um dever dos cidadãos. Aos políticos cumpre garantir que todos o fazem em segurança.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira