Medicina. Lacunas na formação podem ter “repercussões na saúde dos doentes”

Medicina. Lacunas na formação podem ter “repercussões na saúde dos doentes”


Alerta dos estudantes de Medicina surge depois de ser conhecido um projeto do Governo para alterar conteúdos dos blocos formativos “a título excecional e temporário”.


Os estudantes de Medicina estão preocupados com o futuro do ensino médico em Portugal. O alerta foi feito esta segunda-feira pela Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM): receiam que a qualidade da formação possa ser afetada por uma portaria do Governo que prevê menos tempo dos blocos formativos, alteração de conteúdos dos mesmos e desvio de internos para combater a covid-19, medidas temporárias mas que poderão retirar ainda mais tempo de formação e contacto com doentes aos futuros médicos.

Em causa está, acima de tudo, o art.o 2.o do projeto de portaria assinado pelo secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, no qual se pode ler que “os prazos de duração e os conteúdos dos blocos formativos (…) podem, a título excecional e temporário, ser alterados e adequados ao contexto das medidas de atividade assistencial impostas pela covid-19”.

A perspetiva de uma recém-formada Mar Mateus da Costa tem 25 anos e formou-se em Medicina pela Universidade do Minho em julho. Não realizou a prova nacional de acesso, mas inscreveu-se na Ordem dos Médicos. Iniciou o mandato enquanto presidente da ANEM em dezembro do ano passado, na reta final do percurso académico, tendo vivido, tal como tantos outros colegas, o impacto da pandemia na educação. No texto que divulgou, deixou claro que “a ANEM compreende a excecionalidade do momento e reconhece que, no âmbito desta crise sanitária, haja necessidade de reforçar os recursos humanos do Serviço Nacional de Saúde”. Em declarações ao i, a médica lembra, no entanto, que no passado ano letivo, “todos os estágios foram suspensos” e os finalistas “que acabaram o curso ficaram sem quatro ou cinco meses de formação”. No próximo mês de janeiro existirão médicos que terão estado “dez meses sem ver doentes” e, “dependendo das especialidades, até podem estar sem este contacto há ano e meio”.

“Estas pessoas entram com uma fragilidade que não é normal”, denunciou a jovem, que sempre gostou muito da área da saúde pública, especialmente “da visão da comunidade aliada à saúde do indivíduo”. Na ótica de Mar, o que resulta da portaria é “bastante vago porque deixa ao critério da direção hospitalar e de internato os blocos que serão ou não lecionados”. A ANEM, diz, estranha que “tenha de ser cumprido um tempo mínimo que nunca se sabe qual é”. Deste panorama pode nascer “uma assimetria muito grande na formação”, pois “em áreas mais afetadas pela covid-19, os médicos são requisitados e estarão menos tempo a exercer funções formativas”, o que conduzirá a que “não tenham acesso à especialidade, sendo autónomos e somente podendo realizar atos médicos que não tenham diferenciação, como o atendimento nas urgências”.

As repercussões na saúde dos doentes Aos 23 anos, Gonçalo Madureira frequenta o 6.o ano de Medicina na Universidade do Porto. Atualmente está a estagiar na CUF, tendo iniciado o estágio em ginecologia na segunda-feira, o qual em princípio terminará no dia 18 de dezembro. “Devia ter a duração de quatro semanas mas, por causa da covid-19, serão duas”, afirmou, fazendo o paralelismo entre as instituições privadas e públicas. “Mas, a título de exemplo, no Hospital de São João, os estágios foram muito encurtados, como nas especialidades cirúrgicas, pelas quais passámos uma semana”, disse.

“É preciso que o Governo, nomeadamente o Ministério da Saúde, se organize atempadamente para que, no ano comum, se colmatem falhas derivadas de uma situação extraordinária”, salienta o futuro médico, propondo que durante esse mesmo ano “houvesse o alargamento da formação geral”, discordando da portaria na medida em que “há colegas que verão a sua formação ser comprometida devido ao combate à pandemia, com supressão de estágios ou por serem alocados a um serviço que não esperavam”. À semelhança de Mar, Gonçalo recordou que o ano comum é importante para adquirir competências, adicionando que “para o caso de colegas que não têm vaga de formação específica, esta é a única formação que terão”.

Para o jovem natural do Pinhão, Vila Real, “em última instância vamos ter médicos que supostamente concluíram a formação geral a ingressarem na formação específica com falta de competências, tal como os médicos indiferenciados”, e isto “pode ter repercussões, em última análise, na saúde dos doentes”.

“Senti que a minha formação – neste semestre e no anterior – ficou muito aquém de todas as expetativas que eu poderia ter para estes anos”, confessa por seu turno Marta Gonçalves, de 21 anos, estudante do 4.o ano de Medicina na Universidade de Coimbra. “Mas, tal como a ANEM mencionou, estes são tempos excecionais!”, declara a a jovem natural de Ponte de Lima. “Acredito que o ano de formação geral vá ser crucial, tal como os anos de internato médico, para recuperar aquilo que perdi nestes anos clínicos”, admitiu.