A entrevista concedida pelo cientista português Pedro Russo a este jornal em que se abordaram as teses negacionistas sobre o COVID e, em geral, sobre as conquistas da ciência, não pôde deixar de me motivar uma reflexão mais aprofundada sobre um tema que, de há algum tempo, andava germinar no meu espírito.
Na verdade, perante a pandemia e os seus catastróficos resultados e incógnitas – mesmo que científicas – muito têm crescido as teses obscurantistas, as suspeitas sobre maquinações políticas que as inspiraram ou as aproveitam, o puro negacionismo da realidade da doença e dos seus efeitos.
Grande parte de tais congeminações – é sabido – são apresentadas e disseminadas, com grande velocidade e em grande extensão, pelas redes sociais que apoiam e estimulam sobretudo a ação das forças populistas e antidemocráticas.
Estas visam, com isso, ir minando a credibilidade das instituições públicas, questionando a informação objetiva de que as mesmas se servem para tomar medidas severas que se sabe, à partida, não serem populares, por causarem perdas reais na vida profissional, económica, pessoal e familiar de um grande número de pessoas.
Tais teses e a informação pervertida que as veicula acabam, assim, por influenciar um conjunto de pessoas muito penalizadas por tais medidas e, por isso, compreensivelmente temerosas do seu futuro e do dos seus.
Para muitas delas, é, de facto, o desabar brutal de um sonho que acalentavam e que sempre lhes foi servido como inquestionável.
Ante a penúria de expetativas de todos os tipos – económicas, de saúde, enfim, de futuro – tudo o que era considerado seguro pareceu esboroar-se de súbdito.
Tal sensação tem propiciado, em alternativa à angústia e à revolta sentidas por muitos, o aproveitamento e o desenvolvimento de um novo tipo de crendice, só que, nos nossos dias, de inspiração não necessariamente religiosa ou, sequer, espiritual.
Tais estratégias não são novas, aconteceram no passado em situações pandémicas idênticas e foram também exploradas por quem, precisamente, tinha essa intenção, os meios de comunicação e a influência social para o fazer em seu proveito.
Sinal dos tempos, a superstição e as crendices que as redes sociais obscurantistas hoje propalam não exploram já, no essencial, sentimentos religiosos: são, mais diretamente políticas, mesmo quando igualmente veiculadoras de preconceitos culturais e promotoras de ilusões salvíficas e prometaicas.
Em alguns casos, revestem, inclusive, roupagens de pseudociência.
Em outros, investem na velha técnica da invenção de maquinações indecifráveis e, por isso, nunca demonstráveis.
Desde, pelo menos, o século das luzes, que os espíritos mais progressistas tentaram, de algum modo, contrariar tal tipo de campanhas e procuraram ir esclarecendo, o melhor que sabiam e a ciência então permitia, a natureza dos fenómenos que ocasionaram as tragédias naturais, as doenças pandémicas e os fenómenos e crises da vida política e social.
A posição dos homens perante a ciência e as suas verdades – que nunca foi necessariamente de natureza religiosa: muitos cientistas foram religiosos – foi, no entanto, quase sempre, de par com o seu posicionamento político.
Os que, politicamente, acreditavam no progresso e tinham, assim, uma visão mais otimista da vida, lutando por um futuro melhor para a humanidade, sempre alinharam com a verdade científica e rejeitaram as ideias obscuras e improváveis para a explicação dos fenómenos da vida.
Recordo, a propósito, uma estória que, quando jovem, me contou um velho comunista – dos que se evadiu de Peniche – a propósito de uma visita a um aviário de um país do extremo oriente; procuraram explicar-lhe a produtividade em ovos que as galinhas ali tinham com a influência da «ideia» que presidia à orientação política e filosófica do seu presidente. Entre o divertido e escandalizado, esse velho militante terá respondido que a sua formação científica não lhe permitia acreditar em tais patranhas.
Durante muitos anos, as forças progressistas, fossem elas mais de esquerda ou menos, não alinhavam em explicações que arredassem da razão – lógica e científica – os fundamentos e a justificação dos fenómenos naturais e sociais.
Desde, porém, os anos sessenta, uma corrente menos racionalista e, nalguns casos, mesmo negacionista da ciência e das suas conquistas, foi-se afirmando com certa influência em alguns sectores que se reivindicam do legado ideológico das forças progressistas.
Já aqui citei, a esse propósito, um livro cujo interesse se revela hoje, também, para a compreensão da situação provocada pela atual pandemia: chama-se «La Gauche Contre les Lumières?» e é da autoria de Stéfane Rosa.
Em Portugal, tal orientação relativista nunca se afirmou de forma convincente, não adquirindo, por isso, a nível do pensamento democrático, grande influência social e política.
Todavia, não deixam de se assinalar, atualmente, em alguns comentários difundidos em certas redes sociais, em alguns discursos e, principalmente, em alguns posicionamentos políticos percecionados como céticos e altivos, ecos de compreensões da realidade que, não se assumindo claramente como negacionistas, não deixam de comportar, mesmo que implicitamente, ressonâncias de uma dimensão relativista.
Agir como se nada acontecesse de facto e tudo fosse, no fundo, provocado, manipulado e aproveitado para fins sombrios, contribui, na realidade, para dar razão aos negacionistas puros e àqueles que do obscurantismo se servem para recusar um futuro melhor para a humanidade.
Assumir decisivamente a razão objetiva das coisas e procurar, aqui e agora, através dela, prevenir e resolver os problemas sanitários ingentes e imediatos das pessoas – nas fábricas, nos escritórios, nos estabelecimentos comerciais, nos transportes, nas escolas, nos hospitais ou nos lares – parece ser, portanto, a única atitude realista, razoável e solidária de intervir politicamente: aquela que é conforme as tradições humanistas das forças progressistas e o interesse verdadeiro do povo português.
Tal atitude – e não as que podem ser tomadas como uma sobranceira e displicente desconsideração dos factos – é, antes de tudo, uma exigência de natureza humanitária, mas é, também, uma estratégia de defesa da razão democrática contra as ilusões populistas.
Só assim, numa comunhão de iguais, se consegue ir ao encontro do sentimento mais angustiado do povo sofredor, desorientado e revoltado.
Se, porventura, se condescender, o mínimo que seja, com teses negacionistas e os seus efeitos, e se desconsiderar, sem justificação aceitável, a razão das soluções possíveis para, no imediato, acautelar os problemas reais das pessoas – já de si alarmadas com a doença -, muitas delas procurarão nas explicações obscurantistas e nas teses maniqueístas mais radicais e simplistas uma justificação para os seus males e um caminho para a seu empenhamento e voto de protesto.
As forças populistas mais obscurantistas e reacionárias agradecerão uma vez mais.