Governo trava saídas de profissionais necessários no SNS

Governo trava saídas de profissionais necessários no SNS


Despacho permite aos hospitais reter profissionais que pedem para rescindir contrato enquanto durar estado de emergência. Só o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, perdeu 160 enfermeiros com experiência em cuidados intensivos desde o início do ano e recrutamentos estão cada vez mais difíceis.


Os profissionais de saúde que sejam considerados essenciais pelos hospitais para assegurar a resposta à covid-19 passam a partir desta semana a poder ser impedidos de rescindir contratos. Um despacho publicado esta segunda-feira pelo Ministério da Saúde, e com efeitos imediatos, delega no Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, a competência para determinar a mobilização de trabalhadores dos serviços e estabelecimentos integrados no Serviço Nacional de Saúde que requeiram a cessação, por denúncia, dos respetivos contratos de trabalho ou contratos de trabalho em funções públicas. A sangria de profissionais do Serviço Nacional de Saúde, em particular de enfermeiros, tem estado a criar constrangimentos em alguns hospitais, em particular na grande Lisboa, isto numa altura em que é necessário reforçar as alas de resposta a doentes com covid-19. Os hospitais que recorram a este expediente têm de fundamentá-lo ao Ministério da Saúde, nomeadamente quanto à “essencialidade” de reter as saídas dos profissionais. O i tentou perceber junto do Ministério da Saúde se existe um levantamento de quantos profissionais de saúde iriam rescindir com os hospitais e vão agora permanecer nas unidades, não tendo tido resposta até ao fecho da edição.

O Hospital de Santa Maria é uma das unidades a avançar com o pedido à tutela para travar a saída de 18 enfermeiros com experiência em cuidados intensivos, sendo que este mês já tinham saído 16. Ao i, Ana Paula Fernandes, enfermeira-diretora do Centro Hospitalar Lisboa Norte, que integra o Hospital de Santa Maria e o Hospital Pulido Valente, diz que se trata de uma situação temporária, que já tinha sido autorizada pelo Governo no primeiro estado de emergência e que também neste hospital permitiu, em maio, adiar a saída de 10 enfermeiros que tinham mostrado intenção de deixar o hospital. “Oito saíram depois em junho e dois acabaram por desistir, o que foi bom”, diz a enfermeira-diretora, que fala de um momento de muita procura e recrutamentos por parte dos hospitais, públicos e privados, quando se vive também uma necessidade diária de alargar a capacidade de resposta, nomeadamente abrir novas camas de UCI, o que a dificuldade em conseguir substituir profissionais com a mesma rapidez com que saem torna a gestão de recursos humanos mais difícil.

Desde o início do ano, o Hospital de Santa Maria perdeu 160 enfermeiros da área de cuidados intensivos, a maioria para hospitais privados. Destes, faltava substituir 20, estando em curso um novo recrutamento, diz Ana Paula Fernandes. Com os 18 profissionais que o hospital iria perder esta semana, ficariam em falta 38. Para abrir mais 10 camas de UCI, são necessários pelo menos 30 enfermeiros, exemplifica a enfermeira-diretora. “É algo temporário, enquanto estamos nesta fase de crescendo de necessidade de aumentar a capacidade. As reservas de recrutamento neste momento não estão a ser suficientes. Como estamos todos a tentar recrutar enfermeiros, ou gostam muito do Centro Hospitalar Lisboa Norte ou vão ocupando as vagas em função de quem primeiro chama, o que é legítimo”.

A responsável sublinha que, em maio, todos os enfermeiros em trânsito nos hospitais puderam sair mais tarde em junho e não houve constrangimentos e disse esperar que todas as estruturas sejam sensíveis a esta necessidade no momento atual. No caso das saídas para o privado, admite no entanto que os hospitais públicos estão em desvantagem no que podem oferecer aos profissionais. “No público, o que temos para oferecer é a remuneração que está definida e trabalho. Naturalmente que há pessoas que saem porque querem ir para outra zona do país, para perto da família, mas quando só nos comparamos com o que o privado oferece, não temos a mesma capacidade de negociação. Quase duplica o valor remuneratório e nós não podemos fazer nada”, diz a enfermeira-diretora.

Um enfermeiro de cuidados intensivos, com dez anos de experiência em média, recebe à volta de 900/1100 euros líquidos de salário. “É lícito que se têm família, responsabilidades, casas para pagar, filhos, procurem algo que do ponto de vista remuneratório permita compensar o esforço que fazem”, admite a enfermeira-diretora, que espera que todos compreendam a necessidade de se manterem nos hospitais neste momento mas reconhece que por vezes as condições oferecidas são “injustas”. “Acredito que vão ajudar-nos a ultrapassar esta fase, como ultrapassámos a outra.” 

Ontem a ministra da Saúde anunciou que as férias poderão ter de ser suspensas nos próximos meses, numa altura que a evolução da epidemia no país é considerada muito grave. “Muito provavelmente terá de haver, em função da situação epidemiológica que vivemos, alteração de planos de férias de 2020, como já houve no início do ano”, disse Marta Temido, admitindo que se trata de uma decisão difícil e que este é um esforço adicional pedido aos profissionais de saúde, que poderá estender-se a outras áreas. Ao final do dia, foi conhecido a primeira decisão de um hospital: o Centro Hospitalar do Médio Tejo suspendeu temporariamente as férias de todos os profissionais até 31 de janeiro, com entrada em vigor imediata.