No passado dia 2 de Novembro, o primeiro-ministro solicitou ao Presidente da República que fosse decretado o estado de emergência, segundo referiu, apenas para “poder eliminar dúvidas jurídicas” sobre as medidas que o Governo tinha decidido adoptar para controlar a pandemia. Apesar disso, esclareceu que o estado de emergência iria ser prolongado no tempo e que poderia incluir um recolher obrigatório entre as 23 horas e as 6 horas de cada dia, mas não ao fim-de-semana, uma vez que “decretar recolher obrigatório ao fim-de-semana é de uma grande violência e um excesso”.
Numa entrevista que deu nesse mesmo dia, o Presidente da República assumiu que poderia decretar o estado de emergência, mas que seria sempre um estado de emergência “muito limitado e preventivo”, destinado apenas a esclarecer as tais dúvidas jurídicas. Não parece, porém, que suscitasse grande dúvida que as sucessivas medidas de controlo à pandemia não tinham base constitucional, uma vez que o Governo não pode estabelecer restrições ou mesmo efectivas suspensões de direitos constitucionais através de simples resoluções do Conselho de Ministros, as quais correspondem a simples regulamentos administrativos, que não estão sujeitos a controlo do Parlamento nem sequer a promulgação pelo Presidente da República.
Era, por isso, evidente que há muito que o estado de emergência tinha de ser decretado, como, aliás, o foi na Espanha, França e Itália. Na verdade, Portugal está a atravessar uma situação de calamidade pública gravíssima, sendo essa uma das razões constitucionais para se recorrer ao estado de emergência. Não fazia sentido, por isso, o país continuar a viver numa pretensa situação de normalidade constitucional mas em que os cidadãos assistiam, perplexos, a sucessivas lesões dos seus direitos fundamentais, como a proibição de se deslocar para fora do seu concelho, sem que houvesse qualquer reacção das entidades encarregadas de defender esses direitos. Havendo uma grave situação de calamidade pública, é manifesto que tinham de ser tomadas as medidas necessárias para a debelar, mas adoptando a forma que a Constituição prevê para que tal possa ser feito.
Foi assim publicado o decreto do Presidente da República 51-U/2020, de 6 de Novembro, regulamentado pelo decreto do Governo 8/2020, de 8 de Novembro. Apesar de se declarar no preâmbulo que “o Presidente da República procedeu à declaração do estado de emergência, com um âmbito muito limitado, de forma proporcional e adequada, com efeitos largamente preventivos”, é manifesto que não é isso o que sucede. As medidas decretadas pelo Governo são duríssimas, abrangendo 121 concelhos do país onde está concentrada 70% da sua população, sendo assim afectadas por estas medidas sete milhões de pessoas.
Entre as medidas mais gravosas salienta-se a imposição do recolher obrigatório, a qual só tem precedentes em Portugal quando, em 25 de Novembro de 1975, com o país praticamente à beira da guerra civil, foi decretado o estado de sítio na região de Lisboa, sendo imposto um recolher obrigatório à noite que viria a ser levantado oito dias depois. Desta vez, o país está apenas em estado de emergência, mas o recolher obrigatório vai durar 15 dias, sendo de salientar que, ao contrário do que tinha sido prometido pelo primeiro-ministro, o mesmo abrange inclusivamente os fins-de- -semana. Ora, esta medida é de uma enorme violência, uma vez que afecta profundamente o direito ao repouso, aos lazeres e ao descanso semanal dos trabalhadores, garantido pelo art.o 59.o, n.o 1, d) da Constituição. Na prática, grande parte da população portuguesa perdeu o direito de se ausentar do seu domicílio salvo para ir trabalhar, o que limita profundamente a possibilidade de ocupação dos tempos livres. Além disso, o comércio e os serviços que poderiam ser utilizados pelos cidadãos para esse efeito vão sofrer inúmeros prejuízos com essa situação.
Nos termos do art.o 19.o, n.o 4, da Constituição, a declaração do estado de emergência deve “respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional”. Temos muitas dúvidas de que seja proporcional adoptar medidas com esta dureza, mas em caso algum poderemos dizer que estamos perante um estado de emergência limitado e preventivo. O que se está a assistir é a um estado de emergência muito amplo, com gravíssima afectação dos direitos dos cidadãos.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990