1.Tara Westover nasceu, em 1986, nos EUA, nas montanhas do Idaho. Uma terra de cascavéis, cavalos selvagens, penhascos, rios e montanha (p.24), orografia que transmite a ideia de soberania, privacidade, isolamento, domínio (p.44), campo “onde as casas são poucas e os candeeiros da iluminação pública ainda mais escassos, onde a luz das estrelas reina sem rival” (p.170).
2.O Estado norte-americano não sabe da existência de Tara. Aliás, quatro dos sete irmãos da família de que faz parte não têm certidão de nascimento. Será, já, com 9 anos de idade que Tara verá requisitada, para si, uma certidão de nascimento atrasada – e, quando a certidão chegou a sua casa, pelo correio, sentiu-se, mesmo, expropriada (p.37). Não tem registos clínicos. Não vai a um hospital. Já adolescente, nunca fora vacinada. Não vai à escola. Na habitação familiar, não há televisão nem rádio (p.27). Tal como, durante anos, não existiu telefone. O automóvel dos Westover não tinha seguro e, no seu interior, não se usava cinto de segurança. O desejo de seu pai era o de serem uma família auto-suficiente: “não havia nada que [o pai] mais odiasse do que o facto de sermos dependentes do Governo” (p.31). Viver à margem do sistema, um objectivo a que se consagraria devotadamente.
3.Filho de um homem violento e de feitio explosivo (p.43), o pai de Tara era um homem profundamente severo, mórmon literalista, um “poço de carisma” (p.36), orgulhoso, forte, atlético, duro, um homem a quem não interessava o que os outros tinham a dizer. Quando não estava a falar, exigia silêncio; eram sempre os filhos que o ouviam, nunca o inverso (p.257). Defensor da supremacia branca, integrando, no seu discurso, múltiplos elementos de paranoia, delírios, mania (p.243), era dono de uma sucata, na qual os vários filhos foram trabalhando, desde idades muito precoces, árdua e doridamente. Reclamava o lar como o lugar da mulher (p.150). Membro vitalício da NRA (National Rifle Association), a associação que visa a promoção dos direitos dos proprietários a armas de fogo, protecção da caça e da auto-defesa nos EUA.
A mãe de Tara, por sua vez, era herdeira e tornou-se parteira (sem licença nem certificados, ou seja, podendo, em as coisas correndo mal [num parto], vir a ser acusada de homicídio), a par do desenvolvimento de ervas medicinais. Viu os pais oporem-se ao seu casamento, mas nele permaneceu, quase sempre (em posição) submissa. Com uma única excepção, no relato de Tara, cedeu invariavelmente ao marido, incluindo as vezes em que teve de optar entre este e algum dos filhos. Vítima e cúmplice de uma violência larvar em família, incluindo a do filho Shawn sobre seus irmãos. Procurando conciliar o inconciliável, sem nunca chegar a erigir qualquer linha vermelha que travasse uma casa muitas vezes caótica e sem harmonia física ou psicológica.
4.Quando crescesse, Tara sabia bem o que lhe estava destinado: aos 18 ou 19 anos “casava-me”; “o pai dava-me uma quinta” e “o marido fazia ali a casa”; a “mãe” ensinar-lhe-ia a ser parteira e “a usar ervas medicinais” (p.147), ofícios com que se ocuparia até mais não poder.
Talvez os CD de Mozart e Chopin de um irmão mais sensível tenham feito uma diferença decisiva para uma curiosidade que a levará a universos nos antípodas daqueles em que cresceu. Ouviu-os vezes sem conta. A música e a dança marcarão aquela adolescência – ainda que, mesmo aí, com mil cuidados, como aquele de não mostrar a roupa, um tudo nada mais colada ao corpo (o fato de dança), ao pai (que considerava os top’s usados por mulheres como algo próprio de “gentias”). Os filamentos da doutrina mórmon – onde só muito mais tarde questionaria a poligamia ali exaltada – são também objecto do seu interesse e estudo. Na primeira vez que usou batom, o irmão Shawn chamou-lhe galdéria – ela que, aos 15 anos, nada sabia sobre concepção, nem nunca beijara um homem, mas chegara a julgar pode estar grávida. Tyler, o irmão que gostava, também, de aprender com os livros e se fechava no quarto a estudar contra a vontade paterna – “um homem não pode ganhar a vida com livros e folhas de papel” (p.61); “os doutorados eram Filhos da perdição. O ensino doméstico era um mandamento do Senhor” (p.184) – surge, em toda a descrição auto-biográfica de Tara, como (seu) verdadeiro anjo da guarda.
5.Para os Westover, a escola é uma estratégia para afastar as crianças de Deus. Nas escolas e universidades, estão espiões socialistas e Illuminati a soldo do diabo. A mãe ensinara os filhos a ler, e o estudo das Escrituras é feito, complementando catequeses, em família. Certo dia, calhou ao pai ler um excerto de Isaías: “manteiga e mel comerá até que saiba rejeitar o mal e escolher o bem” (p.19). Imediatamente o frigorífico é esvaziado de tudo quanto possui e, durante muito tempo, passa a conter porções abismais de manteiga e mel. O fundamentalismo espreita em toda a linha: o pai acumula provisões nas quais gasta tudo o que tem, preparando-se para o último dia (terreno). A passagem de ano, por consequência, é vivida com consternação, pois que às 0h do ano 2000 – hora marcada, no coração paterno, para o apocalipse – nada sucede. O pai fica prostrado, deprimido.
Mesmo quando fizer o improvável bacharelato, numa universidade que aceita alunos do ensino doméstico, Tara manterá a forma mentis que foi adquirindo em casa ao longo dos anos: “era proibido fazer compras no Sabat, eu nunca comprara nem uma pastilha elástica que fosse ao Domingo (p.183); beber Diet Coke era “uma violação dos conselhos do Senhor relativos à saúde” (p.183). Ver filmes dominicais era algo que estava, igualmente, vedado e que era escrupulosamente aceite (p.187). No seu dizer, cedo percebeu que o pai acreditava em um “Deus diferente”: “tinha a consciência de que, embora a minha família fosse à mesma igreja onde ia toda a gente da nossa cidade, a nossa religião era diferente. Eles acreditavam na modéstia, nós praticávamo-la. Eles acreditavam no poder curativo de Deus, nós deixávamos os nossos ferimentos nas mãos Dele. Eles acreditavam que deviam preparar-se para a Segunda Vinda, nós estávamos efectivamente preparados” (p.187). Ainda assim, sendo certo que bastante tempo após a leitura de Isaías, o pai esquece-se da manteiga e mel, e o frigorífico volta a diversificar os produtos que acolhe – tal como aceitará que a mulher trabalhe fora de casa, com a explicação de que esse parêntesis às regras que pretendia ver seguidas servia para não se conformar a dependência alguma do governo. E o orgulho com a voz da filha, por todos elogiada no culto, coloca uma adversativa à absoluta humildade. Humanas e compreensíveis contradições.
As ervas medicinais farão um tal sucesso na comunidade que se transformam numa autêntica indústria (a multiplicação de dólares não questiona a legitimidade/adequação/eficácia do produto que coloca à disposição da clientela). Já com alguns filhos, como Tara, fora de casa, são contratados, pela família, vários empregados – sempre sujeitos à irascibilidade do patrão -, o lar alarga-se, do ponto de vista físico, substancialmente. Mas em existindo uma oferta de 3 milhões pelo negócio, o pai rejeitará, porque o seu objectivo (e serviço) não é o dinheiro, mas a cura, através de tais ervas.
6.Não é impunemente que se absorve, em profundidade, toda uma mundividência. Quando Tara choca de frente com novos mundos que a universidade providenciará, o sentimento pode ser tanto o de indignação com a educação familiar que recebera – “não percebo porque não me deixaram ter uma instrução decente” (p.192) – quanto o de culpa por estar a abandonar o seu mundo “natural”, aquele que lhe cabia “cumprir”: “não sou uma boa filha. Sou uma traidora, uma loba entre as ovelhas” (p.174).
Esta é a fratura decisiva que subjaz a todo o livro, uma crosta por sarar, em carne viva, dilacerante, excruciante que nos chega aos ouvidos gritada, soluçada, magoada: “o presente parecia estar [permanentemente] à mercê do passado” (p.258). Dividida em duas, a nova carapaça de quem obtém bolsas e estuda em Cambridge, Harvard, Oxford, Paris – e que aí se transforma -, e a adolescente de 16 anos que continua a latejar em si, pertença a dois mundos que conflituam em ringue aberto, geradora de inúmeras contusões e ferimentos graves, indecisão que a leva a protelar o doutoramento, com 18 a 20 horas por dia a ver tv, de série em série, a droga, o escape que adiam a decisão última: preferia a família escolhida á que lhe fora dada (p.318), sentença derradeira.
7.Mesmo quando escreve, em fúria, ao pai, uma carta em que o trata por “facínora, tirano”, entre outros impropérios; mesmo quando as recordações de uma infância obrigada a trabalhar entre máquinas que estão à beira de a triturar, sem qualquer amparo paterno (na sucata familiar); mesmo quando balança entre uma hipotética doença bipolar do pai e o lado puramente fanático daquele (a “biologização do mal” ressoa por aqui); mesmo quando em definitivo percebe que a querem destruir, dizendo-a possuída pelo demónio, negando-lhe as memórias da violência louca de Shawn sobre ela, levando-a a duvidar de si própria, as sensações de traição e culpa não deixam de assomar ao espírito. Aliás, ainda que, aparentemente, nesta auto-biografia, a borboleta, por fim, pareça emancipada – “quis conhecer mais verdades do que aquelas que o meu pai me dera” -, não se antolha como definitiva uma separação – “não vejo os meus pais há anos”, constata, em 2018, a fechar o livro intenso que nos oferece – que ao longo da reflexão da autora parece sempre precária (como cada ganho, conquistado a duras penas, a um passado/pele que parece puxá-la para trás).
8.Relato, também, sociológico, o que se alcança com Tara: o da rapariga que não tem, nem sequer sabe usar roupas adequadas à vetusta Cambridge. Que quase sempre se sente fora de contexto face a colegas que são filhos de professores de Oxford ou descendentes de diplomatas (p.304); onde aqueles se curvam nos telhados do Trinity College e esta se mantem hirta, sem problemas de equilíbrio corporal, muitos anos de adestramento selvagem, na mesma circunstância: “o lugar dos outros estudantes era a biblioteca, o meu era num guindaste” (p.272). Ela sabia que era “arruaceira como os irmãos” (p.63), baby-sitter aos 11 anos, empregada de supermercado ou em casa de gente rica, crescendo numa casa sem fragâncias nem delicadezas. De aí que um grande elogio de um professor – dou aulas há mais de 30 anos em Cambridge e este é um dos melhores ensaios que já li [ensaio escrito por Tara], p.274 – lhe cause mais embaraço do que alegria: “tolerava qualquer forma de crueldade melhor do que a gentileza” (p.275). Só em Harvard – ela que faz o Bacharelato na Brigham Young University, em 2008; Mestrado em Filosofia no Trinity College, em Cambridge, em 2009; aluna visitante em Harvard em 2010 e Doutoramento em História, em Cambridge, em 2014 – se pacifica como a rapariga pobre e ignorante que foi, numa família tão (ultra) conservadora quanto, paradoxalmente para os que reclamam que tal se realiza apenas entre os que seguem vanguardas dissolventes, disfuncional, e assume a história que viveu – até lá, os fantasmas do passado, levam-na a descarregar emocionalmente no fortuito namorado Charles, com quem, pois, não ficará muito tempo.
“Nunca te ocorreu que tens tanto direito a estar aqui como outra pessoa qualquer?” (p.277), perguntara-lhe um dos académicos que reconhece o seu enorme talento, em Cambridge.
9.A biografia da ainda jovem adulta Tara Westover lê-se como um romance e cai como um repente cinematográfico de cortar a respiração: os acidentes na sucata, sempre no fio da navalha entre a vida e a morte; os despistes de madrugada nas bolinas sobre a neve de um machismo providencialista ao volante; a recusa de tratamentos, descrença na medicina moderna, mesmo quando se chega a ferimentos intensos (no núcleo familiar); os caracteres fortes, excessivos, demenciais, como o de Shawn – o brutal esfaqueamento do seu pastor alemão, à frente do filho, é cena que não se esquece, bem como o passar da navalha, ensanguentada por via desta morte, à irmã Tara, sobre a qual o bafo de confisco pessoal paira em permanência (e Tara partilha com o leitor o medo de desejar que o irmão morra); a humilhação de chegar ao fim da adolescência e entrar na universidade com desconhecimento da palavra “holocausto”, levando um auditório do ensino superior a entender tal manifestação (o que significa isso?) como uma piada de péssimo gosto; a ignorância de qualquer símbolo matemático e o percorrer 60 km para adquirir um manual de álgebra; o desconforto social e as pesadas memórias – e a corrosiva tentativa de manipulação da memória – do passado; os choques de ódio, em estado puro, entre diferentes elementos familiares – “é estranho como damos às pessoas que amamos tanto poder sobre nós” (p.232). Finalmente, a clara separação entre os irmãos que saíram da montanha e se doutoraram daqueles que ficaram sob o jugo tirânico de um pai ensandecido. Neste confronto último, montanha-cidade, baixa escolaridade-elevadas qualificações vai, ainda, um concentrado de uma fractura que marca, fortemente, uma América – na qual, por vezes, se conjuga um conservadorismo ultra a uma dimensão libertária não menos radical, mesmo que para nós tais termos não casem – que é dada a ver em histórias (deveras) singulares como a da muito talentosa – uma inteligência superlativa com que a natureza a cumulou – e tenaz – estudou com a intensidade dos loucos, ardeu em febre antes de exames decisivos – Tara Westover.