Desde que António Costa é primeiro-ministro de Portugal tornou-se usual, sempre que em cima da mesa estão as negociações para aprovar um Orçamento do Estado, que entre o Partido Socialista, o PCP e o Bloco de Esquerda exista assim um certo clima de flirt político. Mas se em anos anteriores tudo era mais simples, dado haver alguma coisa para dar, ou melhor, para esbanjar, como fizeram, atendendo a que é a única coisa que a esquerda sabe fazer quando governa, neste ano em que já não há margem orçamental para dar nada a ninguém e tudo se agravou pela crise pandémica que vivemos, o triângulo amoroso parece entrar em estado comatoso. Pior, começam a adensar-se cenas de ciúmes, com uma das partes a fazer o papel de virgem ofendida.
Assim como alguém que ao ver uma relação amorosa esfumar-se, acaba por dizer “não foi isso que me prometeste”. Ora, como já terão compreendido, o papel de virgem ofendida está a ser interpretado pelo Bloco de Esquerda. Onde a falta de vergonha já chegou. Quem diria! O Bloco de Esquerda já nos habituou a ser um partido político que, considerando-se dono da moral e dos bons costumes, acaba depois por cair nas suas próprias ratoeiras ideológicas. Mas este ano, Catarina Martins, que por acaso até é atriz de profissão, decidiu reforçar o guião desta tragédia grega com requintes humorísticos. Então não é que esta semana a ouvimos considerar que “há uma forma terrível de fazer política nos momentos difíceis” e que passa por todos parecerem optar por “arranjar desculpas para falhar”?
Há coisas levadas da breca. É Catarina Martins a queixar-se na primeira pessoa, em direto, ao vivo e a cores, dela própria, dos seus comportamentos e do partido que dirige. Fantástico. Mas, realmente, honra lhe seja feita, é coerente com a “doutrina Robles”, que sempre disse para olharem para o que dizia, mas nunca para o que pudesse hipoteticamente nalgumas questões fazer. Melhor que isto só se dissesse, novamente, que a culpa é de Passos Coelho. Vamos ser francos. Vamos dizer aquilo que Catarina Martins devia dizer e não pode. O Bloco de Esquerda foi/é o pilar fundamental para que António Costa tivesse chegado a primeiro-ministro. Não foi o PCP, paz à sua alma, que já não representa coisa nenhuma. Foi o Bloco. No entanto, em troca deste frete político, exigiu a António Costa que basicamente acedesse a tudo e mais um par de botas que constasse do seu programa político (acham eles que o é) de fratura social.
Como, agora, as questões fraturantes originárias já estão quase todas batidas e dinheiro para desbaratar não há, porque o gastaram todo, Catarina Martins vem dizer “alto que assim já não brinco”. No fundo, o Bloco de Esquerda não se importa de ser acompanhante, mas só se for de luxo. Coisas reles, nada! Contudo, não devemos ficar-nos por aqui. Não devemos porque aquilo que continuará a verificar-se nos próximos dias será um espetáculo deprimente entre dois partidos políticos que, não tendo nada de concreto para apresentar ao país, vão pretender manter os portugueses a discutir faits divers.
Tudo isto com a tranquilidade de quem sabe poder fazê-lo atendendo a que, independentemente do que diga ou faça (bem como dos números que monte), pela proximidade das eleições presidenciais, que se realizarão muito em breve, ainda que este Orçamento do Estado não passe, ou não passasse, não se poderão/poderiam realizar eleições legislativas antes do meio do ano que vem, o que, simultaneamente, pelo menos por algum tempo, estanca a única coisa que mete medo ao PS e à extrema-esquerda: um reforço parlamentar do Chega.
Para terminar, porque estas coisas acabam sempre por passar despercebidas, uma questão: já repararam que sendo o Bloco de Esquerda contra a Europa, viabilizando este Orçamento viabilizará, uma vez mais, um Governo cuja única estratégia que tem para o país assenta em esperar que os fundos comunitários cheguem?