Isaki Lacuesta. Um cineasta em lugar incerto

Isaki Lacuesta. Um cineasta em lugar incerto


À Solar de Vila do Conde, o cineasta catalão traz uma exposição a fazer um percurso pelas suas obras de videoinstalação. Amanhã apresenta uma visita guiada ao público, seguida de uma conversa. 


Cavalos, charretes, uma praça de touros. Velas, o interior de uma igreja, promessas, bênçãos, santos, cães, cães de caça, a bandeira de Espanha e a caça. E a missa. E o padre na missa. Um homem que limpa o balcão de um café e a missa. Os crentes na missa em que parece ter o olhar fixo enquanto passa o pano pela vitrina e ainda a caça. Quatro ecrãs dispostos em pares, frente a frente, quatro ecrãs com charretes e cenas de cães e uma praça e cenas de caça e a missa e os cavalos que hão de vir ou já passaram e o título, o que dá o título a esta instalação de vídeo de Isaki Lacuesta é o que não se vê: que estaria, o que está, ao centro, no espaço vazio que deveria ser ocupado pelo suspeito de um crime que, falsamente acusado, passou três anos na prisão. Isto numa história que aconteceu de verdade em El Rocío, perto de Huelva, para onde Lacuesta viajou para seguir o caso de um duplo homicídio ali ocorrido.
O título, explica Jordi Costa no texto de apresentação da exposição que acaba de ser inaugurada na Solar – Galeria de Arte Cinemática, em Vila do Conde, refere-se ao espaço vazio que deveria ser ocupado pelo falso culpado que passou três anos na prisão, no meio de um labirinto judicial incapaz de determinar o território da verdade. L’acusat (El acusado, un caso del sur), chamou-lhe. O acusado que, depois de libertado, está aqui neste lugar em que o cineasta catalão nos coloca. 
De sobreposições e da intenção com que as monta havia-nos já Lacuesta falado na peça anterior, Où en êtes-vous, Isaki Lacuesta?. Uma curta-metragem comissariada pelo Centro Pompidou de Paris quando em 2018 lhe dedicou uma retrospetiva e que Lacuesta, realizador em foco do 28.º Curtas Vila do Conde (a decorrer até domingo e em cuja programação se insere também esta exposição que procura percorrer a diversidade da sua obra) e que em paralelo ao seu cinema, predominantemente documental, veio construindo um corpo de trabalho de videoinstalação, pensou de início como uma instalação. Em 2018, respondeu então à pergunta que o Pompidou vem colocando aos cineastas que programa: “Perguntam-me onde estou. Digo que estou aqui e ali ao mesmo tempo”. Como veremos.
“Agora não estou aqui”, ouvimo-lo, enquanto nos mostra uma sucessão de imagens de jovens negros, desconhecemos ainda em que local. “Isto é Joanesburgo. Se não soubesse em que cidade e em que ano estamos seria difícil adivinhar. Será que os jovens em Joanesburgo seguem a moda dos anos 50, 70 ou do presente?”. Também nós não temos resposta. “É como se simultaneamente vivessem todo o século XX. Também eles vivem em dois lugares e dois tempos diferentes”. E “de burg a burg” — nesta peça Lacuesta fala-nos em francês — “où en êtes-vous?”. De burgo a burgo, onde estás? “Joanesburgo, São Petersburgo”, e um grupo de jovens russos, jovens da marinha. É o dia 1 de maio de um ano que desconhecemos mas que sabemos recente. Como em Cuba, aonde viaja também neste filme num movimento mimético dos cineastas da nouvelle vague ainda à procura de filmar a revolução que filmaram mas 60 anos depois, também num primeiro de maio em São Petersburgo Lacuesta segue os manifestantes à procura da revolução de 100 anos antes.
“Sigo os manifestantes que seguem até à muralha”. Na muralha, sobre pavimento de paralelepípedos feito praia, gente que toma banhos de sol. “Os trabalhadores têm um novo ritual. Os slogans também estão atualizador. Tentei filmar imagens que funcionam como um meio para outras imagens que nunca filmei. Procuro as imagens da revolução”. Mas passaram-se 100 anos, e vemos gente em frente a paredes, homens, mulheres, corpos de fato de banho: “Vendo estes corpos ao sol e difícil imaginar as execuções contra as paredes. Ou os corpos”.
E vai repetindo Lacuesta sobre os lugares e os tempos diferentes em que estamos permanentemente ao mesmo tempo no cinema nesta videoinstalação. “Este projeto está intimamente ligado ao que é o cinema. Estamos sempre a viajar sem nos movermos. Podemos estar numa quinta no Ohio, na Rússia, o cinema permite-nos isso”. Apresentou-a já em oito ecrãs, aqui apresenta num único. Mas outras obras que traz a Vila do Conde, algumas delas terminadas há semanas, apresentam um percurso inverso. “Alguns destes trabalhos podem ser transformados dependendo do espaço e já foram exibidos noutros formatos. Aqui foi feito um trabalho de adaptação ao espaço da Solar. Procurámos mostrar diferentes trabalhos, em diferentes formatos”, diz-nos o realizador numa conversa ao telefone ainda antes de viajar para Vila do Conde, onde amanhã faz uma visita guiada pela exposição (16h), seguida de uma conversa (às 16h30, no Teatro Municipal de Vila do Conde). É o primeiro festival de cinema em que participa desde que em março, em Pamplona, numa apresentação desta mesma obra, foi infetado com covid-19.
Para trás, à entrada do percurso expositivo, está Lugares que no existen. Google Earth 1.0. Projeto a partir de uma série de fotografias e de registos fílmicos de lugares que não aparecem no Google Maps. Por Espanha, Colômbia, Ecuador, Rússia, Austrália, Isaki Lacuesta foi à procura deles para os documentar numa instalação e descobriu que não só existem como existem terrenos militares, campos de treino, edifícios governamentais, parques naturais onde especuladores aproveitam para construir ilegalmente praias de nudismo. Mas a exposição que se intitula apenas de Isaki Lacuesta inclui também vários trabalhos feitos em colaboração com músicos, por exemplo. Como Ramírez (11012017), desenvolvido em conjunto com o músico Refree, com quem o cineasta produziu já várias exposições, instalações, filmes e videoclipes. Ou El Rito (2011) que, na cave da Solar, apresenta um olhar sobre um matadouro de Girona, terra natal de Lacuesta, um matadouro em que encontramos um imã acusado de fomentar a jiade a partir da sua mesquita (acusações nunca provadas, segundo o realizador) e em que “o sacrifício do animal é privado da sua natureza sagrada, de toda a sua ritualidade”, e os gestos humanos, executados dia após dia, se “tornam mecânicos, quase automáticos”.
Além da exposição, que acaba de ser inaugurada na Solar – Galeria de Arte Cinemática, onde pode ser vista até 21 de novembro, o festival exibe um conjunto dos filmes do cineasta que Jordi Costa descreve como “o mais antigo dos cineastas do futuro”. A começar hoje, com La Leyenda del Tiempo (2009), a que se seguem, um por dia, até sexta-feira Entre dos Aguas (2018, Concha de Ouro no Festival de Cinema de San Sebastián), híbrido entre a ficção e o documental que se desenrola entre as histórias paralelas de dois homens confinados — um numa prisão e outro num navio da marinha espanhola — que partilham uma tatuagem e que são, afinal irmãos, La noche que no acaba (2010), em torno da atriz Ava Gardner no seu período espanhol, e ainda Cravan vs Cravan, documentário realizado em 2002 e o primeiro filme de Isaki Lacuesta, a recuperar a história de Arthur Cravan, o poeta e pugilista sobrinho de Oscar Wilde que desapareceu no México em 1916 em circunstâncias por decifrar.