Fragilidades na concessão de crédito por parte do Banco Espírito Santo (BES) e vendas efetuadas pelo Novo Banco por valores inferiores são as principais conclusões da auditoria realizada pela Deloitte e entregue à Comissão de Orçamento e Finanças, levando os deputados a aprovarem audições urgentes do ministro das Finanças, João Leão, e do governador do Banco de Portugal, Mário Centeno. Apesar do documento omitir matérias consideradas confidenciais – desde logo, não apresenta lista de devedores –, essa informação está disponível aos deputados, uma vez que têm acesso aos nomes dos credores, às exposições e perdas associadas. Ainda assim, alguns já vieram a público, como é o caso da Ongoing (Nuno Vasconcellos), a Sogema (Moniz da Maia), Prebuild (Gama Leão), Grupo Tiner, Grupo Trico ou Promovalor (Luís Filipe Vieira).
É certo que na próxima semana as atenções vão estar voltadas para as audições do presidente executivo do Novo Banco, António Ramalho, e do presidente do Fundo de Resolução, Máximo dos Santos (que é também vice-governador do Banco de Portugal), agendadas para dia 15 de setembro, não só para explicar as conclusões do documento, mas também para justificar a injeção de capital na instituição financeira que já pediu até agora cerca de 3.000 milhões de euros ao abrigo do acordo de capital contingente e prepara-se para pedir mais 900 milhões de euros.
O que diz o relatório
Segundo a auditoria, o modelo de governance implementado no BES «durante o período aplicável da análise evidenciava um conjunto de fragilidades ao nível do processo de concessão e acompanhamento de operações de crédito. Essas fragilidades resultavam, entre outras, em insuficiências na documentação acerca dos devedores, risco das operações e respetivas garantias».
E foi mais longe ao garantir que foram identificadas situações de processos de concessão de crédito sem análises de risco no momento da concessão de crédito «ou com limitações relevantes ao nível da informação financeira, orgânica e operacional dos devedores, inexistência de avaliações dos colaterais imobiliários e mobiliários, assim como, no âmbito do processo de acompanhamento, a inexistência de análises de risco regulares dos devedores e exceções ao nível da reavaliação regular dos ativos recebidos como colateral».
A Deloitte lembra, no entanto, que no período anterior a 4 de agosto de 2014 e até novembro de 2014 não era obrigatória a preparação de parecer prévio por um órgão independente da concessão para aprovação de operações de crédito. «O normativo interno em vigor definia apenas a realização de análises de risco anuais, incidindo sobre a situação financeira e posição do cliente ou do grupo económico, e a atribuição de rating interno para os clientes. Não estava estabelecida a obrigatoriedade de realização de análise de risco específica ou de emissão de parecer específico sobre as operações, previamente à sua contratação». E acrescenta que, «desta forma, as análises de risco não refletiam os riscos de crédito específicos associados às operações em análise nem o seu efeito no perfil de risco dos clientes».
Ainda assim, no período após a resolução, chamou a atenção para o facto de o Novo Banco ter implementado «de forma gradual um conjunto de alterações nos seus normativos e procedimentos internos que contribuíram para a melhoria dos processos nesta matéria».
Em relação ao registo de perdas por imparidade, verificou-se um reforço relevante em devedores incluídos na amostra no último trimestre de 2017 e em 2018, representando cerca de 50% do total de perdas entre 4 de agosto de 2014 e 31 de dezembro de 2018.
Segundo a análise da Deloitte a uma amostra de créditos e ativos (imóveis, títulos de dívida) com perdas superiores a 10 milhões de euros (entre 4 de agosto de 2014 e 31 de dezembro de 2018), do total de perdas acumuladas de 2579,7 milhões de euros nesse período, houve 1144,5 milhões de euros (equivalentes a 44%) que foram registados entre 18 de outubro de 2017 e 31 de dezembro de 2018 (período em que 75% do Novo Banco era já detido pelo fundo de investimento norte-americano Lone Star).
Do valor de perdas restante, 936,8 milhões de euros foram entre 4 de agosto de 2014 e 30 de junho de 2016 e 498,3 milhões de euros de perdas entre 1 de julho de 2016 e 17 de outubro de 2017.
Contudo, diz a auditora que «uma parte relevante dos devedores para os quais foram registados reforços de imparidade em 2017 e 2018 apresentavam já incumprimento ou outros triggers de risco em períodos anteriores».
No reforço de perdas em créditos e outros ativos, segundo a Deloitte, há vários fatores que contribuem para isso, seja reavaliação das garantias, vendas de créditos de evolução negativa na atividade do devedor, incumprimento dos planos de reestruturação ou insolvência ou sentenças judiciais adversas.
Olhando especificamente para as perdas com créditos, das perdas acumuladas totais, no valor de 2143,4 milhões de euros entre 4 de agosto e 31 de dezembro de 2018, 1023,7 milhões de euros (equivalentes a 47,8%) foram registadas entre 18 de outubro de 2017 e 31 de dezembro de 2018.
Já 732,8 milhões de euros de perdas em créditos foram entre 4 de agosto de 2014 e 30 de junho de 2016 e 386,9 milhões de euros de perdas entre 1 de julho de 2016 e 17 de outubro de 2017.
Nos imóveis (a segunda rubrica que gerou mais perdas, a seguir aos créditos), entre 18 de outubro de 2017 e 31 de dezembro de 2018 foram geradas perdas de 96,4 milhões de euros.
Vendas abaixo do valor
O documento chama ainda a atenção para o facto de as vendas efetuadas pelo Novo Banco terem sido realizadas por valores inferiores e, em alguns casos, de forma significativa, face aos valores das últimas avaliações disponíveis. O relatório da consultora afirma que, a este respeito, verificou que a instituição financeira «não tinha implementado até 31 de dezembro de 2018 procedimentos documentados de backtesting das avaliações efetuadas para este tipo de ativos, tendo em consideração as vendas efetuadas», acrescentando que a instituição financeira não tinha «implementado procedimentos de análise e justificação formal das variações ocorridas nas avaliações obtidas, comparativamente às avaliações anteriormente disponíveis. Adicionalmente, verificámos que nas propostas de aprovação das vendas são normalmente descritas as características e condicionalismos dos imóveis, mas não é incluída uma justificação ou explicação para a diferença entre o valor de venda e o valor de avaliação anterior. De referir que esta justificação não era requerida de acordo com o normativo interno aplicável».
A consultora detalhou dois processos de venda, cuja identificação dos ativos foi ocultada por serem considerados confidenciais. Num deles, o «imóvel era detido por um fundo de investimento imobiliário integrado no perímetro de consolidação do Novo Banco. Não nos foi disponibilizada evidência da aprovação do Conselho Geral de Participantes para alienação deste ativo, conforme requerido pelo Regulamento de Gestão do fundo em vigor à data da venda». No outro, «a aprovação da venda do imóvel foi efetuada pelo Departamento de Gestão Imobiliária e pelo administrador do pelouro na sequência da obtenção de uma proposta e subsequente processo negocial com o comprador».
Ramalho responde
O Novo Banco reagiu às conclusões da auditoria, alegando que «sempre analisou e, portanto, conhece o último beneficiário das operações de venda de ativos», e diz que o «relatório da auditoria confirma expressamente o cumprimento dos deveres do Novo Banco» neste âmbito.
De acordo com a instituição financeira liderada por António Ramalho, «não é apontada pelos auditores qualquer falta de informação adicional para fazer o escrutínio dos últimos beneficiários efetivos. No caso concreto, para o Novo Banco e para todos os bancos (ou instituições bancárias) do sistema bancário europeu, os últimos beneficiários são os gestores com poderes para tomar decisões em nome dos seus ‘depositantes», acrescentando que prestou todos os esclarecimento pedidos pela Deloitte.
Já no início do mês, o CEO tinha revelado que 95% das perdas referidas na auditoria da Deloitte devem-se a ativos anteriores a 2014, garantindo que «não há um único crédito, um único novo nome que tenha sido concedido posteriormente à resolução». Quanto às vendas de ativos feitas nos últimos anos aconteceram, segundo António Ramalho, porque o banco a isso estava obrigado, cumprindo as regras de concursos internacionais, com assessoria especializada e com escrutínio.
«Com a venda do banco iniciou-se um processo de reestruturação até 2020, com o objetivo de limpeza do balanço e também de desenvolvimento do banco decorrente. Procurou-se uma solução que minimizasse e beneficiasse o rating da República e manteve-se o banco uno, manteve-se o tipo de capitalização constante e anual, no sentido de assegurar que tínhamos o melhor resultado possível dessa estrutura», justificou.
MP iliba administração atual
Já esta semana, o Ministério Público (MP) considerou «não existir prova bastante» para sustentar a acusação do presidente do PSD de que a administração do Novo Banco alienou ativos «ao desbarato», afastando assim qualquer providência cível. Esta é a resposta à carta enviada pelo primeiro-ministro, António Costa, à procuradora-geral da República, Lucília Gago.
Nessa carta, o primeiro-ministro pediu que o MP desenvolvesse os procedimentos cautelares adequados à proteção dos interesses financeiros do Estado.
A PGR entendeu que, «face aos elementos factuais e de esclarecimento disponíveis, que tiveram a finalidade limitada de aferir a viabilidade do recurso à tutela jurisdicional cautelar, afigura-se inexistir prova bastante suscetível de suportar a conclusão de que futuras alienações de ativos imobiliários – se efetuadas nos moldes e termos anteriores – são suscetíveis de causar ao Estado dano grave e de difícil recuperação».
O Ministério Público sustentou que as vendas efetuadas «foram aprovadas pelo Conselho de Administração Executivo e pelo Conselho Geral de Supervisão do Novo Banco, mereceram parecer favorável da Comissão de Acompanhamento e também a não oposição do Fundo de Resolução (no que diz respeito aos ativos integrados no referido mecanismo de capitalização contingente), no sentido de ser autorizada a venda dos ativos em causa».
Já sobre a «disparidade verificada entre os valores contabilístico e bruto dos imóveis e o preço pelo qual vieram efetivamente a ser alienados, poder-se-ia afirmar – numa análise meramente oblíqua a perfunctória – que se tratou de vendas que não resultaram de uma gestão diligente ou que não foram realizadas tendo em conta os melhores interesses daquela instituição de crédito e dos seus acionistas. No entanto, esta conclusão afigura-se, no mínimo, precipitada».
Recorde-se que a auditoria da Deloitte aos atos de gestão do BES/Novo Banco é referente ao período entre 2000 e 2018 (ou seja, abarcando o período quer antes quer depois da resolução do BES e criação do Novo Banco), decorria desde o ano passado e deveria ter ficado concluída em julho, tendo sido entregue na semana passada. O Ministério das Finanças já tinha revelado que o relatório revela perdas líquidas de 4.042 milhões de euros no Novo Banco (entre 4 de agosto de 2014, um dia após a resolução do BES, e 31 de dezembro de 2018) e «descreve um conjunto de insuficiências e deficiências graves» no BES, até 2014, na concessão de crédito e investimento em ativos financeiros e imobiliários .