Na tradução da Eneida aplicou Carlos André o seu melhor saber de especialista em literatura latina e a sensibilidade de poeta recém-assumido. Foi nos idos de 1983 que, do século I a.C., a obra máxima de Virgílio lhe acenou, naquele jeito desafiante que consente esperas mas não admite recusas. O professor de línguas e literaturas clássicas da Universidade de Coimbra, muito embora nunca tivesse deixado de manter convívio com o grande poema latino, demorou-se. Horácio e Tibulo, cujas traduções publicou também na Cotovia, intrometeram-se. E havia ainda muito para fazer: um mestrado para concluir, aulas para preparar, um doutoramento em literatura latina, teses para orientar, ensaios para escrever, uma Faculdade para dirigir, um Centro para fundar – o Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau (IPM) que coordenou até 2018. E havia Camões, que nunca lhe deu sossego. Quase quatro décadas passadas, a Eneida aí está – em verso e na língua de Camões.
O primeiro encontro do leitor com o protagonista da Eneida pode ser perturbante. Virgílio põe-lhe diante um homem desalentado, desistente, em lágrimas. Eneias é o único herói épico que, na sua primeira aparição, nos surge a desejar a morte. Não como glória triunfada, à semelhança de um Aquiles, mas sem honra nem brilho, como vontade esvaziada de sentido, como se fosse preferível morrer uma só vez a tantas vezes. A imagem que se nos prende à retina é a de um vencido. Não será a única. Três livros adiante, quando o foco narrativo subitamente se volta sobre ele, como uma câmara cinematográfica pronta a surpreender-lhe o heroísmo, que vê o leitor? O predestinado herói fundador de Roma, ocupado com a construção de Cartago, a cidade inimiga donde sempre veio desgraça para Roma. Eneias é também o único herói épico que se esquece do seu próprio projecto de heroísmo nos braços de uma mulher, Dido. Das contradições da Eneida falou ao i Carlos Ascenso André, o autor da nova tradução portuguesa da epopeia latina.
Como é que foi a sua recente peregrinação pela China? Sei que até ganhou um epíteto: o Fernão Mendes Pinto do século XXI.
Ganhei outro: o cônsul de Portugal [Vítor Sereno] também dizia que eu era o jesuíta do português [risos]. A experiência foi fantástica, a um ponto tal que eu acho que me mudou. Fui uma pessoa e vim outra, e isto não é retórica. E ainda bem. Cumpri a missão, regressei no tempo em que quis regressar. Convém dizer que Portugal não me enviou para a China. Foi um senhor chinês que foi a Coimbra convidar-me. Perguntei-lhe: mas qual é o projecto? E ele disse: não sei, é apoiar o desenvolvimento do português em Macau e na China; vai dirigir um centro que nós estamos a criar e esse centro vai ser o que o professor for capaz de fazer.
E aceitou de imediato ou hesitou?
Hesitei, a responsabilidade era muita. Estava com 60 anos, na altura, e já não é propriamente idade para emigrar, mas achei que o desafio era fascinante. O que mais mexeu comigo foi a dimensão, o confronto com uma outra escala. Ao fim de alguns meses em Macau, entendi que a minha missão se cumpria no interior da China e, portanto, passei a viajar. Cheirava-me aqui uma universidade que tinha um projecto de lançar o português e lá ia eu perguntar que ajuda era necessária. Esta viagem permanente por sítios que estavam algures no meu imaginário, outros de que nem sequer tinha ouvido falar, marcou-me. Tive um impacto emotivo quando vi do alto o rio Yangtzé. Ou o rio Amarelo, na cidade de Lanzhou, que no meu imaginário era perdido no norte da China, a caminho da Mongólia. E até fui fazer rafting, queria fazer a experiência.
E o que mais fez durante este período de andanças?
Andava por lá de noite, a passear sozinho nas cidades. Olhavam para mim como um estranho, mas ali o estranho era-me eu. Frequentei alguns dos templos chineses, primeiro como turista, depois com olhos de cultura. Comecei a conviver com escultores, a gostar da pintura chinesa, a ser um leitor assíduo de Confúcio e, às tantas, dou-me conta de que Confúcio é contemporâneo de Sócrates. E é curioso como, a esta distância, há os dois maiores vultos da humanidade. Comecei a ver o mundo a outra luz e a dar-me conta da pequenez deste nosso país. Coimbra, a minha universidade, passou a ser insignificante. A Europa é do tamanho da China. Estou num país em que o meu continente é do tamanho desse país. Fui-me transformando. Enquanto director da Faculdade de Letras, eu era um gestor muito pragmático, frio na gestão das coisas. Vim muito mais espiritual do que fui, sem que isso signifique nenhuma crença. Acho que regressei bastante mais sereno, mais humilde, capaz de viver com os meus iguais e saber que são todos meus iguais e a respeitar o que deve ser respeitado. Uma coisa que me espantou sempre foi o respeito que tinham por mim, por duas razões: os meus cabelos brancos e por ser professor. Ser professor para eles é um pedestal, não de ciência mas de honorabilidade. Um professor tem de ser honorável e é ele que tem de construir essa noção.
A humildade não é lição que se aprenda na Universidade de Coimbra?
A lição da humildade faria bem à Universidade de Coimbra e a muitos dos seus agentes.
Nesta sua tradução da Eneida, as notas de rodapé estão reduzidas a um aparato que poderíamos considerar mínimo. Pretendeu com isto marcar alguma distância da Academia, sempre imersa em notas de rodapé, e do seu modo de fazer?
Eu aprendi, ao longo dos últimos anos, a não ter a presunção de pilotar quem quer que seja. Deixei de ser piloto. Se pensarmos num autor de leitura difícil em Portugal, somos levados a pensar em Aquilo Ribeiro ou Camilo ou, no campo do romance histórico, em Alexandre Herculano, um certo Saramago ou num certo Fernando Campos. Os romances desses autores são-nos servidos sem notas. O leitor corrente é obrigado a ler “A Casa do Pó” sem saber de nada do que se passa naquele trajecto estranho, sinuoso e quase clandestino do séc. XVI. Se quer uma leitura perfeita de “O Prisioneiro da Torre Velha”, do mesmo autor, tem de conhecer a vida toda de Dom Francisco Manuel de Melo e de tudo quanto rodeia isso, mas não está lá nada. O próprio autor não anotou e nenhum dos editores quer anotar. Que direito tenho eu de anotar um texto narrativo – porque a Eneida é um texto narrativo – com essa profusão toda, pilotando assim o meu leitor? Podem dizer-me: “mas há as questões mitológicas, há as personagens”. E eu a isso respondo com a enorme tranquilidade filha do tempo que vivemos: mas essas estão todas na Wikipédia. Se o meu leitor quer saber quem é Juno, ou quem é Mezêncio, está lá. Não há necessidade de anotar aquilo que se encontra com um clique. É preciso é anotar aquilo que o leitor, mesmo percorrendo tudo, não encontra. Ir mais longe do que isso era tornar a obra uma obra académica, e eu acho que Virgílio é grandioso de mais, é inesgotável. Tornar a obra grandiosa era esgotá-la, era uma ofensa à grandeza de Virgílio.
Sobre Virgílio o leitor comum saberá pouco. Que depois de escrever as Bucólicas e as Geórgicas, escreveu a Eneida e que – diz a lenda biográfica – à beira da morte, a quis destruir. Quem foi este homem?
O que temos sobre Virgílio são sobretudo notas soltas, testemunhos de Sérvio, Donato, alguns desabafos de Propércio e de Horácio. Sabemos que vivia na corte de Augusto, o que é estranho para um epicurista; que era protegido de Mecenas, a quem terá apresentado Horácio. Teve um percurso filosófico. A escola de Sino, em Nápoles, foi a que mais o marcou. Fez toda a sua vida de reflexão. Temos vaga informação de que, depois das guerras civis, ficou deserdado das suas terras em Mântua e veio até Roma para tentar salvar alguma coisa. Ele viveu sempre muito preso da dimensão de Roma e de Itália. E é por isso que escreve, assim encadeadas, as três obras: as Bucólicas, as Geórgicas, um poema de descrença, que sabe que a chacina, a razia foi longe demais, e a Eneida. No final, decidiu fazer uma viagem à Tróade (onde fora Tróia) para conhecer os espaços onde tinham acontecido as coisas que ele narrava e não suportou a viagem. “A Morte de Virgílio”, de Hermann Broch, um romance densíssimo, faz jus ao retrato crepuscular de Virgílio. Há tudo para saber e nunca chegaremos a sabê-lo. Isto deixa-nos muitas aporias, a que o tradutor não tem que dar solução.
Quando é que começou a namorar a Eneida?
O namoro vem desde 1983, quando tive a Eneida leccionada pelo professor Walter de Medeiros. Já a tinha estudado em literatura latina, mas só no curso de mestrado a comecei a ver com outros olhos.
Depois de tantos anos de convívio com o poema de Virgílio, porque é que só agora avançou com a tradução?
Nunca seria capaz de traduzir a Eneida em vida do Doutor Walter de Medeiros. Não é por acaso que a obra lhe é dedicada. Era uma espécie de ofensa. Disse-me que não a traduzia por não ser capaz. Dizia que precisava de 12 anos para traduzir, um ano por cada livro. Quando chegasse ao fim, o início estava tão longe que precisaria de 6 anos para rever (já íamos em 18). E, portanto, já não teria anos de vida para este trabalho. Perante esta atitude, não tive coragem. Depois da sua morte, em 2012, precisei de uns três anos para ser capaz de vencer a resistência e avançar. Tive dois estímulos muitos importantes: Vasco Graça Moura e Frederico Lourenço. No início não foi fácil, porque na China tinha funções exigentes, uma actividade intensa que me retirava tempo. Quando saí da China, fiquei dispensado e pude conviver com o texto da Eneida em permanência. E aí ganhei outro ritmo.
O primeiro quadro da Eneida afasta-se bastante da galeria dos quadros épicos de Homero. Põe-nos diante de um Eneias desalentado, impotente, frágil, em lágrimas, que preferia ter morrido em Tróia a ter de enfrentar aquela tempestade. Depois, em Cartago, esquece-se do seu próprio projecto de heroísmo. Apetece perguntar: e é isto um herói?
Há uma diferença nas lágrimas. Na tempestade, chora despudoradamente à vista de toda a gente. Quando vê, na gruta de Dido, as pinturas da guerra de Tróia, volta a chorar. Com Dido, quando está para partir, ele chora mas é dentro, a lágrima não se vê. Há uma transformação dele que não a da falta de vontade, apenas um controle de emoções que lhe é imposto pelas circunstâncias de ter recebido uma ordem. Eneias faz um percurso contra-vontade. Se for ler na Eneida todas as vezes que ele quis ir ao contrário, não lhe chegam os dedos das mãos. Quer sempre voltar atrás, mas tem de ir para a frente. Ele é um desistente que não pode desistir, luta contra tudo, a começar por lutar contra si. A grandeza de Eneias é ser herói sem deixar de ser humano, assenta na sua própria fragilidade. Fez todo o seu percurso porque tinha de o fazer, ainda por cima sabendo que não chegaria ao fim dele. Sabe, desde o início, que não será ele o fundador de Roma, nunca verá o império nem nada de parecido. Eneias ganha sem ganhar.
A Eneida é uma obra de algumas traduções para português. O que é que esta nova tradução vem acrescentar?
Não acrescenta nem retira, é diferente. Não tenho o atrevimento de dizer que ela é mais, ou menos. Já houve um tempo em que eu era assim, tinha muita vaidade nas coisas; agora não. Procurei fazer uma tradução que fosse um compromisso entre o texto original, o tempo do texto original, o meu texto e os meus leitores neste tempo. Para estabelecer este compromisso não posso deixar de ter presente que há dois mil anos entre uma coisa e a outra e eles carrearam para dentro do poema muita informação à qual eu não posso ser insensível. Não a conheço toda, mas ela está lá, viajou. Há uma transferência do texto original para o leitor actual. Procurei ser fiel a coisas que eu considerava importantes: o verso, o código retórico: se há quiasmo, há quiasmo; se há repetição, há repetição, se há onomatopeia, há onomatopeia. Há um esforço da minha parte de manter alguma fidelidade, procurei manter a dimensão semântica, que assenta na metáfora. Quando Virgílio usa uma linguagem cifrada, eu acho que não devo decifrar a linguagem. O meu trabalho tem uma preocupação de natureza estética.
Houve problemas práticos, dificuldades que se eriçaram mais nesta tradução?
Há sempre muitas dificuldades de tradução. E às vezes são coisas aparentemente simples. Por vezes, a palavra óbvia não funciona. Dou-lhe um exemplo. No momento da tempestade, quando há a união física de Dido e Eneias, haveria a tentação de introduzir ali um tom erótico, um pouco de amor; mas não há amor, não há erotismo. O que há é um acasalamento. Se o leitor é levado por palavras nossas a uma noção erótica ou de amor, o texto original sai defraudado. Eu, que tinha traduzido tanto erotismo em Ovídio, tentei traduzir respeitando o que está no texto: chamaram casamento a uma coisa que não era. É o que lá está. E quem apadrinhou foram as ninfas, que não estavam a cantar, estavam a ulular, que é uma coisa tenebrosa, sinistra. Foi assim que se deu o acasalamento a que eles chamaram casamento. A tradução tem de ser sensível a isto.
O leitor comum pode ter a tentação de pensar que está perante uma velharia literária com mais de dois mil anos. O que é que a epopeia de Virgílio tem para entregar aos leitores do século XXI?
A Eneida tem virtualidades de que normalmente não se fala. Pode ser lida como uma normal narrativa do primeiro ao último verso – e é uma história. E pode ser lida por fragmentos, em espaços. O leitor que se demore, por ex., no livro IV, que é a tragédia de amor de Dido e Eneias, vai descobrir um livro de amor estranho, porque não é uma tragédia de amor normal, é um livro da desistência do amor. Vai ter uma descoberta de um outro Eneias, e uma leitura diferente de Dido. E isso basta-lhe. O leitor do livro VI tem de ser culto, tem de perceber toda a filosofia que subjaz a esta transformação do mundo. Este livro tem lugar em todas as leituras e quem o ler com atenção verá que a Eneida não é uma epopeia de duas ou três personagens. É uma galeria infinda: Eneias, Evandro, Camila, Palante. O painel de figuras é vastíssimo. E quando encontrarmos estas personagens todas e pensarmos no mundo moderno, somos convidados a questionarmo-nos perante a nossa história. Acho que o grande mistério da Eneida é a sua dimensão profética. E hoje faz todo o sentido.
Quer desenvolver?
A Eneida é a história do ocidente, já o disse Eliot. Disse-o, mais recentemente, o professor francês Xavier Darcos, que tem um livro com um interessante jogo de palavras, “Virgile, notre vigie”. A Eneida não é a história de Eneias. É a história de Eneias e de Augusto. Ambos se enlaçam de um tal modo que não percebemos se é Eneias que é Augusto ou se é Augusto que é Eneias. É a história de um império, a história de todos os impérios. Ao fazer isto, Virgílio vai filiar a história da Europa em Tróia, no Oriente, e não na Grécia. Mas depois liga-a a um árcade porque o principal aliado de Eneias é Evandro, que é árcade, ou seja, grego. É ali que se dá a aliança que se desfez com a guerra de Tróia. Ou seja: há uma guerra que destrói um império, há um sobrevivente desse império que virá a fundar a raiz de um novo império, mas alicerçando essa fundação numa ponte com os destruidores do seu império. E isto, sendo complexo, faz-nos ir buscar as raízes da Europa a outro lado que não onde habitualmente se vão buscar. Tudo isto é um caldo. Nós, leitores, sabemos que este império cresceu e morreu e, depois deles, muitos outros. A história da Europa é a história dos impérios da Europa: o austro-húngaro, o francês de Francisco I e Napoleão, o britânico. E nesses impérios há muita gente que cometeu os desmandos que Augusto cometeu. Depois, na prática, Eneias recusa a sua filiação divina, nunca é um herói homérico, é sempre um ser humano, o que já é contraditório. Virgílio escreve o poema fazendo com isto a divinização de Augusto, responde ao desejo dele de ter origem divina, mas com um Eneias que nunca é divino. Quer dizer, faz uma legitimação deslegitimada. Por outro lado, este Eneias, à semelhança de Augusto, tem um percurso que é uma sementeira de cadáveres.
O pio que não era pio… O epíteto que lhe é aplicado ao longo de todo o poema [pius Aeneas] nem sempre lhe assenta.
Sem dúvida. Basta pensar na cena final, diante de um inimigo prostrado, desguarnecido, impotente. Pior: Turno estende as mãos, suplicante. Tudo aquilo por que lutou entrega de bandeja: a honra, o poder, a noiva e o território. Turno não leva, cede. É o momento em que Eneias hesita, se deixa levar pelas fúrias e mergulha a lança a sangue frio, num sacrifício bárbaro que contraria tudo aquilo que o pai lhe tinha dito [hás-de poupar os que se submetem].
Mas voltemos à dimensão profética da Eneida.
Augusto é de facto o artífice da pax romana, mas é, usando um anacronismo, um maquiavélico, é frio. Desenhou a régua e esquadro o seu percurso de triunfo. Se Augusto tivesse levantado um dedo para o defender, Cícero não teria sido morto. Augusto deixou cair quem tinha de deixar cair, matou quem lhe convinha matar, defendeu quem lhe convinha defender. Os nossos impérios na Europa foram feitos de personagens contraditórias como esta: Henrique VIII, Carlos V, Filipe II. Não sou capaz de olhar para este século XXI e para estes imperadores sem deixar de pensar que vivemos num tempo dos sonhadores de impérios. Nunca o mundo teve tantos candidatos a imperador ao mesmo tempo: um na América, um na China, um na Rússia, no Brasil. Temos até aprendizes de imperador de segunda, imperadores fantoches como nas Filipinas. Outro que acha que é herdeiro de um império, na Turquia. Ao lermos a Eneida, temos de nos confrontar com esta leitura da história do ocidente. O mundo de hoje é herdeiro de uma história feita de impérios que se sucederam e, de repente, parece que os impérios não se querem suceder mas querem coexistir. E esta é a preocupação que eu, com a minha vida de mundo, tenho neste momento. Acho que a Eneida se encaixa na perfeição neste ocidente que nós somos.
A leitura que acabou de fazer pede reflexão, noções de um segundo nível de complexidade. Os nossos dias a tudo parecem pedir legibilidade máxima e alta definição…
Desafio o leitor a não ir com pressa, convido-o a deter-se nas figuras, até porque elas não se repetem e não temos de as procurar, surgem no tempo certo. Dou-lhe um exemplo curioso: Mezêncio, que é uma figura escabrosa, particularmente macabra e odiado pelo seu povo, tanto que teve de fugir e juntar-se a Turno [o inimigo de Eneias]. Tinha práticas absolutamente macabras, castigava um criminoso grudando-lhe um cadáver para que a putrefação se contaminasse. Claro que é uma forma de homenagear o morto com a vida, servir um vivo ao morto, mas é uma coisa horrível. Mas o que é curioso é que Eneias mata primeiro o filho dele, Lauso, e, na sua morte, o narrador tem uma verdadeira exclamação épica: “Enquanto houver vida jamais tu vais morrer no meu canto”. Isto dito de um inimigo é uma coisa notável. Mas depois, com a morte de Mezêncio, o narrador perde a isenção, comete o pecado de se mostrar e tem em relação a esta figura explicações de simpatia que são absolutamente inimagináveis num canto desta natureza. Não há duas personagens iguais. Nada na Eneida é feito a papel químico, todas as personagens são individuais.
Que tempo de vida prevê para esta sua tradução?
As obras-primas – e acho que a Eneida é a obra-prima – são eternas, uma tradução é efémera. Tenho consciência de que esta minha tradução, por muito bem que digam dela, tem prazo de validade. Sobre uma tradução, no tempo em que é publicada, passam muitos anos e isso significa que a linguagem se alterou. Não nos damos conta, mas a linguagem altera-se todos os dias, todos os anos, todos os decénios. A palavra 'amor' hoje não significa o que significava há 10 anos, a palavra 'casa' também significa outra coisa. Quando os anos passam sobre as palavras, normalmente acrescentam alguma coisa, às vezes acrescentam mal porque lhe acrescentam usura, e quando acrescentam usura em excesso, estragam a palavra; outras vezes acrescentam bem: trazem-lhes semântica.
E o que mais pode contribuir para o envelhecimento de uma tradução?
A transformação do leitor. Eu traduzo para um leitor potencial: um leitor minimamente cultivado no século XXI. Em 2050, não sei como ele vai ser, sei que se vai transformar. Se eu concebo a tradução como um fato para uma pessoa, obviamente que esse fato está transformado, passou de moda, não no sentido banal da expressão, mas no sentido em que já não veste da mesma forma. E há um terceiro elemento: as obras transformam-se com o tempo em função das leituras que delas vão sendo feitas. Nos próximos 30 anos, vai haver muitas pessoas que vão continuar a ler a Eneida, e esta continuação de leitura vai transformá-la. O leitor, ainda que não tenha cultura e não tenha acesso a essas leituras e interpretações, respira o ambiente onde essas transformações aconteceram. O poema está transformado. E isso faz com que a minha tradução já não seja a mesma. A Eneida não foi feita para isso, mas ela transforma-se. Não é uma frustração, é uma consciência da realidade.