Sócrates condenado

Sócrates condenado


Sócrates alertava os jovens para os sofistas, gente bem-falante que apenas se dedicava a produzir aparência.


Imagine-se um homem no topo de um telhado sacudindo uma almofada de penas e criando um turbilhão de pequenos flocos brancos que esvoaçam. Enquanto o homem sacode a almofada, diferentes pessoas apontam-no com o dedo e julgam-no. Para uns, o problema está na origem das penas – os patos depenados, criados em cativeiro sem condições. Para outros, a preocupação está no desrespeito social ao sujar as ruas. Há ainda quem se preocupe com o risco de queda e há até quem possa ver neste gesto um ato de loucura.

A comunicação é parte integral do ser humano, fundamental e necessária. Gostamos de falar sobre pessoas, coisas e ideias. Por falar de pessoas considere-se, por exemplo, falar do vizinho, do colega ou do amigo. Por falar de coisas entenda-se falar de carros, de futebol ou de roupa. E por falar de ideias considere-se falar de liberdade, de justiça ou da amizade.

Do mesmo modo que quero acreditar que não existe quem consiga falar apenas sobre pessoas, acredito que ninguém consegue dedicar-se exclusivamente às ideias. Aristóteles foi um dos primeiros a refletir sobre este tema e a ele se atribui o seguinte provérbio: pessoas sábias falam de ideias, pessoas comuns falam de coisas, pessoas medíocres falam de pessoas. Aceito que o nosso caráter possa ser definido de acordo com a nossa maior ou menor dedicação a um destes temas. Talvez esta dedicação seja o que nos torna mais ou menos úteis à humanidade, até porque, quando o assunto evoca o ser humano, a maledicência e a mentira têm geralmente uma porta aberta. Acreditem que dificilmente encontramos quem connosco esteja disposto a trocar ideias. Esse papel cabe quase exclusivamente aos bons professores.

A palavra tem um poder inigualável. Faz chorar, rir e envergonhar. Pode dar força ao maior dos cobardes e fazer desfalecer o mais forte. Custa-me constatar que uma grande parte dos meios de comunicação social estejam impregnados de indivíduos que tentam lavar-nos o cérebro. Falam-nos de pessoas e de coisas. Julgam-nos idiotas – entenda-se que esta expressão, ao contrário do que se popularizou, não significa pessoa capaz de muitas ideias. Trata-se de uma confusão que remonta ao étimo grego idéa.

Sócrates, filósofo grego, alertava os jovens para o perigo representado pelos sofistas, gente bem-falante que não visava estabelecer o que era verdadeiro, apenas se dedicava a produzir aparência. Como consequência, foi acusado de corromper a juventude e condenado à morte. Porque, nessa época, as penas eram executadas, morreu. Note-se que, segundo Platão, houve até quem quisesse libertá-lo pagando a fiança, mas Sócrates terá preferido sofrer a pena em nome da coerência, da justiça e da verdade.

Voltemos à imagem do homem em cima do telhado e observemos questões como “ser-lhe-á possível recolher todas as penas?” Talvez não… O mesmo acontece com cada palavra que sai da nossa boca. Espalha-se e dificilmente voltará atrás. Por essa razão, quem domina a sua língua domina a sua vida.

 

Professor e investigador