Yulin. O festival de carne de cão que indigna a maioria dos chineses

Yulin. O festival de carne de cão que indigna a maioria dos chineses


Em tempos de pandemia, aumenta a pressão sobre o festival. Para uns, é um momento de juntar a família, para outros, é um show de horrores e falta de condições sanitárias. 


Há muito que o festival de carne de cão em Yulin, na província de Guanxi, causa consternação, mesmo dentro da China. Já há dois anos mais de metade dos chineses queriam que acabasse, segundo uma sondagem da Xinhua, após várias tentativas das autoridades para proibir a prática, enfrentando sempre feroz oposição. O tradicional festival, que durará dez dias, abriu portas no domingo, mas este ano está sob uma pressão ainda maior, com as notícias de que a covid-19 foi transmitida a humanos no mercado de animais selvagens de Wuhan – uma hipótese possível, mas não confirmada pelos cientistas. Entretanto, ativistas dos direitos animais e tradicionalistas digladiam-se nas ruas de Yulin e na internet. Uns defendem que os cães são animais de companhia, não de consumo; outros falam em hipocrisia ocidental.

 Antes de mais, importa desmitificar o preconceito de que os chineses, no geral, são fãs de carne de cão: 69% nem sequer provaram, segundo um relatório da Associação de Bem-estar Animal de Pequim, de 2017. Afinal, falamos de um país gigantesco, quase com o dobro da população europeia e marcadas clivagens regionais. Quando olhamos para a montanhosa Guangxi, no sul, a província com maior diversidade étnica do país, tem pouco a ver com as vastas extensões rurais do interior, ou com megacidades como Pequim ou Xangai, dominadas pela etnia han, maioritária no país. 

No que toca à remota cidade Yulin, ou floresta de jade, que ganhou estatuto de floresta nacional pelas suas enormes extensões de vegetação, come-se cão há mais tempo do que se regista história. É uma carne popular na região, bem como nalgumas partes do nordeste, mas o típico festival de Yulin só surgiu nos anos 1990. Entre os zhuang, que compõem uns 32% de Guangxi, diz-se que comer carne de cão aquece e dá resistência para o inverno. No entanto, neste caso, não é isso que está em questão: o festival celebra o solstício de verão, literalmente o dia mais quente do ano.

Para muitos habitantes, é uma oportunidade de juntar amigos e família, num animado mercado ao ar livre, desfrutando de um ensopado de cão acabado de fazer, com lichias e muita bebida à mistura. Para outros é um show de horrores, com cães mantidos em gaiolas, esfolados vivos ou pendurados em açougues, terríveis condições sanitárias, maus tratos generalizados, histórias de mascotes roubadas ou de pessoas infetadas com raiva.

“Eu tenho dois cães em casa, sinto-me mesmo triste ao ver como os cães são cruelmente mortos e comidos. Como habitante local preciso de fazer algo para impedi-lo”, explicou Tangwei Lingling, uma ativista animal, numa reportagem do Global Times, em 2013. Já Ma, que cresceu na cidade e emigrara há anos, só guardava boas memórias. “Consegues cheirar Yulin antes de entrar na cidade”, garantiu, recordando os tempos bem passados no festival. “Não compreendo porque é que podemos comer outros animais sem problema mas não cães”. 

 

Cães e gatos É uma questão que está no centro da discussão. O Governo chinês, à boleia da recente proibição de consumo de animais selvagens, reconheceu o estatuto de cães e gatos como animais de companhia, proibindo que sejam vendidos como gado. De facto, quando se está habituado a ver os cães como animais domésticos, carinhosos com os seus donos e inteligentes, é impossível não sentir repulsa com o que se sucederá em Yulin nos próximos dias. Contudo, o mesmo argumento poderia ser utilizado com porcos, que têm ganho popularidade como mascotes e revelam níveis de inteligência muito superiores aos cães.

Com uma diferença: os canídeos são carnívoros, e, como tal, uma presa geralmente evitada por outros carnívoros. Não só porque se perde energia ao logo da cadeia alimentar, dando-lhe menos valor nutricional, como têm maior probabilidade de conter patogénicos, indicou um estudo conjunto da Universidade de Granada e de Berkley. “Os cadáveres de carnívoros jogam um papel muito diferente de outros animais nos ecossistemas”, explicou uns dos autores, Marcos Moleón Paiz, à Sinc.

Esse é um dos principais receios de saúde pública. Em tempos de pandemia, grandes aglomerações como o festival de Yulin são ideais para propagação de coronavírus. E há indícios de que a exposição continuada a carne de cães não-vacinados aumenta a probabilidade de contrair raiva, além da falta de higiene no transporte e abate: como não há regulações para a indústria, esta opera no mercado negro, e alguns cães até são roubados. Depois, temos o problema da crueldade animal em si: há queixas sérias quanto ao festival de Yulin, derivadas da crença de que a carne de um cão sabe melhor se este morrer em stress.

Este ano, com a maior pressão sobre o Estado, os comerciantes de Yulin queixam-se que “é mais difícil adquirir cães vivos de fora da província de Guangxi, devido à repressão do Governo no transporte de animais entre províncias”, notou Peter Li, analista da Humane Society International. “Em vez dos enormes camiões matadouros dos anos passados, que traziam milhares de animais de uma só vez, dizem que agora é mais comum ver pequenos camiões de cães produzidos em localidades próximas”, considerou, em declarações à One Green Planet.

Apesar dos muitos apelos às autoridades de Yulin, para que sigam o exemplo de Shenzen e Zhuhai, na província vizinha de Guangdong, que proibiram o consumo de cão em nome do “consenso de toda a civilização humana”, ninguém tem dúvidas que isso será difícil aplicar em Yulin. “Se tentares impedir as pessoas de comer carne de cão, podes ser recebido com uma faca”, avisou um dirigente municipal, Li Junqing, à Yangcheng Evening News, há sete anos, quando já se debatia a proibição.