A ideia de ver o nosso próprio reflexo num objeto é fascinante mas, por vezes, nem imaginamos o que estamos a fazer quando nos olhamos ao espelho. Este gesto habitual pode trazer consigo uma inquietação em torno da pergunta filosófica “quem sou?”. Por princípio, podemos afirmar que o espelho não mente, já que nos revela a verdade que se apresenta diante dele.
Na história da Branca de Neve, a bruxa pergunta ao espelho: “Espelho meu, espelho meu, há alguém mais bela do que eu?” “Sim”, responde-lhe o espelho, deixando-a devastada.
É aterrador quando nos dão a resposta errada. Errada, na medida em que não era aquela que desejávamos ouvir.
Agora que as grandes superfícies comerciais vão reabrir, gostava de alertar todos aqueles que acreditam nos espelhos e que julgam que estes dizem sempre a verdade. Já alguma vez lhe aconteceu chegar a casa, olhar-se ao espelho e perceber que, afinal, uma certa peça de roupa não lhe fica assim tão bem? É justamente aqui que reside o ponto. Há espelhos que nos mentem. O mercado e a evolução da tecnologia permitiram aguçar este lado do marketing e conseguiram fazer com que os espelhos nos mintam dissimuladamente. As lojas de roupa ou os ginásios que o digam – são autênticas máquinas de distorção da realidade.
Ainda sou do tempo da diversão da casa dos espelhos na Feira Popular. Lá, todos os espelhos eram assumidamente mentirosos e, apesar de tudo, divertíamo-nos muito com isso. Talvez pelo descaramento da mentira. A quem não se recorda ou nunca conheceu este divertimento, explique-se que era um circuito labiríntico de pequenas salas de espelhos que brincavam com as nossas formas, faziam-nos gordos, magros, cabeçudos, anões ou gigantes… Ríamo-nos das mentiras que nos contavam. Sabíamos que, lá no fundo, tudo aquilo era ilusão. O problema surge quando olhamos para os espelhos mentirosos e acreditamos que aquilo que estamos a ver é verdade. Em última análise, não é o espelho que nos julga, mas a nossa consciência. A mesma consciência que nos acompanha e pressiona a cada decisão. A mesma consciência que nos obriga a seguir os padrões de beleza que alguns cretinos tiveram a liberdade de definir.
Assim sendo, importa perceber que os espelhos nos dão uma visão externa da matéria. Por conseguinte, a sociedade torna-se refém da ideia labiríntica da aparência e distraída para a ideia de interioridade. Para os distraídos, importa reter a importância de ganhar segurança e autoestima de modo que não sejam as “vozes” dos “espelhos” a definir o rumo de cada um.
Professor e investigador