E, de repente, enterramos o amplo consenso social e político que mobilizava o país na luta contra a pandemia. Que esse consenso tenha sido desbaratado pelos máximos representantes da nação, na casa da democracia, sem que disso se tenham dado conta, é bem revelador da distância que não raras vezes se intromete entre eleitores e eleitos. Veremos qual é o preço que Portugal vai pagar por esse capricho de celebrar o 25 de Abril como se nada estivesse a passar-se. Como se o país político fosse de Vénus e o país real fosse de Marte.
Vamos ser claros: a celebração de Abril no Parlamento não é uma questão menor, é uma afirmação de princípios. É a uma afirmação de uma democracia forte. A liberdade, a democracia e os direitos humanos exigem um esforço de aprofundamento contínuo. Uma luta constante.
O dia em que se der a liberdade como garantida é o dia em que se começa o caminho para a servidão.
A questão não é, por isso, se o Parlamento pode celebrar a Revolução dos Cravos. Pode e deve. A questão é outra: está a Assembleia a fazê-lo da maneira adequada? Está a ser solidária com as regras por si impostas a todos os portugueses? Está alinhada com as exigências de contenção social e em solidariedade com o sofrimento de tantos milhares de portugueses?
Evidentemente que não.
Ora, é precisamente contra isso que muitas vozes de todos os quadrantes políticos e da sociedade civil se têm insurgido – grupo em que me incluo. A ausência já confirmada de dois ex-Presidentes da República, Jorge Sampaio e Aníbal Cavaco Silva, de capitães de Abril e de outras personalidades com relevo na sociedade é um sinal poderoso do erro em que a AR continua a laborar.
O sentimento das ruas é que a classe política está a isentar-se das obrigações que foram impostas a todos os cidadãos. E que, entre outras coisas, os impedem de fazer funerais aos familiares ou de celebrar casamentos, ir à escola ou abrir os seus negócios, de onde ganham o pão nosso de cada dia. Deste ponto de vista, a celebração calendarizada para a AR é a antítese do espírito de Abril. Não se pode celebrar plenamente a liberdade se essa evocação é fundada na desigualdade. A desigualdade em que a AR se permite gozar de direitos que veda a outros. Como se todos fôssemos iguais, mas uns mais iguais do que outros. Não se pode celebrar a liberdade se não há solidariedade para com o povo que se representa.
Essa é talvez uma das noções mais perversas deste tempo que vivemos. A classe política é depositária da mais nobre força de confiança: a representação política delegada por cada cidadão nos seus representantes.
Creio que o lugar de um representante não é acima dos seus representados. É ao lado. As lideranças afirmam-se pelo bom exemplo e pela capacidade de não deixar ninguém para trás. O que a AR está a fazer é a colocar-se chocantemente acima dos cidadãos e a deixar alguns para trás em nome de um capricho. Está a dar um mau exemplo. Que não se admirem se o Parlamento continuar a perder apelo junto do povo.
E, permitam-me o lamento, era tão fácil pensar numa sessão que, com sobriedade e contenção, fizesse o país sentir o poder mobilizador da liberdade e a esperança que mora no horizonte de realizações coletivas personificado pela democracia. Como país, conseguimos pôr milhares de crianças a estudar à distância – um esforço notável das escolas, dos professores e do ministério. Por favor, não me digam que não conseguimos que a Assembleia celebre a liberdade sem ter de agremiar mais de 130 pessoas, incluindo muitos que estão obrigados ao dever de recolhimento domiciliário pelo estado de emergência. É claro que conseguimos. Era fácil, era digno e solidário e razoável. Era Abril. Mas, tragicamente, ainda há quem se julgue dono de Abril neste país. A medida da liberdade de todos é a conformidade com o pensamento de alguns.
Perante a trágica falta de bom senso de Eduardo Ferro Rodrigues e da esmagadora maioria dos deputados, vozes discordantes, de todos os quadrantes políticos, começaram a fazer o seu caminho. De repente, todos os que se manifestaram contra os rituais de Abril, na AR, nos moldes em que estes foram apresentados passaram a ser perigosos fascistas, opositores da democracia e do Estado de direito. Este nível de debate é primário, populista e até patético de tão desfasado da realidade que é – como se, por exemplo, João Soares e outras vozes da esquerda, do centro e da direita fossem, subitamente, infetados por um qualquer covid totalitário. A tentativa de desqualificar qualquer voz discordante através de rótulos ou de insultos é um atalho pouco inteligente para tentar ganhar um debate numa democracia. Isto é a prova de que em muitos setores ideológicos, 46 anos depois, a liberdade ainda não saiu da sua infância. Comemorar Abril também é quebrar o monopólio dos que se acham tutores da democracia.
Insisto: ainda não é tarde para corrigir o erro e decidir celebrar a Revolução no espírito do nosso tempo. O Presidente da República ainda tem uma oportunidade de liderar pelo exemplo. Não é tarde para dar aos portugueses uma celebração de Abril que inclua todos, e não só alguns, que viva a liberdade em vez de cristalizar a sensação de desigualdade. Que reconcilie a AR com os seus representados e dê ao regime um novo fôlego para enfrentar as dificuldades que se erguem como montanhas à nossa frente.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira