Amor Fati. Na vida e na morte, uma ode ao amor (ou ao destino)

Amor Fati. Na vida e na morte, uma ode ao amor (ou ao destino)


Depois de Ama-San, Cláudia Varejão regressa ao Visions du Réel com o seu novo filme. Uma rede de retratos de amor, qualquer que ele seja, que o festival suíço estreia numa edição feita online.


É numa tradução livre para arménio feita pela própria personagem que nos surgem as palavras que em 380 a.C. Platão pôs na boca de Aristófanes em O Banquete. É a voz de uma das mulheres de uma das famílias com que a realizadora Cláudia Varejão conviveu durante mais de um ano de rodagens para o seu novo documentário, que se estreia sábado no Visions du Réel, por onde havia já passado o seu filme anterior, Ama-San. Desta vez em edição online, por força das circunstâncias, e para já apenas em território suíço. E talvez seja uma visão  demasiado romântica essa de Aristófanes, dirá Cláudia Varejão. Mas continua a servir-nos aqui, ainda assim, se quisermos. Depende só de como olhamos para eles: o amor e o destino que fazem o título de Amor Fati.

Assim que comecei a ver o filme, e mesmo não tendo identificado no imediato a origem das palavras que nos chegam em arménio como introdução, lembrei-me d’ O Banquete, de Platão. Que, no caminho pelo qual o filme nos conduz, será mais um ponto de chegada do que de partida. O ponto de partida no caminho que Amor Fati percorre são as evidências de semelhanças físicas entre pessoas que se amam. Foi afinal O Banquete que esteve na origem de tudo isto?

Não, O Banquete não me apareceu de início. Apareceu-me no final, na montagem do filme, e num momento de crise, em que tinha mostrado o filme a algumas das pessoas com quem trabalho na Terratreme [produtora de Amor Fati]. A ideia era a mesma, o material era o mesmo, mas tinha mais personagens e era mais difícil de acompanhar. Nessa crise, eu que faço psicoterapia já há muitos anos, partilhei com a minha terapeuta essa minha angústia e ela falou-me d’ O Banquete: ‘Vá ler O Banquete’. E eu fui ler e pensei ‘voilà, o Aristófanes pode ajudar-nos aqui’. Com este discurso dele no início do filme, ele prepara olhar do espetador para aquilo que vem a seguir. Introduz-nos ao tema, a esta viagem preparada ao longo dos anos. Foi uma bóia. Uma bóia preciosa.

Mas essa visão não esteve sempre lá, mesmo sem fazer esta ligação, desde o início do processo?

Há vários discursos n’ O Banquete e escolhi este em particular porque fala desta ideia de que, nos primórdios da vida, éramos um só: tínhamos quatro braços e quatro pernas e éramos estes seres altamente potentes e altamente audazes que, numa tentativa de perceber o sentido mais lato da vida, começaram a escalar aos céus. E Zeus não aceitou esta ousadia…

… e dividiu-os ao meio.

Dividiu-os ao meio. E no momento em que foram divididos ficaram altamente perdidos, enfraquecidos e permanentemente à procura da sua outra metade para voltarem a sentir esta plenitude de forças. Isto remete-nos para uma ideia bastante romântica do amor, que não é o olhar do filme. O filme vem de uma mania que eu tenho desde miúda e que muitos de nós temos, percebi ao partilhar o filme com outras pessoas, de olhar para as pessoas e achar que as pessoas que vivem juntas têm determinadas características físicas muito próximas. Esse foi o ponto de partida que depois se foi desenvolvendo em interesses mais profundos, mais afetivos. Portanto, comecei por ir à procura de pessoas que se diziam pertencer a este grupo, o grupo das pessoas que se tornam parecidas ao longo do tempo, e quando lancei este repto lancei muito aberto que poderia ser qualquer tipo de relação: uma relação amorosa, uma relação de amizade…

Lembro-me bem de ver esses apelos no Facebook.

Exatamente. Lançámos apelos nas redes sociais e fizemos castings presenciais, vários. Tudo o que fossem padrões de semelhança física e de uma grande afinidade afetiva na vida interessava-nos. Apareceram-nos pessoas muito distintas. Pares, trios, grupos. E o filme começou a fazer-se desse encontro, daquilo que as pessoas me devolveram – e foi permanentemente, até ao fim, este pas de deux, eu dou, tu dás, nós vamos, foi sempre uma coisa feita muito de ambas as partes. Interessava-me desde o início fazer um retrato afetivo do país. Afetivo e contemporâneo, ou seja: quais são os retratos amorosos no momento histórico que vivemos, quem são as pessoas, que momento é que estamos a viver? A diversidade, a total diversidade, também era uma coisa que me interessava.

A rodagem deste filme estendeu-se no tempo muito para lá do que é o habitual. Um processo que acaba por fazer eco no que é Amor Fati: um mosaico de retratos, aos quais vamos regressando a espaços, aos quais nos vamos ligando. 

Durante um período de um ano, um ano e meio, fui filmando. Ia voltando às várias casas, às várias vilas, ia-as cruzando. O  filme é um retrato da minha relação com estas pessoas e é muito fiel àquilo que fomos vivendo. Ele comprime numa hora e meia aquilo que se estendeu por um ano e meio. E foi fundamental ter sido rodado em simultâneo entre todas as personagens, porque há ligações que nascem dessa relação de pequenos ecos: quando estou a filmar determinado par estou a pensar noutro que fez qualquer coisa semelhante – ou ainda outro que posso estimular para que vá nessa direção também.

A propósito, houve alguma espécie de construção aqui ou o que vemos das pessoas é o que elas são nas vidas delas?

Foi construído dos dois lados. Mas a construção a que talvez te refiras, a única que posso ter tido é a da criação artística e cinematográfica. Fisicamente não foi preciso adaptar nada, aquilo que vemos são as vidas das pessoas, o que elas podem dar e que têm para partilhar… Tanto que a equipa, à semelhança do Ama-San, é muito reduzida: eu e uma pessoa do som. Não há espaço para moldar o real de uma forma mais obsessiva ou mais profunda como podemos fazer na ficção. 

Este filme acaba por exigir uma estrutura assim.

Ajuda para a criação da intimidade. Estamos numa relação de intimidade, como quando vivemos com alguém. Estas pessoas foram extremamente generosas, confiaram na minha entrada na vida delas e fizeram isto comigo, porque tudo ia sendo conversado, partilhado, outras coisas aconteciam no imprevisto, na espontaneidade das situações, na vida. Quanto mais íntima e afetiva for a relação, estou em crer, pelo menos no meu cinema, que mais longe na intimidade, que é o que me interessa retratar, conseguimos ir.

Sobre esse inesperado que também vai acontecendo, é ele que nos dá uma das cenas mais fortes do filme: quando a morte entra por Amor Fati adentro. Isto é tão brutal que quase nos faz duvidar sobre se terá acontecido mesmo. Depois perceberemos que sim.

Aconteceu. Já estava numa fase de início de montagem. A família telefonou-me a dizer que o velório era no dia, meti-me logo no carro e fui, sozinha. Tive vários pensamentos paradoxais: vou só enquanto amiga que fiquei da família, vou enquanto realizadora, levo câmara, não levo câmara? Arrisquei levar. No dia em que cheguei estive no velório, falei com a família e perguntei se faria sentido darmos continuidade a este retrato por mais um tempo e percebermos, já que o filme fala de uma relação de afetos, uma relação de vida, como é que funciona quando uma das partes fica sem a outra. E a família, com um grande entendimento emocional e intelectual da situação, foi a primeira a dizer que devíamos continuar. E filmámos no dia seguinte, no funeral.

Mas o filme logo nos dará também o outro lado. À morte segue-se sempre algo de novo. Há sempre algo a nascer.

Sim. O parto também encerra em si o fim e o início. O fim do processo de gravidez, de uma união da mãe com o filho, e o início promissor de mais metades que se irão encontrar e do mistério da vida. O filme também fala sobre mistérios: o mistério das relações, o mistério dos encontros, o próprio filme é meio misterioso, não se percebe para onde vai. Temos de nos deixar ir, ou pode ser um filme difícil. A gravidez da Antónia também aconteceu a meio da rodagem. É uma sorte,  uma sorte incrível.

Uma sorte… ou a vida.

Tens toda a razão, é a vida a acontecer. O facto de o filme ter sido filmado com tanto tempo permitiu que a vida acontecesse lá dentro. Nesse sentido é extremamente complexo: parte de uma curiosidade que são as semelhanças físicas, depois confronta-se com a própria realidade quotidiana da vida e com os laços afetivos que nos unem e depois deixa-se ainda invadir pela vida a acontecer: a morte e a vida. Fico contente por o filme ter acabado por ganhar leituras várias, extremamente complexas e ricas, que estão muito para além do meu desejo inicial. É uma ode à vida, uma ode à morte, uma ode ao cinema, que consegue conter dentro dele a vida toda.