Nunca as histórias, venham elas com o cheiro do papel ou pela imediatez do ecrã, foram tão procuradas. E o gigante de streaming Netflix é, provavelmente, a empresas que em vez de minguar mais tem prosperado em número de clientes por estas semanas. Isto para nos levar a uma das películas de produção própria que recentemente aterrou na plataforma, e que se está a tornar num campeão de visualizações um pouco por todo o mundo: Milagre na Cela 7.
O filme do cineasta turco Mehmet Ada Öztekin foi lançado em 2019 e percorre, durante mais de duas horas, a história de um pai com uma deficiência intelectual, que no início dos anos 80 habita num vilarejo rural na Turquia. Não é, contudo, a primeira vez que o drama é contado, visto que se trata de uma adaptação de um filme sul-coreano homónimo, dirigido e escrito por Lee Hwan-kyung. Há ainda versões coreanas ou filipinas e até indianas a partir do original de Hwan-kyung.
Os argumentistas Özge Efendioglu e Kubilay Tat adaptaram a narrativa para se encaixar nos moldes do seu país e, em simultâneo, se manter suficientemente global. Aqui, Memo é bem conhecido no vilarejo, pasta as suas ovelhas, às quais deu nomes, e persegue pássaros. É feito de doçura e tem um objetivo maior: fazer sorrir a filha, Ova (Nisa Sofiya Aksongur, a convincente e adorável atriz de nove anos), de quem cuida em parceria com a avó dela, Fatma (Celile Toyon Uysal). Mentalmente, dirá Fatma quando Ova se queixa do facto de gozarem com o pai, terão a mesma idade. A menina percebe a singularidade do pai e, embora o bullying a entristeça, a disponibilidade sem limites dele colmata todos os entraves. Entendem-se perfeitamente em todos os planos, e a linguagem secreta que criaram – com um chamamento que começa com “lingo lingo” – é apenas uma das manifestações de um amor sem mácula. E é este amor filial que o meterá em trabalhos. Atirado para trás das grades, depois de um mal entendido, é na cela 7, com um conjunto de outros reclusos, que Memo será o catalisador de um milagre. Ou, na verdade, de vários.
A engenharia da representação A tarefa de interpretar o protagonista de um dos sucessos feito pela quantidade de espetadores que foi chegando pelo passa a palavra – a notar pela quantidade diminuta de artigos na imprensa ocidental, pelo menos –, coube a Aras BulutİÍynemli. O ator é bem conhecido da indústria televisiva turca e, apesar de esta não ser a sua primeira incursão no cinema, depois deste boom em torno de O Milagre da Cela 7 será certamente uma das estrelas mergentes além-fronteiras. Aos 29 anos, Aras já foi distinguido por diversos papéis e é visto como um dos grandes talentos da representação do seu país, mas a sua formação nada tem a ver com os palcos: licenciou-se em engenharia aeronáutica na Universidade de Istambul.
Nascido em Istambul, cidade onde sempre viveu, a 25 de agosto de 1990, o ator é um assumido adepto do Besiktas. Tem dois irmãos mais velhos, que também dão cartas no mundo do espetáculo: Orçun Iynemli, é ator; e Yesim Iynemli é apresentadora de televisão e cantora. Aras começou por fazer publicidade, e foi descoberto num anúncio pelo cineasta Zeynep Günay Tan, que o chamou para o seu primeiro papel em Öyle Bir Gecer Zaman ki (2010), uma série histórica inspirada em factos reais. Foi colecionando interpretações a partir daí e tornou-se numa personalidade muito conhecida na Turquia devido às séries Muhteşem Yüzyıl (2011-2014) e Içerde (2016-2017). Em 2013, chegou ao grande ecrã com a longa metragem Mahmut ile Meryem, do cineasta que agora assina Milagre na Cela 7, e nesse mesmo ano interpretou o papel de um deficiente motor no filme Tamam Miyiz?, de Çagan Irmak.
Nas redes sociais, multiplicam-se os elogios à interpretaçao de Aras e há até quem se questione se, de facto, o ator não teria nenhum problema físico ou mental na vida real – uma prova de que cumpriu, efetivamente, o desafio maior da sua profissão: fazer acreditar.
Um outro milagre Nos últimos dias, Aras já usou as suas redes sociais para agradecer o destaque dado à película. “A jornada de O Milagre da Cela 7 começou com amor. Adoramos a nossa história. O nosso filme continua a criar o seu próprio milagre. Chegou a muitas pessoas em todo o mundo nos dias mais difíceis. Vamos agarrar-nos uns aos outros com amor. Obrigado pelo vosso interesse”, escreveu no Instagram. Antes de chegar à Netflix e, assim, de se estender pelo mundo, o filme já tinha feito história de outro modo: foi a primeira película turca alguma vez estreada no Paquistão.
A resposta emocional ao filme de Mehmet Ada Öztekin é fácil de explicar, até porque as fórmulas usadas saltam à vista. Milagre na Cela 7 é um filme que, apesar da operação de cosmética perante as realidades da pobreza e da prisão, consegue explorar os elos emocionais mais primordiais, como o amor paternal. E depois traz-nos a superação da injustiça e a lição da força que, afinal, pode ter uma alma pura. “Tu não tens menos do que eles, tens mais (…) Tens um coração de ouro”, diz a dada altura a avó Fatma, o pilar funcional deste núcleo familiar tão diferente – e, naquilo que é essencial, tão melhor. Talvez seja apenas disso que precisamos por estes dias. De olhar para o mundo pelos olhos de quem em tudo vê uma promessa, e com esse olhar límpido encontrar uma forma de redenção.