O pedido é logo feito à entrada: só entra uma pessoa de cada vez. E para que ninguém se sinta desconfortável se for preciso esperar, termina-se ao fundo das escadas uma tenda para proteger do sol ou da chuva, já que assim vai ter de ser nos próximos tempos.
À porta, o enfermeiro mede a temperatura no ouvido e faz as primeiras perguntas à procura de tosse e febre, os sintomas suspeitos da doença que alterou os dias. A pandemia apertou as regras de segurança, mas é mesmo só isso: no Centro de Sangue e Transplantação de Lisboa, como noutros locais de colheita do país, os dadores continuam a ser bem-vindos. E necessários: as colheitas a nível nacional caíram 38% em março, fruto do adiamento de sessões de colheita habituais em escolas ou empresas. No pavilhão 17 do Parque da Saúde de Lisboa, que até aqui representava 15% a 20% das colheitas do Instituto Português do Sangue e da Transplantação de Lisboa, o objetivo é agora compensar as filas que há poucos meses se faziam em universidades, locais de trabalho e carrinhas.
É uma manhã de terça-feira e não há muito movimento, mas os dadores vão chegando. “Nalguns dias, já temos tido filas às porta”, conta um dos elementos da equipa. É o que acontece geralmente quando há mais notícias, mas a preocupação é manter a adesão.
Os enfermeiros usam equipamentos de proteção individual, incluindo a máscara facial, o dispensador de desinfetante alcoólico é paragem obrigatória para todos os dadores e são esses cuidados as mudanças que mais saltam à vista. Preenche-se o questionário de avaliação da saúde do dador e o inquérito sobre antecedentes clínicos e eventuais exposições a fatores de risco para doenças infecciosas – o processo habitual nas dádivas de sangue – e segue-se a pequena “entrevista” num dos gabinetes, que vai mais longe no despiste na avaliação do dador e ajuda a esclarecer dúvidas.
Na entrada do centro de colheita estão visíveis as novas regras: não deve entrar no espaço de colheita se viajou nos últimos 28 dias para zonas com transmissão comunitária de covid-19, se esteve doente com febre, tosse ou falta de ar nos últimos 28 dias, se esteve em contacto com doentes potencialmente infetados com covid-19, se veio de uma zona que esteja de quarentena por casos de covid-19.
Ana Paula Sousa, médica de imunohemoterapia e diretora técnica do Centro de Sangue e da Transplantação de Lisboa, explica que são medidas de precaução para garantir a segurança na dádiva de sangue e precaver o que descreve como um risco “teórico” de transmissão do SARS-CoV-2 pela transfusão. “De acordo com a literatura científica disponível, não existe evidência, à data de hoje, de que os vírus respiratórios possam transmitir-se por transfusão, incluindo coronavírus. Sendo um vírus novo, temos de admitir um risco teórico, mas não é conhecido nenhum caso”.
Para prevenir, conta-se com a colaboração dos dadores na resposta às questões. “A informação tranquiliza quem dá sangue e também salvaguarda a prática da medicina transfusional”, diz a médica. E os casos em que a infeção possa ser assintomática? Ana Paula Sousa explica que para já não existe evidência que exija regras mais apertadas, mas é uma realidade que continua a ser monitorizada e as medidas poderão ser reforçadas, se tal vier a ser necessário. Neste momento, várias instituições de referência, nomeadamente a OMS, seguem esta abordagem e consideram que fazer testes ao sangue pode ser, para já, prematuro, tendo em conta que não existe evidência científica de transmissão por transfusão. Mas admite-se por exemplo que, como medida precaucional, o sangue possa ficar em quarentena para a eventualidade de os dadores virem a manifestar sintomas após a dádiva, que devem reportar aos centros de colheita.
ALIMENTAR AS RESERVAS Maria Antónia Escoval, presidente do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), faz um primeiro balanço das últimas semanas: em virtude das medidas de distanciamento social e do estado de emergência, foram desmarcadas 115 sessões de colheita de sangue, o que correspondeu a 6026 dadores e 38% da previsão das colheitas. Ao mesmo tempo, os consumos nos hospitais diminuíram 28%, uma redução atribuída à suspensão de cirurgias não urgentes e outras atividades. Mas os hospitais vão continuar a precisar de sangue e, mantendo-se os constrangimentos nas sessões de colheita habituais, o IPST tem estado a reforçar o envio de SMS a dadores e a fazer o agendamento prévio das dádivas. Em março foram feitos 1386 contactos telefónicos e 491 agendamentos. Maria Antónia Escoval sublinha que a adesão tem sido boa e reforça também o trabalho que tem estado a ser feito nos meios mais rurais pelas associações de dadores, parceiras do IPST. “Nos meios urbanos é mais fácil esta deslocação, pelo que, nos meios rurais, esse trabalho é essencial e depende muito do esforço que tem sido feito pelas associações, encontrando formas de adaptar as sessões de colheita às novas regras de distanciamento e segurança, por exemplo deslocalizando as sessões dos locais habituais para gimnodesportivos, onde há mais espaço”.
No Centro de Sangue de Lisboa estão a ser feitos 100 a 200 telefonemas diários a dadores regulares, explica Ana Paula Sousa, para agendamento de dádiva de sangue. E os resultados do último mês dão alguma tranquilidade: tem havido 120 a 160 dádivas ao fim de semana, por dia, e durante os dias da semana chegam a ser aproximadamente 100 dadores. “Temos tido uma boa resposta à chamada, e um outro sinal muito positivo é que os dadores de primeira vez mais do que duplicaram em março em relação ao ano passado”, diz a responsável. Houve 227 colheitas de pessoas que nunca tinham dado sangue e acharam que este era o momento de se estrearem. “E pode ser, desde que sejam cumpridas as regras de segurança”, apela a médica.
CARTA BRANCA PARA CIRCULAR Não é o caso dos dadores com que nos cruzamos, todos já experientes. Elsa Gonçalves é enfermeira no Hospital Militar. Costuma dar sangue duas vezes por ano e as mensagens “quase diárias” do IPST fizeram com que não esperasse mais, até por não saber como vão ser as próximas semanas no serviço, onde até aqui não tinha havido casos suspeitos de covid-19. “Pensei que era melhor vir agora, antes de eventualmente não poder dar”, diz enquanto espera pela sua vez.
Bruno Cristóvão, empresário de 42 anos, quebrou o isolamento voluntário para responder à chamada. Também dador regular, bastou o telefonema para o fazer sair de casa, onde tem estado confinado desde que achou que era melhor fechar a loja de bicicletas – para evitar expor-se a si e ao público. Não notou diferenças no atendimento e deixa o apelo: “É algo que todos podiam fazer”. Hugo Granado, de 41 anos, já não dava sangue há quatro anos, mas conta com 30 dádivas no currículo. Desta vez, a principal diferença foi ter sido mandado parar pela polícia num controlo na Segunda Circular – contingências da pandemia. (No site do IPST é possível descarregar uma declaração que atesta a deslocação para ir dar sangue.) Fora isso, e os 30 minutos na fila de carros que se formou no acesso a Lisboa, tudo correu dentro da normalidade. Menos linear é fazer contas ao futuro: estagiário num restaurante que entretanto fechou, voltou ao fundo de desemprego. “Ando a arrumar a casa e a fazer algumas remodelações. Economicamente, vai ser muito complicado”.
A dádiva de sangue total, em que se colhem cerca de 470 ml de sangue – parece pouco, mas representa o equivalente a 10% do volume de sangue no corpo humano –, demora menos de 20 minutos. Os dadores regulares aparecem habitualmente para a chamada dádiva de sangue por aférese, em que é feita uma separação das componentes do sangue e se consegue uma colheita seletiva de plaquetas e eritrócitos, um processo que pode demorar uma hora. Ana Paula Sousa explica que são ambas importantes: uma dádiva de sangue total, menos demorada, permite obter três componentes sanguíneos, nomeadamente os eritrócitos, que podem ser utilizados, por exemplo, para um doente que precise de sangue numa cirurgia. Já na colheita por aférese conseguem-se plaquetas em dose suficiente para uma dose terapêutica para um doente imunosuprimido, enquanto para obter a mesma quantidade através do sangue total são precisas três ou quatro colheitas de sangue total. Esta dose terapêutica de plaquetas, obtida por aférese, é por exemplo suficiente para um doente com uma leucemia que precise de uma transfusão, necessidades que não param neste período. “Neste momento temos as reservas nacionais de sangue estáveis, com quase todos os grupos sanguíneos com reservas para sete dias ou mais, mas são reservas que precisam de ser alimentadas diariamente porque diariamente há consumos”, diz Ana Paula Sousa. Os grupos O- e B- são os que têm as reservas mais em baixo, para quatro a sete dias.
No ambiente silencioso da sala de colheitas, só a televisão vai lembrando as notícias da epidemia lá fora. Recostados nas camas, os dadores cumprem a missão, com a balança que pesa o sangue a dar sinal quando chega ao fim o processo. Seguem-se bolachas e sumo ou café para repor a energia e as recomendações habituais: evitar esforços e exercício físico no dia da dádiva e beber muita água. Reforçam-se os novos pedidos: se aparecerem sintomas de infeção respiratória, ligar para o local da colheita. Mas para a mensagem principal continuam a valer os cartazes pré-pandemia espalhados pelo centro: o slogan “é essencial dar” ou, como se lê à porta daquela que é uma das muitas salas onde se alimentam por estes dias os bancos de sangue do país, “os dadores de sangue não são heróis nem santos, mas pessoas sensíveis e capazes de dar um pouco de si”.
Onde dar dangue
Os serviços de sangue dos hospitais continuam a funcionar, assim como os postos fixos do IPST em Lisboa, Porto e Coimbra, agora abertos ao domingo.
O IPST recomenda o agendamento prévio, já que não podem estar mais de 10 dadores ao mesmo tempo dentro de cada local. Em Lisboa, além do centro de colheita no Parque da Saúde, em Alvalade, os serviços centrais do IPST, na Avenida Miguel Bombarda, passaram a ter colheitas aos dias úteis. Continuarão a existir algumas colheitas na comunidade, garantidas as distâncias de segurança e locais de isolamento de possíveis casos suspeitos.