Conheci na minha infância o senhor Albano, que morava na minha rua e tinha repentes com humores que encantavam. Não largava a onça superior que fumava ao ritmo de uma por dia, mai-la mortalha onde embrulhava o tabaco, missão que praticamente o levava a acender uns atrás dos outros. Contava histórias da América, que visitava como embarcadiço, e foi aí e por ele que soube, pela primeira vez, que havia prédios que ficavam perto dos céus e muitos nunca saíam das nuvens. Morreu feliz com quase cem anos.
Depois tive a experiência de meu pai, que aos 94 anos dos 98 a que chegou me pediu um favor: se falava com a médica para lhe passar o atestado necessário para renovar a carta de condução. Recusei, procurando sustentar a nega: que achava que ele andasse a conduzir com demasiado risco, coisa a que me respondeu com um breve e aparentemente conformado “está bem…”. Passados dias, logo sacou da carteira e exibiu com orgulho o cartão de plástico da permissão de conduzir. Perguntei, atabalhoado, como tinha conseguido, e logo levei de volta com a resposta, sorrindo: “Não são contas do teu rosário…” Mas sempre acrescentou: “Por acaso, a doutora até me disse o mesmo que tu, mas eu respondi: ‘Senhora doutora, não me quer ver a conduzir na autoestrada?’ E lá me deu a declaração”.
Nestes exemplos me inspiro, mais no do meu amigo Ruy de Carvalho, grande e imenso ator, mas sobretudo um enorme universo de ser humano no gosto de viver cada dia, que faz gala de desprezar o fim. “Quando for, é”, costumo ouvir. E noutros anónimos e conhecidos que por aí andam e são exemplo.
Porquê esta lembrança? Porque num mundo supostamente de defesa de direitos, de respeito pela dignidade humana, de exaltados por géneros e manigâncias de modas avulsas, estes dias e certos comportamentos de responsáveis trouxeram-me à memória o espírito de quase tolerância perante arremedos de “Auschwitzes” deste tempo que se julgavam impossíveis.
Quem não leu ou ouviu ministros desta Europa, displicentes no tratamento hospitalar não prioritário em relação aos “velhos”, tratando-os como ativos móveis já amortizados nas contas de uma empresa? Quem por cá, e no drama hospitalar que vivemos, não acentua sem estremecer que às vezes é preciso optar entre velhos e novos nas prioridades do tratamento e da afetação de camas? Quem, afinal, não passa de se comportar como novos algozes da maior conquista civilizacional do nosso tempo: a vida prolongada com qualidade, isto é, a extensão da realidade intergeracional vivida que leva à permanência do ser humano na plenitude do seu espírito transmitido a filhos e netos, mesmo depois da partida?
Um dia, convidei o prof. Carvalho Rodrigues a falar num ciclo de “conferências do séc. XXI” no salão nobre da Câmara da Covilhã. Os oradores eram livres de escolher o tema da noite, tendo por ali passado notáveis como João Lobo Antunes, D. Manuel Martins, Belmiro de Azevedo e mais uma boa dezena de figuras. Quando entrou no salão lotado com gente como nunca vi, o cientista dos satélites anunciou que ia falar sobre “o regresso dos avós”, fascinando a sala com a sua tese, escorreita e óbvia, da riqueza da relação entre os novos e os outros novos, alguns com mais idade.
Há dias li que um recente e competente estudo de gente averiguadamente séria chegou às seguintes conclusões:
a) Cerca de 70% de todos os/as seniores são independentes no que se refere às atividades básicas do dia-a-dia;
b) Mais de 80% não têm défice cognitivo;
c) Só 10% dizem sentir-se sozinhos;
d) A percentagem dos que estão deprimidos fica-se pelos 20%.
Isto é, na superstrutura do poder, onde é costume ver neófitos secretários da “Juventude”, seria talvez mais útil e mais conforme com a realidade estarem “secretários de Estado de Todas as Gerações”; e onde se ouve uma cultura bastas vezes de menosprezo pela vida vivida, teríamos a óbvia resposta de uma afirmação musculada na denúncia da ignorância sobre quem é quem na sociedade.
Na dezena de campanhas eleitorais em que dei o corpo ao manifesto, era sagrada a promessa de nunca esquecer quem nunca deve ser esquecido pela sociedade e pelo seu braço operativo, o Estado: os mais velhos e as crianças. Mas a falha maior nesta sociedade e neste tema será a escola e a informação em geral, na cratera cultural de ninguém lhes ter dado a notícia de que todo o novo se vai fazendo menos novo…
Questão é continuar a ser novo, arte que é um compêndio raro e a que a sofreguidão destes dias não permite chegar lá.
“Take it easy”, dizia o sr. Albano no inglês aprendido como embarcadiço. “Tenham calma…”
Não sabem o que perdem.
Covilhã, março de 2020