Brasil. O patrão mandou ficar em casa: história de um campeonato ridículo

Brasil. O patrão mandou ficar em casa: história de um campeonato ridículo


O Campeonato Carioca de Futebol de 1998 foi uma tranquibérnia jamais vista. O Vasco da derrotas por falta de comparência. Ambos os Fla-Flu foram decretados: 0-3 para cada um. Grotesco!


Vem a prosa a propósito de se ficar em casa, algo que todos temos feito ultimamente, com mais ou menos vontade, mais uns do que outros, claro está, mas ainda assim, volta e meia, parece que o mundo acabou, ruas inteiras sem gente, nem as habituais conversas de vizinhas de janela para janela.

Se há futebol dado a histórias esdrúxulas, o brasileiro fica certamente na frente da lista, e o Campeonato Carioca de Futebol de 1998 foi, de facto, tão estranho que até os famosos Fla-Flu, Flamengo-Fluminense e vice-versa, foram ambos ganhos por falta de comparência. Sim, sim, as equipas pura e simplesmente ficavam em casa. Como nós nestes dias tristonhos do país triste.

O Vasco da Gama vivia momentos de festança. O clube mais português do Rio de Janeiro comemorava 100 anos de vida e queria juntar à folia a alegria natural dos títulos. O primeiro que disputava era, precisamente, o título carioca. Nada como aporrinhar os rivais da mesma cidade, não é? Assim seria. Mas no meio de uma confusão tremenda. Confusão que teve o cenário montado na base de um documento assinado pelos presidentes do Flamengo (Kleber Leite), Botafogo (José Luiz Rolim) e Fluminense (Álvaro Barcelos), no qual declaravam o boicote ao campeonato carioca. Resuma-se o caso que é tão complicado, que tem raízes no ano de 1993, vejam bem, com a divulgação por parte do jornal O Globo de uma maquinação envolvendo resultados combinados que tinha no seu epicentro o vice-presidente vascaíno Eurico Miranda. A investigação deu com os burrinhos na água, como gosta de dizer o povo, de Santiago de Riba-Ul a Chão de Meninos, e o Vasco da Gama foi arrecadando títulos estaduais até os adversários ficarem de cabelos em pé.

Eurico Miranda era unha com carne com o presidente da Federação de Futebol do Rio de Janeiro, um tal de Eduardo Viana, mais conhecido pelo Caixa d’Água, que facilitava muito nas alterações das datas de jogos do Cariocão de forma a conservar a equipa do Vasco fresquinha para ir, ao mesmo tempo, mantendo a sua candidatura à vitória na Copa Libertadores, grande sonho de Eurico para esse ano de centenário. Com a pachorra esturricada, os maiores adversários dos cruzmaltinos entraram nos W.O., expressão inglesa que os brasileiros assimilaram gostosamente e significa walkover, ou pirar-se, escapulir-se, esgueirar-se e por aí fora, como quiserem. Os W.O. tornaram-se uma epidemia. Nunca se vira nem nunca mais se viu coisa igual.

Dizer não! O João Gilberto cantava: “Podem me chamar e me pedir e me rogar/ E podem mesmo falar mal, ficar de mal que não faz mal/ Podem preparar milhões de festas ao luar/ Que eu não vou ir, melhor nem pedir, que eu não vou ir, não quero ir…”

O primeiro a cumprir a palavra do João foi o Botafogo. No dia 10 de maio, os jogadores do Vasco da Gama bem puderam esperar no Maracanã. Os seus adversários não compareceram, não houve jogo, declarou-se a vitória vascaína na secretaria por 3-0. “É o estopim!”, bradou a manchete d’O Globo. Flamengo e Fluminense juntaram forças com o Botafogo: se os botafoguenses fossem castigados, abandonariam a competição. Eurico Miranda aproveitou para deitar para a fogueira mais umas achas valentes: “O problema deles é que somente o Vasco pode ser campeão no ano de seu centenário. O Flamengo não conseguiu. É isso que eles não aceitam. Essa confusão toda está sendo armada pelo Flamengo. Qual o problema que impediria o Botafogo de jogar? Quanto ao Vasco, o time vai domingo ao Maracanã e nós vamos ganhar por W.O. Mais nada!”

A fogueira lavrava brava.

Três dias mais tarde, o estopim continuou.

A federação resolveu tirar o Fla-Flu do Maracanã e desviá-lo para o estádio do Bangu, o Moça Bonita, com receio de que multidões desvairadas provocassem mais convulsões. Com essa medida pretendia reduzir o número de espetadores de forma a evitar problemas, decisão pouco inteligente se tivermos em conta a quantidade de problemas que rebentaram de imediato.

Kleber Leite e Álvaro Barcelos não mais se calaram. As acusações redobraram de tom, as reclamações atiradas para cima dessa personagem quase digna de romance de Jorge Amado, Caixa d’Água, atingiram o insulto. Depois reuniram-se e vieram a público declarar que nenhuma das equipas estava disposta a contribuir para a palhaçada. Nem Flamengo nem Fluminense iriam ao jogo. Dito e feito: o primeiro Fla-Flu desse ano foi inédito: W.O. imputado aos dois. Isto é, saíram derrotados por 0-3 de um encontro no qual não puseram os pés. Seria ridículo se não fosse grotesco. E tudo se repetiu no Flu-Fla.

A federação carioca ia metendo os pés pelas mãos a cada dia que passava. Assustado com a rebelião de Flamengo e Fluminense e com as consequências que poderia acarretar para o seu futuro como dirigente, Eduardo Viana deu parte de fraco. Transformou o duplo 0-3 num muito confortável (para ele) 0-0. Se estava convencido que tal disparate iria acalmar a malta, convenceu-se erradamente. A guerra redobrou em tiros. Toda a gente disparava na sua direção. Menos os do Vasco da Gama, claro está!

A tranquibérnia estava de tal ordem arreigada que, no dia seguinte, no Bangu-Vasco, os dirigentes do Bangu mandaram apagar as luzes depois de os vascaínos terem chegado ao 1-0. Houve pancadaria. O jogo foi interrompido, mas ninguém mexeu no conveniente (para o Vasco) resultado.

O grande Vasco da Gama-Flamengo, que deveria ser decisivo para o título, calhou num dia de chuva torrencial. Com tanta moscambilha, o Vasco já garantira pontos suficientes para poder perder nas três últimas jornadas. Trinta e quatro espetadores pagantes, 320 polícias e 400 funcionários assistiram à burlesca subida da equipa de reserva do campeão ao relvado para trocar umas bolas até o Flamengo confirmar a sua ausência e ser decretado outro W.O. Os adeptos, esses estavam em São Januário, comemorando a conquista do campeonato carioca mais estúpido de todos os tempos.

Mas as barracas não acabaram aí. Eram em maior número do que as que compunham a Favela da Rocinha. Faltava jogar o Vasco da Gama-Fluminense da quarta jornada que fora, entretanto, adiado como tantos outros. A seleção brasileira já estava em França, preparada para disputar o Mundial. Menos de mil pessoas foram ao Maracanã ver os suplentes do Flu ganharem por 2-0. Única derrota na carreira triunfante do Vasco da Gama. Pudera!