CRACÓVIA – A cidade é antiga como a noite dos tempos e tem uma dignidade muito intrínseca para lá dos muros da zona velha onde se multiplicam as igrejas. É certamente injusto que Cracóvia, um dos grandes centros culturais da Europa Central do Século XVI, esteja hoje como que colada ao nome envenenado de Auschwitz, aqui bem perto, desde que a Alemanha nazi resolveu fazer dela a capital do Governo Geral Alemão da Polónia. Mas é um peso que terá de carregar até ao fim das eras.
Fazia um frio de estalar os ossos quando me sentei nas bancadas do Estádio Enryk Reyman para assistir ao Wisla Cracóvia-Korona e a despeito de o jogo ter sido meio borrachoso (2-0 para os da casa), não restam dúvidas que as gentes de Cracóvia gostam profundamente do seu clube mais representativo. Tudo começou em 1906 com um jogo entre os amigos do dr. Taduesz Konczynski e do sr. Wladyslaw Jenkner, duas figuras estimadas na sociedade local. Vestiram uns de azul e outros de vermelho, e assim foram prosaicamente chamados. O resultado foi que, no final da alegre contenda, resolveram juntar-se e fundar, no ano seguinte, o clube do Vístula (Wisla), esse rio que nasce lá na Alta Silésia e vai desaguar perto de Gdansk depois de dar duas curvas pelo centro de Cracóvia.
O Wisla pode ser o clube mais antigo da cidade mas não é filho único. Aliás, esta semana é pródiga. Já amanhã, KS Cracóvi e Wisla defrontam-se numa vertigem que manterá os adeptos felizes por vários dias, embora o espírito não possa ser considerado menos do que divergente entre os que apoiam o KS Cracóvia e perseguem o líder, Légia de Varsóvia, e os que apoiam um Wisla Cracóvia a viver momentos soturnos perto dos lugares de despromoção.
Gintel. Agora que Lviv passou a fazer parte da Ucrânia, Cracóvia herdou a honra de ser a primeira cidade polaca onde se começou a praticar esse nobre desporto bretão. Tudo por causa de um físico chamado Enrik Jordan, professor que passou vários anos em Inglaterra e trouxe de lá o vício do pontapé na bola. Fundado em 1906, o Akademicki Klub Footballowy Cracovia nasceu no seio de um grupo de estudantes que achou por bem dar-lhe o nome latino de Kraków, Cracóvia. Tal como aconteceria com os azuis e vermelhos que deram no clube da estrela branca, o Wisla, o Cracóvia fundiu-se com os Bialo-czerwoni (brancos e vermelhos), mantendo o nome do primeiro e o equipamento do segundo. Quatro anos mais tarde jogava com orgulho e preconceito no Campeonato Austríaco, nesses tempos orgulhosos dos Império dos Habsburgos.
O Estádio Józef Pilsudksi, o grande líder político polaco do pós II Grande Guerra, será mais uma vez palco daquele que as gentes aqui da terra gostam de chamar Swieta Wojna, a Guerra Santa, o sempre excitante dérbi da cidade que teve estreia no dia 20 de setembro de 1908. Como está bem de ver, não se trata de nenhuma modernice, a despeito de termos, por vezes, a tentação de olhar para o futebol de determinados países com um olhar de superioridade que nem eles merecem nem nós definitivamente a ela temos direito.
Pouco mais de um quilómetro separam os dois estádios, o povo sairá à rua para comer os seus pães com salsicha, kebaabs ou pierogis nas roulottes enfileiradas nos passeios da uliça Kaluzi, encharcando-se com baldes de cerveja Zywiek, e não faltarão as habituais zaragatas com a polícia metida ao barulho sem dó nem piedade. O Cracóvia tem maior influência por parte da comunidade judaica local, mesmo orgulhando-se de um velho sócio, o Cardeal de Cracóvia, um tal de Karol Józef Wojtyla, que ficaria mais conhecido por Papa João Paulo II. Já o Wisla ganha na maioritária população católica e chegou mesmo a não aceitar jogadores que não professassem a religião. Um judeu, Ludwik Gintel, defesa-central da Jutrzenka Kraków, pequeno clube de sionistas, arquitecto e funcionário bancário, que se transferiu em 1921 para o KS Cracóvia, transformando-se num goleador temível, ao ponto de ter sido titular da selecção polaca que disputou ps Jogos Olímpicos de 1924, em Paris, lembrou-se um dia de referir-se ao dérbi com o Wisla como Guerra Santa. Os jornais gostaram, o nome ficou. Gintel fugiu para a Palestina quando os nazis se lançaram na conquista do espaço vital e começaram a exterminar judeus com a fúria própria do Armagedeão. Morreu em Tel-Aviv em 1973. Um lugar onde o termo Guerra Santa costuma ser exageradamente utilizado. Por cá ainda o recordam.