Frases cortadas a meio, como se fosse impossível continuar a escrita, páginas quase em branco, à excepção de uma frase a negrito, sinais de pontuação isolados entre dois blocos diferentes, restos, despojos, lugares de uma violência que é tanto da linguagem como da outra, muda, dos corpos. Esta é, de facto, uma paisagem já conhecida dos livros de Rui Nunes, paisagem cheia de despojos de uma guerra contra qualquer forma de pertença, contra qualquer língua ou qualquer pátria, que retorna obsessivamente a certos lugares e a certas imagens – para se medir face a eles, para os interrogar de novo, para notar a sua repetição banal, para registar a sua vulgaridade; e nada há de mais vulgar que estes corpos, estas vidas que se desconhecem a si mesmas e essas mortes. Poderíamos chamar de “estilo” a essa paisagem que vamos reconhecendo, mesmo que ela não deixe de apontar para um limiar indefinível, para um território que apenas esta escrita conhece, se esta palavra não designasse hoje um conjunto de truques retóricos que mais não são que excrescências da escrita – e, neste sentido, quanto mais estilo pior a escrita.
Em Rui Nunes, pelo contrário, encontramos aquela sobriedade que apenas a recusa sem cedências da narrativa permite – numa fúria que é aplicada a qualquer coisa que lembre ainda essa arte do romance, que está sempre demasiado entretida na sua própria celebração. É por isso que encontramos, em O Anjo Camponês, não apenas este conjunto de imagens que estão sempre a retornar, mostrando uma violência banal, pouco permeável a qualquer forma de construção romanesca, como, inclusive, certos vocábulos que mapeiam a já longa obra de Rui Nunes: “nitidez”, “pormenor”, “geometria”, “minúcia”, “transparência”; todos eles desenham, de facto, esse “tempo sem refúgio”, esses corpos abandonados a uma violência sem nome, que são sempre estrangeiros a si próprios, construídos no lugar deixado vazio por uma linguagem reduzida ao insulto e ao grito, à vozearia que Karl Kraus identifica como uma das diversas barbáries que cruza o nosso tempo e o nosso espaço.
“Atravessam a europa no interior de uma câmara frigorífica: corpos uns contra os outros, dobrados uns sobre os outros, abraçados uns aos outros: não mais do que um corpo único. Quando os tirarem do grande contentor, não será corpo a corpo, mas bocado a bocado, como quem parte uma árvore, decepa uma rês, ou arranca pedras de uma pedreira. Sob um céu encoberto, cada bocado não produzirá uma sombra: todos é o nome final que lhes restará. A partir daí, transformar-se-ão em notícia, lida no minuto seguinte de um ecrã, entre o café e o cigarro”
Não é difícil perceber que esta imagem – que este registo preciso, minucioso – arrasta atrás de si pedaços de memória, outros corpos também sem nome, outros lugares e tempos que teimam em não desaparecer; que ela convoca um lado arcaico que se está constantemente a repetir, como se fosse sempre a mesma violência, sempre os mesmos gestos, sempre os mesmos amontoados, num inferno banal de onde não se sai – mas, ao mesmo tempo, uma produção industrial de morte.
Bocado a bocado: é assim que a escrita de Rui Nunes vai construindo este deserto de onde Deus se ausentou e que mais não é que o apogeu da sua falta – e estes corpos todos que o povoam não levam nem a “Deus nem aos homens”, apenas a palavras que transformam “o corpo numa abreviatura” onde “ficas só com esse resíduo e não sabes o que fazer com ele”. Bocados de prosa, bocados de frases (“o anónimo precisa de poucas palavras”, como afirma), pedaços de corpos, “vida de frases curtas e insignificantes”, bocados de uma narrativa que vai surgindo aqui e ali: um padre que perdeu a crença e que a dada altura enlouquece.
“Aproximo o nariz dessa cabeça de vaca, ali, nos mosaicos, tem a rigidez nos olhos fechados, o endurecimento da carne entreabriu-lhe os beiços e mostra-lhe os dentes. Não é uma vaca, é a morte, no seu modo único de cada animal morto.
Ou de cada homem.
É a morte sem um sobrevoo que a ilumine:
um Deus que não existe mostra uma inexistência:
o velho que ninguém velará,
a criança que atravessou um continente para chegar ao seu passado. Ao teu. Ao nosso. E encontrou-o vazio.”
Não é a primeira vez que a escrita de Rui Nunes se situa neste mundo feito de detritos onde brilha apenas a falta de Deus – e só essa falta é interessante, só ela revela, de forma radical, estes corpos sem redenção, esta violência sem fim para o qual não há palavras. No entanto, a referência a Eckhart, teólogo alemão e um dos nomes maiores de uma tradição que ficou conhecida como “teologia negativa” – que consiste num dispositivo de negação de atributos a Deus -, acompanhada de citação escondida de Angelus Silesius (“o olho no qual vejo Deus é o mesmo olho no qual Deus me vê”) vem complicar a descrença desse padre que repete uma conhecida frase dos antifascistas espanhóis (“Arriba Franco, más alto que Carrero Blanco”, uma referência ao atentado à bomba que matou o político próximo de Franco). Porque tal como Bacon é um pintor religioso apenas no talho, onde há essa indiscernibilidade entre homem e animal, onde a morte não tem esse “sobrevoo que a ilumine”, também a escrita de Rui Nunes é religiosa apenas perante esses corpos sem redenção, esse amontoado de carne que cria uma identidade profunda entre homem e animal – e, como referia o filósofo Gilles Deleuze, somos responsáveis “não pelos vitelos que morrem, mas sim perante eles”.
Esta viagem ao fim de Deus, “eis a minha crença,/ vazio a falar de outro vazio”, é também uma viagem ao fim da narrativa, àquilo que desta se liberta e que, em última análise, a torna impossível. Porque, para Rui Nunes, a narrativa sempre foi, tal como a musicalidade, uma outra forma de declinar esse nome vazio que projecta uma sombra imensa, esse nome que não desaparece, que corrói as coisas e que anuncia apenas “um homem a sós com os seus gestos” – uma outra declinação é esta: o poder. Este nome podre abre apenas para “grandes carcaças de boi, alinhadas como estratos geológicos, umas coladas às outras, de onde caem pingos de sangue.”.
“os cães morrem sem Deus: enrolam-se no seu próprio pêlo e morrem, os pássaros desprendem-se das árvores e caem no tejadilho dos automóveis, as penas, de brilhantes passam a baço, ficam ali de asas semiabertas, um esvoaçar aflito que a morte interrompeu: a meia palavra de um voo”
Não se trata apenas, no entanto, de denunciar essa impostura da narrativa, para usar uma palavra próxima a outro universo, de lhe assacar uma qualquer responsabilidade de ordem ética ou moral – como se em certos temas, em certas acontecimentos, a narrativa e o romance não devessem entrar. Trata-se, pelo contrário, de mostrar que qualquer narrativa é sempre incapaz de seguir a interrogação sobre esses corpos sem redenção até ao fim, de mostrar que esta intimidade da morte, que estes pedaços de corpos, que estes espaços anónimos onde se dissemina uma pobreza sem nome lhe são irremediavelmente estranhos e estrangeiros. Não há narrativa, de facto, que consiga dar conta dessa violência arcaica, dessa repetição sem fim dos mesmos gestos inacabados, dessa vida ínfima que se situa no limiar da morte, onde há apenas distância, “resíduos de todas as paisagens, de todas as passagens” e corpos sem jeito.
“A este corpo sem jeito chamavam-lhe o quê?: o filho de Hilde? o tartamudo? O tonto, coitado? Ou gritavam-lhe: vem cá, fecha-me essa boca, limpa o cuspo dos lábios, vai buscar lenha: nem a intimidade de um insulto ou de um riso. De falta de nome em falta de nome, até à falta. Nítida como uma soletração. Hoje, é somente um corpo, de ninguém, que ninguém”.
Enquanto contarem histórias não conseguirão perceber o que são esses corpos, o que é esta solidão ou este abandono. E, no fim, apetece apenas citar Blanchot: “Uma narrativa? Não, nada de narrativas, nunca mais”.