Um espirro em público, daqueles mais iracundos, por estes dias, gera à volta um efeito não menos dramático do que berrar “Bomba!” num aeroporto. Mais que constrangedor, esse reflexo incontrolável tornou-se uma indecência. É um bom termómetro do ambiente de paranóia que se está a gerar. E a programação cultural das nossas cidades já começou a ressentir-se. Depois do encerramento do Louvre, foi a vez do Salão do Livro de Paris ser anulado por razões de saúde pública. O principal evento do sector em França, iria realizar-se de 20 a 23 de março, e se o enredo desses dias que agora se deslocam para o hemisfério da imaginação poderia dar uma excelente novela, a organização preferiu não arriscar. O governo francês pediu que todos os eventos em que sejam esperados mais de cinco mil pessoas sejam cancelados, e o salão do livro tem juntado mais de 160 mil visitantes. Este ano, a Índia era o país convidado, e dos quatro cantos do mundo – mais de 50 países – viriam hordas de editores e escritores. Seria uma oportunidade de ouro para o Covid-19 entrar de rompante na cena literária. Afinal, por esta altura, este vírus que não tem nem o nome mais sonante nem uma taxa de mortalidade exasperante, já terá ouvido as exageradíssimas alusões ao romance que trouxe a consagração a Camus, “A Peste”. Ora, se o bicho teve curiosidade, e abriu aquelas páginas talvez tenha lido a frase em que nos é dito que “tudo o que o homem podia ganhar no jogo da peste e da vida era o conhecimento e a memória”. Se mais tarde ou mais cedo, também esta peste será debelada, o que irá ficar é um relato das suas proezas. E nada como fazer baixas entre a turma literária para criar uma reputação que perdure no tempo.
Além daquela que seria a 40.ª edição do Salão do Livro na cidade das luzes ir ficar a negro, também a Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha, em Itália, que iria decorrer entre 30 de março e 2 de abril foi adiada para maio. Por outro lado, tanto a Feira do Livro de Londres como a de Leipzig, pará já, resolveram não ceder às ameaças do arruaceiro vírus vindo da China. Mais uma vez, vale a pena acotovelar minimamente as notícias para apertar aqui a frase final do romance alegóriaco de Camus: “viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”.
Marcada para os dias 10 a 12 de março, a organização da Feira do Livro de Londres mantém-se impassível, garantindo que estão a ser tomadas todas as medidas de segurança do serviço nacional de saúde britânico, e que, se novas indicações forem emitadas pelo governo, estas serão aplicadas ao evento. Apesar, do sinal de calma vindo do Reino Unido (mais um pedacito de Camus? Ora, aqui vai: “Sei apenas que é preciso fazer o necessário para deixar de ser um pestiferado e que só isso nos pode fazer esperar a paz, ou, na sua falta, uma boa morte. É isso que pode aliviar os homens e, se não salvá-los, pelo menos fazer-lhes o menos mal possível, e até às vezes, um pouco de bem.”), alguns dos principais grupos editoriais já estão a cancelar a ida das suas delegações, entre eles a HarperCollins, a Hachette, Simon & Schuster, Macmillan, a Penguin Random House e a Amazon. Quanto à Feira de Leipzig, que decorrá naquela cidade alemã entre os dias 12 a 15 de março, também irá realizar-se como previsto, e, como de costume, irá contar com a presença de alguns escritores portugueses.
Quanto a nós, é ainda muito cedo para antecipar se a Feira do Livro de Lisboa poderá ver a sua 90.ª edição abalada por esta epidemia. As incrições abriram a 30 de janeiro, e o evento decorrerá entre 28 de maio e 14 de junho. Mas o nosso meio literato foi já, de algum modo, chamado a comparecer solenemente na partida, largada e nos próximos dias já veremos se no contágio deste novo coronavírus. Depois de dias de alguma ansiedade, aquele nervoso de quem, de tão imerso no tédio, quase anseia por uma suave catástrofe, a saga do vírus, por fim, a sua campanha portuguesa, e fê-lo de um jeito que se poderia chamar táctico. O escritor chileno Luis Sepúlveda e a mulher, Carmen Yáñez, deixaram Portugal no passado dia 23, depois de terem participado no festival Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. De acordo com relatos de outros participantes, Sepúlveda terá estaria já bastante constipado quando o evento terminava, mas foi dois dias mais tarde, já em Gijón, nas Astúrias, onde reside, que começou a manifestar os sintomas do Covid-19, sendo que apenas no dia 27 o escritor procurou ajuda médica. Entretanto, por essa altura, também Carmen Yáñez começou a apresentar sintomas, e ambos foram transferidos para o Hospital Universitário Central das Astúrias (HUCA), em Oviedo, onde se encontram em isolamento. Entretanto, a organização do festival viu-se obrigada a informar todos os participantes e os funcionários que tiveram contacto directo com o autor foram aconselhados a ficar em casa e a vigiar o seu estado de saúde.
Calhou ser Rita Ferro, a registar de forma mais adequada, num inadvertido tom de comédia, este desenvolvimento: “Primeira vítima na minha área de trabalho: o escritor chileno Luís Sepúlveda tem codiv-19 [sic]. A sua mulher começa a manifestar efeitos. Esteve entre nós na semana passada, no evento literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, de modo que todas as pessoas que estiveram com ele estão isoladas e vão ter que ser testadas. A literatura ameaçada.”
Não fosse o meio literato português tão paroquial e caricaturável, nem o festival em causa o epicentro desta forma de auto-paródia e talvez o episódio não tivesse, nas reacções que provocou, gerado tanta galhofa. Mas sendo as coisas o que são, é natural que o escárnio prevaleça enquanto não houver consequências mais funestas. Afinal, aquele festival há muito que não vai além de uma impante celebração anual dos mesmos, um evento em que a literatura é um mero pretexto, em que uma pandilha que se aferrou ao poder camarário se vai perpetuando num arranjo com o principal grupo editorial português (a Porto Editora) e, assim, em nome da Cultura, o meio literário nacional é achincalhado numa pobre e enfadonha ficção sobre uma imensa e feliz família, um romance chatíssimo, abusando da rima com a época carnavalesca, e que vem conservando a tradição dos xéxés. Além de reafirmar a burguesice congénita do nosso meio literário, esta não abdica de um pendor folclórico, e isso fica expresso numa noção de cultura cujas manifestações lembram um culto coercivo, em que os livros e os escritores ao invés de serem lidos, discutidos, alvo de crítica, e até originarem polémicas vitais, são apenas motivo de uma tosca veneração. Agora, resta saber se o Covid-19 irá revelar desembaraço enquanto crítico literário num meio que está precisar desesperadamente de uma vigorosa acção de desbaste.